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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.13  Salvador Nov. 2012

 

O moisés de freud: entre o sublime e a sublimação

 

The Moses by Freud: between sublime and sublimation

 

 

Guilherme Massara Rocha*

Unversidade Federal de Minas Gerais

 

 


RESUMO

O trabalho consiste em discutir, a partir do escrito O Moisés de Michelângelo de S. Freud, algumas consequências da abordagem psicanalítica da obra de arte para a ética da psicanálise. A minuciosa interpretação que Freud realiza do trabalho do escultor italiano revela, liminarmente, como Moisés se faz capaz de converter seu ódio e suas paixões vingativas num impulso civilizatório de laço social. No curso dessa análise, os elementos da sublimação e da estética do sublime se mostram fundamentais.

Palavras-chave: psicanálise; arte; ética; sublime; sublimação.


ABSTRACT

Taking as it's principal motives the article named The Moses by Michelangelo, from S. Freud, this work discusses some aspects of the ethics of psychoanalysis that are related with the psychoanalytical approach from the art experience. The minucious interpretation that Freud sketches from the italian sculptor's work reveals, fondamentally, how Moses becomes capable of converting his anger and ravaging impulses into a civilizatory appeal and into social and sublimatory tendencies. This work tries to demonstrate how important, during Freud's analysis of Michelangelo's work, is the concept of sublimation and how it is connected with some aspects of philosophical and aesthetical theories of the sublime.

Keywords: psychoanalysis; art; ethics; sublime; sublimation.


 

 

A investigação freudiana foi, desde sua mais remota origem, marcada por uma consideração ao incomensurável, ao imponderável. Sua antropologia, erguida sobre uma hipótese fundamental, a de que a subjetividade é inexoravelmente clivada entre a disposição pulsional e a determinação significante, é o que recoloca, de modo original, uma questão central da filosofia moderna que, com Kant, assume sua formulação mais bem acabada: como se articulam, na experiência humana, os planos da natureza e da liberdade? Essa pergunta, substancialmente ética, Freud a retoma sob a perspectiva de seus esforços de determinar os fundamentos daquilo que, com Lacan, passou a designar-se sob a rubrica de uma ";posição subjetiva";.

Se a clínica psicanalítica permanece tributária de um dispositivo científico que lhe faculta o recurso a categorias diagnósticas elementares — neurose, psicose e perversão, por outro lado, o seu exercício impõe a tarefa de distinguir, isolar e localizar, no curso de cada tratamento, o ponto de absoluta irredutibilidade de uma posição subjetiva a quaisquer arranjos qualitativos que lhe sejam exteriores. O Deus-Logos de Freud é um deus não-todo poderoso, e isso tão somente na medida em que, estando as raízes do sujeito do inconsciente fincadas no solo opaco das pulsões, se constata a absoluta impossibilidade de esgotar-se, por meios discursivos, a elucidação da totalidade das determinações que ali operam. Ou seja, se por um lado as operações da ciência são absolutamente fundamentais para a apreensão da subjetividade inconsciente em termos daquilo que nela incide a partir da estrutura da linguagem; por outro, a psicanálise, desde Freud, sentir-se-ia tentada a tomar de empréstimo a outros domínios da racionalidade certos procedimentos que têm, em seu horizonte, a possibilidade de expressar, de mostrar, de circunscrever, ou, no limite, de comensurar, aquilo que não se pode calcular.

Freud não ignorava a obra de seus predecessores. Na trajetória de Kant, exemplarmente, o problema da liberdade moral é exatamente aquele que não é passível de tratamento pela vertente dos fenômenos, da démarche científica, exigindo do filósofo de Königsberg um volumoso esforço de fundamentação metafísica que se põe no entrecruzamento de suas duas últimas críticas, da razão prática e do juízo estético. Schopenhauer1, por seu turno, aponta, em sua Metafísica do Belo, o quanto o princípio de causalidade que comanda a investigação científica, procedendo diacronicamente, não é capaz de exceder os limites que articulam a sucessão de encadeamento lógico dos fenômenos. ";A cada fim";, escreve o filósofo, ";a ciência é atirada novamente mais adiante";. Devotada a subsumir o diverso da experiência sob o marco do conceito, a ciência torna-se, por excelência, a disciplina do cálculo e da forma. A arte, todavia, pondera Schopenhauer, ";suspende a roda do tempo";, permitindo-nos entrever a objetividade imediata das disposições da liberdade. Para ambos os filósofos, assim como para Schiller e Schelling — cujas obras tanto sensibilizaram o inventor da psicanálise —, a consideração estética é o regime privilegiado de apreensão dos fundamentos da conduta humana, a via de acesso por excelência para a abordagem da ética. E isso, sem que a dimensão de incomensurabilidade aí engendrada seja apagada, ignorada ou contornada. Ao contrário, o pensamento estético moderno inventa (ou re-inventa) um regime epistêmico privilegiado para o tratamento do incomensurável — entenda-se, para o tratamento da questão da liberdade — e que provém da investigação estética. Eis o sublime, acerca do qual Freud nada nos lega, além da inquietante noção metapsicológica de sublimação.

No presente trabalho, pretende-se revisitar uma incursão estética de Freud, de modo a evidenciar os fundamentos de seu trato com a dimensão do incomensurável. E de modo a demonstrar como suas frequentes invectivas sobre o território das artes são justamente aquelas que permitem entrever sua posição no que se refere ao debate, ainda inesgotado, acerca das articulações entre natureza e liberdade.

“Moisés é carne de sublimação”2 . Com essa frase enigmática, Freud despede-se de Salvador Dali após uma visita que recebera do artista, no verão de 1938 em sua residência de Maresfield Gardens. A alusão a seu controverso ensaio, “Moisés e o monoteísmo”, no qual Freud então ainda trabalhava, é o que parece contextualizar a sentença. Quase quarenta anos depois, em 1974, Dali assinaria a arte de uma luxuosa edição do ensaio de Freud, para a qual ele contribui com a capa e com mais dez litogravuras. A cobertura dessa célebre edição consiste num baixo-relevo em metal e pátina de prata e traz uma imagem de Moisés, indisfarçavelmente surrealista3 . Mas essa obra de Dali é discretamente caracterizada por elementos que remetem à escultura de Michelangelo. Aquela mesma que tanto fascínio causara no precursor da psicanálise. Mais do que os audaciosos apontamentos que Freud empreende em seu longo estudo de 1934-1938, é seu estudo sobre o Moisés de Michelangelo, publicado anonimamente em 1914, a que se faz necessário pontualmente retroceder.

As razões do caráter anônimo de sua primeira publicação permanecem não esclarecidas. Freud diria a seus colegas mais próximos tê-lo feito por pura diversão. Mas os editores ingleses e franceses de sua obra completa, ambos insinuam a possibilidade de que a insegurança de Freud quanto às suas aptidões crítico-estéticas se tenham feito notar nesse gesto. Com efeito, numa carta a Abraham, de 6 de abril de 1914, Freud faz alusão à ";vergonha";, quanto a seu ensaio, de seu “diletantismo manifesto”4 . Somente dez anos depois de sua primeira publicação no periódico Imago, o texto aparece assinado por ele, numa edição alemã de seus trabalhos reunidos.

O pudor de Freud, injustificado — como o testemunha o cuidadoso recenseamento crítico que ele empreende acerca dos comentários principais a propósito da escultura do mestre italiano —, talvez possa ter outra origem. O texto, liminarmente, ainda que não de todo estranho ao debate acerca das origens e desdobramentos propriamente estéticos da obra, tem como seu propósito fundamental assumir o risco de uma interpretação. Ali reside a particularidade do ensaio de Freud, precisamente no fato de que, ao descongelar a imagem secularmente fixada no mármore por seu artífice, Freud nela discerne um conjunto de movimentos que têm por horizonte distinguir certa posição que não é somente a da figura retratada, mas do sujeito em questão, nomeadamente Moisés. Sutil e substancialmente, o ensaio de Freud desliza dos apontamentos de ordem artística e estética para o terreno ético.

Após semanas de observações, anotações e esboços sobre a estátua que repousa na Igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma, Freud confessa ao leitor seus esforços de “[...] suportar o irado olhar de desprezo do herói”, sentindo-se identificado “à turba sobre a qual seus olhos estão voltados”, e desabonada da fé e da paciência, a rejubilar-se, reconquistando seus “ilusórios ídolos”5. Profundamente afetado pela obra, todavia, Freud se esforça por discernir-lhe elementos estáveis, apoiando-se na literatura crítica e culminando por extrair-lhe caracteres peculiares, de um pathos e também de um ethos. A mescla de ";ira, dor e desprezo"; do herói antigo, Freud a discerne combinada com uma “orgulhosa simplicidade, uma dignidade inspirada, uma fé viva”. Concordando com Guillaume, um dos autores consultados, Freud vislumbra no Moisés de Michelangelo os olhos que “encaram o futuro” e que preveem a “sobrevivência duradora de seu povo e a imutabilidade de sua lei”6. Ele cerca a obra com suas sentenças, como quem procura resumi-la numa exclamação, numa palavra talvez. Lacoue-Labarthe é quem lembra que outra personalidade célebre, Giorgio Vasari, teria, diante da mesma estátua, exclamado: “Sublime”! Consignando, com isso, “o primeiro uso estético dessa palavra”7. Para o filósofo8, em resumo, seria necessário chamar a atenção para “com que precisão e com que rigor o ensaio de Freud se inscreve na tradição estética do sublime”.

Os apontamentos freudianos de ordem propriamente artística, para além de exaltarem o caráter magnífico da expressividade alcançada na obra, se debruçam sobre uma série de indicações que visam justificar a tese de que Michelangelo retrata, em última instância, o conflito experimentado por Moisés diante das manifestações heréticas de seu povo, quando de seu retorno do Monte Sinai. O conflito entre as paixões e, como sugere Lacoue-Labarthe, sua maîtrise ou, mais exatamente, entre um ímpeto de virulência física e odiosa e a demonstração de autocontrole e reafirmação da soberania do impulso moral, eis o ponto em que Freud teria feito intervir sua interpretação do sentido da obra. “Michelangelo escolheu esse último momento de hesitação, de calma antes da tempestade”9. Poder-se-ia enxergar aí o desenvolvimento de um argumento “absolutamente schilleriano”, fundado na noção de dignidade e que concerne à “liberdade espiritual” de exercer, sobre os impulsos, a soberania moral10. Sob o ponto de vista estético, Freud mesmo vai dizer que o segredo do impacto causado pela estátua é tributário do “contraste artístico entre a flama interior e a calma exterior de sua postura”11, e que, correlativamente, também engendrariam esforços de fornecer a forma da conflituosa relação entre seu criador, Michelangelo, e aquele que o contratara, o genioso Papa Julio II.

A obra à qual Freud parece de algum modo endossar sua resolução sublime, todavia lhe motiva algumas observações que reiteram seu matiz, schilleriano é bem verdade, mas não só. Numa delas, Freud alude à sensação que experimentara diante da estátua, de que, em algum momento, Moisés finalmente se levantaria e, dando “vazão à sua ira”, encenaria, com toda a violência e crueldade que nos é transmitida pelo Livro do Êxodo, os movimentos derradeiros da narrativa bíblica que Michelangelo congelara num instante de suspensão. Todavia, a “calma quase opressivamente solene” do herói prevalece, e Freud12 parece se solidarizar com a ideia de que “Moisés ficaria sentado assim, em sua cólera, para sempre”. Diferentemente do sublime kantiano, no qual a elevação moral do sujeito parece não deixar vestígios da natureza que se lhe contrapõe, o segredo revelado pelo Moisés de Michelangelo é justamente aquele que, como lembrara Schopenhauer, permite um vislumbre acerca da soberania moral que não escamoteia, contudo, a lembrança da vontade. Ou, como formulara Schiller, trata-se de uma cena em que a força moral é aquela que, suspendendo o gesto empírico de descarga da ira e seu consequente efeito de apaziguamento do impulso, escolhe “desarmá-lo” moralmente, revelando, com isso, a eticidade do caráter, no limite, a dignidade. Freud13 escreve:

Michelangelo colocou na tumba do Papa um Moisés diferente, um Moisés superior ao histórico ou tradicional. Modificou o tema das Tábuas quebradas ; não permite que Moisés as quebre em sua ira mas faz com que ele seja influenciado pelo perigo de que elas se quebrem, e faz acalmar essa ira ou, pelo menos, impedi-la de transformar-se em ato. Dessa maneira, acrescentou algo de novo e mais humano à figura de Moisés; de modo que a estrutura gigantesca, com a sua tremenda força física, torna-se apenas a expressão concreta da mais alta realização mental que é possível a um homem, ou seja, combater com êxito uma paixão interior pelo amor de uma causa a que se devotou [...]Assim, esculpiu seu Moisés na tumba do Papa, não sem uma censura ao pontífice morto, mas também como uma advertência a si próprio, elevando-se, pois, através da auto-crítica, a um nível superior à sua própria natureza.

Dotado de incomparável habilidade técnica, cabe lembrar, Michelangelo faz verter do mármore branco a tonalidade rubra dessa carne de sublimação. Sua obra, como lembrara Lacoue-Labarthe, tomando de empréstimo a expressão de Hegel, é aquela que expressa como, porventura, o belo materializa a própria essência do sublime. Tornando-se uma “homenagem, grandiosa, mas bela, prestada à arte segundo sua determinação eidética”14. Sem perder de vista todo o substrato pulsional cuja pregnância é indispensável ao efeito ético/estético de seu empreendimento, Michelangelo consuma aquilo que, numa gramática schilleriana, pertence ao domínio do signo sensível do Absoluto. Seu Moisés é a expressão da inversão habitual de uma trajetória que, do belo ao sublime, extrai da forma toda e qualquer possibilidade de apreensão num ente sensível. Se, conforme se poderia notar comparativamente, uma obra de arte moderna, tal como o Nu descendo a escada, de Marcel Duchamp, parece consistir num esforço de sensibilizar a própria temporalidade fugidia de um movimento – decompondo-o, pitorescamente, numa modalidade quadro a quadro de representação –, o Moisés de Michelangelo, inversamente, interrompe, aprisionando-o no instante de suspensão, um movimento complexo ao qual inexoravelmente a forma sensível remete. Ali, paradoxalmente, é a forma que remete ao informe, o ponderado faz signo do imponderável, o belo faz signo do sublime.

A interpretação freudiana da obra, por seu turno, é aquela que, nas palavras de Georges Didi-Huberman, não recusa as “latências do objeto”. Mas recusa, isso sim, o compromisso em que as “vitórias da forma” se afirmariam sobre os “inquietantes poderes da divisão”15. Ao contrário, a complexidade em jogo numa cena que distintos atos comporta, e que Freud se concentra e decifrar-lhes um a um, teria, por resultado final, uma obra de arte que não quer “impugnar a temporalidade do objeto”16, mas apreender, nos limites que se impõem a quaisquer manifestações eidéticas, o que há de ilimitado no horizonte para o qual a obra quer apontar. Freud insistiria mais de uma vez no aspecto físico do herói retratado, em sua tensão muscular, que parece levar ao limite o esforço de impor limites à “flama interior”. A deflexão do impulso, característica elementar da disposição sublimatória, aqui realmente se faz notar como aquela que parece algo extrair da própria carne do herói, um quinhão de sua natureza17.

Um aspecto, todavia, importante e que possivelmente poderia reiterar os parentescos entre esse ensaio freudiano e o tema do incomensurável, refere-se à questão da lei mosaica. O segundo mandamento da lei de Moisés – “Não farás quaisquer efígies ou quaisquer representações, quer do que esteja na terra, acima da terra ou sob a terra” –, contemplado por Kant em sua analítica do sublime, aqui reaparece implicitamente, infiltrando-se na interpretação freudiana. No episódio bíblico, é justamente a inobservância desse preceito, traduzida no ato leviano de adoração do bezerro, aquela que deflagra a ira de Deus18. O Moisés de Freud, ao contrário daquele que nos é legado pelo Livro do Êxodo, é o que não fornece a forma de uma passagem ao ato à sua revolta contra a adoração do Bezerro de Ouro. Note-se, ainda, incidentalmente, a relevância clínica dessa observação, que reitera, em sua esteira, em que medida as preocupações estéticas de Freud seriam algo inseparáveis de sua démarche como analista.

A conservação das Tábuas da Lei, que Freud afere como elemento de destaque na versão alterada da narrativa proposta, em tese, por Michelangelo, poderia parecer, todavia, incongruente com a posição teórica do inventor da psicanálise. Pois, particularmente no que se refere a seus apontamentos sobre o cristianismo, Freud alia-se, na expressão de Betty Fuks, aos “demolidores de ídolos”19. Tomando-se, portanto, em consideração o caráter implacável da crítica freudiana da religião, não seria de se surpreender que alguma dose de solidariedade à ira de Moisés e aos golpes por ele brutalmente desferidos sobre os que se regozijavam de seus “ilusórios ídolos” fizesse signo da posição de Freud. Ora, é bem verdade que, num devaneio consciente, Freud confessa esperar o levante iminente do herói, senão por solidariedade, possivelmente em virtude de saber como poucos avaliar a avassaladora pressão que as pulsões exercem sobre as forças de ligação que visam contê-las. Mas, ao fim e ao cabo de seu argumento, é mesmo a versão mais espiritualizada de Moisés aquela em que ele parece elogiar. Moisés conserva as Tábuas da Lei e, com isso, parece sinalizar para a primazia dos acordos simbólicos e discursivos sobre o pathos da vingança. No escopo de conservação de suas leis, uma delas motivou, desde Kant pelo menos, importantes desdobramentos acerca do irrepresentável, do incomensurável.

A lei mosaica que proíbe a representação imagética da divindade, associada, como lembrara Fuks, ao “tetragrama impronunciável” – YHVH –, parece dar lugar, lembra a autora, à invenção de uma “Ausência radical”20. O esgotamento das potências do sensível para a representação do suprassensível, traduzido esteticamente em termos de um esgotamento das representações moduladas pela noção de “efígie”, impacta também o plano discursivo, na medida em que o nome de Deus é indizível, “fora-do-discurso”21 , e referido a algo que, mesmo que perpassado pela linguagem, é inassimilável a quaisquer formas identitárias. O que poderia fazer pensar que, no Moisés de Freud, a conservação da lei seja talvez a insígnia da conservação de um mandamento que equivale à própria dignidade do real — o incognoscível, o irrepresentável, o incomensurável — sem o qual, todavia, nenhuma liberdade é possível. A ira de Moisés, transformada em ato nesse contexto, mais corresponderia à realidade pulsional de um pathos, à forma assumida pela natureza sensível diante da impossibilidade de assimilar a diferença que incide sobre a integridade imaginária do Eu, ali representada pela heterogeneidade de uma modalidade alheia de gozo, de uma satisfação estranha. A passagem ao ato representaria, portanto, um esforço de destruição do real, empreendido em nome da conservação da forma narcísica do Eu ou, dizendo de outra maneira, um ataque vertido contra aquilo que de mais inassimilável poderia uma alteridade representar para um sujeito. O Moisés bíblico assumiria, nessa medida, poder-se-ia arriscar, a posição de um terrorista. Posição que o sublime parece bem redefinir, na medida em que o terrorista é aquele que converteria em pathos da destruição o horror diante do unheimlich, diante daquilo que é, ao mesmo tempo, estranho e familiar. Não raramente, cabe lembrar, o pathos da destruição terrorista coincide também com um ato de autoextermínio, autodestruição.

Quanto ao Moisés de Freud, a atitude assumida pelo herói parece mimetizar a presença mesma do conteúdo sublime que ele carrega consigo, mas à qual ele fornece outro encaminhamento. A beleza que Lacoue-Labarthe aponta na versão espiritualizada de Michelangelo — substancialmente realçada pela interpretação freudiana —, é divisada no que há de quase invisível na obra: o elemento ético nela imantado ou, como lembrara Freud, o compromisso do herói com a causa que lhe subjaz à decisão, seus olhos “voltados para o futuro”, ciosos de uma tarefa ainda inacabada, nomeadamente aquela de conduzir um povo, libertando-o, sobretudo, dos grilhões que resplandecem, como o ouro do bezerro, nos confins de seu espírito. Se, no plano ético, o Moisés de Michelangelo fornece elementos para pensar as relações entre a causa do desejo e os motivos morais, a questão que se abre, no estético, é relativa à representação do vazio, da ausência e da opacidade. O pequeno opúsculo de Freud, aparentemente despretensioso mas ao mesmo tempo tão inspirado, inscreve-se, como apontara Lacoue-Labarthe, na tradição do sublime, mas à sua própria maneira. Pois parece evidente considerar que Freud, tendo relido o episódio bíblico sob uma perspectiva que modifica substancialmente seus vetores éticos, discerne o esforço subjetivo de exercer a liberdade moral à qual o homem se vê livrado.

Lembre-se, ainda, conforme o relato do Êxodo, que a ira de Moisés é solidária à ira de Deus, diante de quem, num primeiro momento, ele se propõe a mitigar a fúria, mas com a qual, finalmente, se identifica e reproduz em ato. Eis o Moisés bíblico. Moisés, tornado personagem de Freud, não realiza o desejo do Outro. Nem se coloca, diante desse Outro, como puro instrumento de sua satisfação pulsional, de seu gozo. Sua posição ética não parece definir-se pelos vetores de uma identificação, nem tampouco pela pura instrumentalização de um pathos inconsciente e alienante. O que não significa estar ele, como sujeito, absolutamente separado desse Outro. O Moisés de Freud não reivindica tampouco, como condição da assunção de sua posição ética, a inexistência do Outro. Pois sua posição não é redutível àquela de um gozo de seu próprio desamparo, ou num regozijo de sua onipotência. O Moisés de Freud é aquele capaz de distinguir, no Outro a quem se dirige, as vertentes da causa e do pathos. Daí se descortinando, como parece querer demonstrar Freud, sua verdadeira condição de sujeito. A lei a que obedece o Moisés de Freud é aquela que se põe como causa, des-identificada — a duras penas, diga-se de passagem — da forma odiosa da paixão divina. E se é o conteúdo do pathos divino que Moisés ousa recusar, ei-lo a demonstrar o caráter informe de uma lei que assume, ali, a forma do mais paradoxal dos mandamentos: um mandamento esvaziado de conteúdo, refratário a toda sensibilização oriunda da paixão alheia, mas voltado, cumpre reafirmar, para o imperativo de uma lei que se põe como causa.

A essa altura, talvez já se fizessem suficientemente explícitos os vetores do ordenamento ético que Freud empresta à sua interpretação do Moisés de Michelangelo. Mas tais vetores engendram ainda, no caso em questão, um elemento fundamental acerca do qual Freud, todavia, nada argumenta, qual seja, o perdão. De forma quase irresistível, é como se o Moisés de Freud se tornasse signatário da sentença mais extemporânea que a ele os escritos sagrados poderiam atribuir. Aquela do Cristo, inapelavelmente sublime: “Perdoai-lhes, Senhor, pois que não sabem o que fazem”22. Se essa aproximação tem aqui alguma legitimidade, ela liminarmente restitui à enigmática expressão de Freud toda a plenitude que lhe é devida. Moisés, responsabilizando-se até as últimas consequências pela preservação do vazio onde as esperanças de existência de uma cultura viriam se alojar, converte-se, ao fim e ao cabo, em carne de sublimação. Sua presença eidética, como lembrara Lacoue-Labarthe, transmite, como legado, o caráter infinito da causa a que se consagrara uma existência finita. Posição que se confunde com aquela de Sigmund Freud no trato com sua invenção, a psicanálise.

 

Referências

DIDI-HUBERMAN, G. Lo que vemos, lo que nos mira. Buenos Aires: Ed. Manantial, 2006.         [ Links ]

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FREUD, S. Chronique la plus brève: Carnets intimes 1929/1939. Anotações e apresentação de Michael Molnar. Londres: Freud Museum; Paris: Albin Michel Ed., 1992.         [ Links ]

FREUD, S. O Moisés de Michelangelo [1914]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v.XIII.         [ Links ]

FUKS, B. B. Freud e a judeidade: a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.         [ Links ]

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SHOPENHAUER, A. Metafísica do belo. Trad. Jair Barbosa. São Paulo: Unesp, 2003.         [ Links ]

 

 

* Psicanalista, Doutor em Filosofia (Universidade de São Paulo), Professor-adjunto do Departamento de Psicologia da FAFICH/UFMG.
1 SHOPENHAUER, A. Metafísica do belo. Trad. Jair Barbosa. São Paulo: Unesp, 2003. p.59..
2 Apud MOLNAR, M. Anotações. In: FREUD, S. Chronique la plus brève: Carnets intimes 1929/1939. Paris: Londres: Freud Museum: Albin Michel Ed., 1992. p.243.
3Podem adquiri-la, diretamente, no Museu Dali em Montmartre, Paris, aqueles dispostos a pagar por ela cerca de 75.000 euros.
4 Apud ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Trad. Vera Ribeiro e Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.607.
5 FREUD, S. O Moisés de Michelangelo [1914]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v.XIII, p.255. A natureza da transgressão que fornece os contornos da obra de Michelangelo aponta ainda, no interior da religião judaica, para a solidariedade entre fé e conduta que, com seu ato, o povo de Moisés avilta. Conforme aponta Branca Facciolla, “[...] a religião judaica enfatiza o comportamento. Trata-se de uma ideologia religiosa que alia claramente a intenção com a ação. Deus está presente em todos os momentos. Portanto, não há qualquer sentido na ação sem que haja intenção, bem como não há qualquer mérito em se ter intenção sem a prática, a ação” [FACCIOLLA, B. L. A Lei de Moisés: Torá como fonte de direito. São Paulo: RCS, 2005. p.78]. Efetivamente, a solidariedade entre intenção e ação parecerá, de algum modo, justificar a ira divina e a sanha de destruição que lhe é consubstancial. Mas, como se poderá observar, o Moisés de Freud ali parece discernir outra coisa.
6 FREUD, S. O Moisés de Michelangelo, op. cit., p.257.
7 LACOUE-LABARTHE, P. La verité sublime In: COURTINE, Jean-François et al. Du sublime. Paris: Belin, 1998. p.148.
8 Id., ibid., p.152.
9 FREUD, S. O Moisés de Michelangelo, op. cit., p.258.
10 LACOUE-LABARTHE, P. La verité sublime, op. cit., p.152.
11 FREUD, S. O Moisés de Michelangelo, op. cit., p. 264.
12 Id., ibid., p.263.

13 Id., ibid., p.276-277.
14 LACOUE-LABARTHE, P. La verité sublime, op. cit., p.155.
15 DIDI-HUBERMAN, G. Lo que vemos, lo que nos mira. Buenos Aires: Ed. Manantial, 2006. p.21.
16 Id., ibid., p.21.
17 Cf. Leonardo Da Vinci – São Jerônimo no deserto.
18 Cf: BÍBLIA. Antigo Testamento: Livro do Êxodo, Cap. 32, Versículos 7 a 35.
19 FUKS, B. B. Freud e a judeidade: a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p.90.
20 FUKS, B. B. Freud e a judeidade:... , op. cit, p.100.
21 Id., loc. cit.
22 Uma interessante observação incidental poderia ser incluída aqui. De acordo com um estudo de Ze´ev Falk acerca do Direito Talmúdico, “entre os ensinamentos atribuídos a Jesus”, encontram-se alguns que refletem as “diferentes fases do argumento cristão diante da Lei Talmúdica” [FALK, Z. W. O direito talmúdico. Trad. Neide Tomei e Esther Handler. São Paulo: Perspectiva, 1988. p. 50]. Um desses argumentos, expresso no Sermão da Montanha, parece visar contestar a ideia de que “nenhum ser humano poderia apresentar seu ponto de vista contra o da lei divina”. Tal reivindicação, argumenta Falk, “representa por si mesma a aspiração de Jesus a ser reconhecido como legislador supremo”. Todavia, conclui o autor, “a resposta rabínica a esta formulação era dupla. Não havia prova de que Jesus era realmente um verdadeiro profeta e, mesmo se fosse, nenhum profeta podia desprezar a Lei de Moisés” [id., loc. cit.]. De acordo com a interpretação aqui aventada, quanto ao Moisés de Freud, não se pretende fundá-la numa torção que a revestiria de um caráter mais elevado, nomeadamente, cristão. Mas tão simplesmente apontar, num gesto que contingentemente a aproxima de uma passagem bíblica marcante, seu caráter exemplar acerca da assunção de uma posição ética.