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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito vol.14  Salvador nov. 2013

 

Clube da luta: a clivagem do eu

 

Club de la lucha: la escisión del yo

 

 

Cibele Prado Barbieri*

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O filme – lançado em 1999, com os atores Brad Pitt, Edward Norton, Helena Bonham Carter, e dirigido por David Fincher – não é, como pensam alguns traídos pelo título, um filme sobre lutas. Poderíamos resumir dizendo que é um drama sobre os conflitos internos de um homem diante da impossibilidade de conciliar seu desejo inconsciente com seu ideal. O filme mostra, passo a passo, como consequência dessa luta interior, o processo de divisão do eu e o surgimento de um personagem que se alterna com o seu pacífico e inibido "eu", como no fenômeno descrito por Freud como "clivagem do eu".

Palavras-chave: psicanálise; cinema; personalidades alternantes; clivagem do eu; perversão; histeria.


RESUMEN

La película – lanzada en 1999, con los actores Brad Pitt, Edward Norton, Helena Bonham Carter, y dirigida por David Fincher – no es, como algunos piensan, traicionados por el título, una película sobre luchas. Nosotros podríamos resumir diciendo que, es un drama sobre los conflictos internos de un hombre ante la imposibilidad de reconciliar su deseo inconsciente con su ideal. La película muestra, paso a paso, como resultado de esa lucha interna, el proceso de división del yo y la aparición de un personaje que alterna con su pacífico e inhibido "yo", al igual que en el fenómeno descrito por Freud como "escisión del yo".

Palabras claves: psicoanálisis; cine; personalidades alternantes; escisión del yo; perversión; histeria.


 

 

O filme aborda o enigmático fenômeno da clivagem do eu em sua forma mais radical: a que tem como conseqüência a coexistência de duas “personalidades” distintas e em conflito entre si.

Este não é um tema novo, já foi abordado em vários romances, clássicos da literatura e novelas da televisão. O filme tem, entretanto, a propriedade de introduzi-lo com tal sutileza e perspicácia que nos leva a um suspense, só esclarecido no momento final.

É interessante notar que é no “ só depois ”, no momento de concluir, no instante em que o próprio sujeito faz uma releitura de sua trajetória, que temos o insight , que revela todo o sentido do relato que se desenrola ao longo do filme.

Permite, assim, uma leitura psicanalítica desses estados, que se presta a demonstrar a função de desconhecimento do eu enquanto instância que favorece a proliferação dos ideais e das identificações ilusórias, imaginárias, para além das impulsões do sujeito que permanecem na penumbra, desconhecidas do eu consciente.

Para fazer essa articulação com a Psicanálise, faremos uma breve retomada de alguns conceitos da psiquiatria e de passagens da obra de Freud sobre o assunto, buscando elucidar a estrutura subjacente ao fenômeno, tal como o filme apresenta.

A psiquiatria do século XIX tratou desses casos como “personalidades alternantes”. Azam relatou o caso Félida, Janet, o caso Juliette e Morton Prince nos trouxe Miss Beauchamy. Encontramos, em Henry Ey, duas menções a esse quadro:

1. Distúrbio da Memória – Personalidade primitiva encoberta pela amnésia atual e personalidade secundária substituindo a primeira (EY, 1978, p. 103).

2. No capítulo sobre a Histeria, ele trata esses episódios como estados crepusculares e secundários:

Outros estados crepusculares, também chamados de estados secundários, nos mostram a produção oniróide sob a forma habitual do sonho, com uma rica produção de imagens principalmente visuais. São estados de transe, fragmentos isolados e mais ou menos desenvolvidos da grande crise.

Quanto aos estados secundários das “personalidades múltiplas”, trata-se de fatos excepcionais, porém celebres, nos quais a tendência que acabamos de ver substitui a experiência real por uma experiência sonhada, se amplifica e se estende ao máximo a ponto de fazer alternar uma personalidade secundária (a do sonho histérico) com a personalidade primitiva (a do estado normal).

[...]

Devemos relacionar estes estados com o sonambulismo histérico, que difere deles apenas por seu aparecimento em meio ao sono. (EY, 1978, p. 476).

A alternância dos padrões de comportamento é considerada como fuga: “[...] pode acontecer que o histérico erre como que fascinado pela sugestão de suas imagens” (EY, 1978, p. 476).

Freud, no Rascunho L ([1897]), fala da “arquitetura da histeria” e da “multiplicidade de personalidades psíquicas” e, em “Algumas observações gerais sobre ataques histéricos”, diz que:

[...] o ataque histérico torna-se obscuro pelo fato de o paciente tentar realizar as atividades de ambas as figuras que aparecem na fantasia, ou seja, por meio de uma identificação múltipla.

Confira-se, por exemplo, o caso que mencionei em meu artigo sobre ‘Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade’ (1908a), no qual a paciente tentava despojar-se de suas vestes com uma das mãos (como homem) enquanto as retinha com a outra (como mulher). (FREUD [1908]).

Vemos aqui o papel fundamental da fantasia na construção do personagem. Em “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade” (1908), ele distingue duas vertentes da fantasia na neurose e na paranoia: na histeria, a fantasia é inconsciente e encontra sua vertente no sintoma ou é colocada em ato. Na paranoia, a fantasia é consciente e se expressa no delírio.

Em “Mal-estar na civilização” ([1929]), ele diz:

O ego nos aparece como algo autônomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais. Essa aparência é enganadora, pois o ego continua para dentro, sem qualquer delimitação nítida, em continuidade com uma entidade mental inconsciente que designamos como id, à qual o ego serve como uma espécie de fachada.

Na “Conferência XXXI – A dissecção da personalidade psíquica”, ele retoma essa questão e assim a desenvolve:

O ego é, em sua própria essência, sujeito; como pode ser transformado em objeto? Bem, não há dúvida de que pode sê-lo. O ego pode tomar-se a si próprio como objeto, pode tratar-se como trata outros objetos, pode observar-se, criticar-se, sabe-se lá o que pode fazer consigo mesmo. Nisto, uma parte do ego se coloca contra a parte restante. Assim, o ego pode ser dividido; divide-se durante numerosas funções suas – pelo menos temporariamente. Depois, suas partes podem juntar-se novamente. Isto não é propriamente novidade, embora talvez seja conferir ênfase incomum àquilo que é do conhecimento geral. Por outro lado, bem conhecemos a noção de que a patologia, tornando as coisas maiores e mais toscas, pode atrair nossa atenção para condições normais que de outro modo nos escapariam. Onde ela mostra uma brecha ou uma rachadura, ali pode normalmente estar presente uma articulação. Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não em pedaços ao acaso. Ele se desfaz, segundo linhas de clivagem, em fragmentos cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam predeterminados pela estrutura do cristal. (FREUD, [1932]).

E em “A divisão do ego no processo de defesa”, ele fala de Splitting , “Clivagem do ego”, ou seja, divisão, desdobramento do ego ante o conflito, numa parte que observa e numa parte que é observada, como duas correntes que caminham lado a lado.

Deve-se confessar que se trata de uma solução bastante engenhosa da dificuldade. Ambas as partes na disputa obtêm sua cota: permite-se que o instinto conserve sua satisfação e mostra-se um respeito apropriado pela realidade. Mas tudo tem de ser pago de uma maneira ou de outra, e esse sucesso é alcançado ao preço de uma fenda no ego, a qual nunca se cura, mas aumenta à medida que o tempo passa. As duas reações contrárias ao conflito persistem como ponto central de uma divisão ( splitting ) do ego. (FREUD, [1938]).

 

O filme

 

Ao longo do filme, marcamos alguns pontos que contam a história da divisão de Jack e nos permitem compreender a construção do personagem Tyler, que passo a esquematizar.

“Sei disso porque Tyler sabe”.

• Queixa inicial: o sofrimento. Insônia, sonambulismo. O conflito: “Que jogo de jantar me definiria?” – a questão clássica como proposta por Lacan: “Que queres?” Jack busca incessantemente: “Quem sou eu? O que desejo?”; “Quem ou o que me define enquanto sujeito?” É o desconhecimento do sujeito sobre o seu desejo.

É interessante notar, neste ponto, a crítica dirigida ao saber médico que, não podendo ouvi-lo, o encaminha para grupos de autoajuda em que ele poderá transformar seu sofrimento numa simples insensatez.

• Tudo tinha a ver com uma garota chamada Marla Singer. É o Outro que instala o conflito e a divisão no sujeito, quando o confronta com seu mal-estar. No caso de Jack, quando o convoca a assumir uma posição viril. Neste caso, o Outro é mulher Marla Singer.

• Nos grupos de autoajuda, ele encontra, além da catarse, a identificação com o sofrimento alheio, que permite localizar a angústia sem abordar a questão relativa ao seu desejo. Isso traz um alívio, mas só momentâneo.

• Encontra também um modo de estabilizar seu conflito através de um deslizamento: a imagem do eu [i(a)] encarnada pelo pinguim – animal frio, desengonçado, que o representa – deve deslizar. “Deslize!”

• Marla convoca outra imagem, a do “poder animal”, que condensa os aspectos perversos erótico/sádicos, que foram recalcados.

• O surgimento do personagem Tyler opera esse deslizamento de i(a), para um Ideal I(A), que reúne traços viris, insígnias fálicas, que estava interditado e inacessível para Jack porque onipotente e liberado para a satisfação dos aspectos perversos de seu desejo.

“Sou a vingança cínica de Jack”, “sou a vida perdida de Jack” . Neste tempo, Tyler é o senhor e articula um saber. Jack é o outro e desconhece tal saber.

• As duas posições se alternam na fantasia: O eu – instância imaginária e ilusória encarnada por Jack que sofre o conflito – e o sujeito do inconsciente, encarnado no personagem Tyler Durden, verdadeiro senhor do gozo que determina, cada vez mais, o destino de Jack. “Tyler é o meu pesadelo, ou eu sou o dele?"

O eu é uma ficção sustentada pelo desejo do sujeito enquanto recalcado, como o filme demonstra. Uma instância imaginária, ilusória, tanto quanto o personagem que ela cria para dar conta do conflito do sujeito diante da angústia que a questão d’ Mulher deflagra.

Não se trata de psicose e Tyler nos diz por quê: ele não é uma alucinação, ele é o efeito, a representação da subjetividade inconsciente. Uma produção de Jack, tanto quanto uma imagem onírica, para dar conta da divisão interna desse sujeito.

Do “Esboço da Psicanálise”, recortamos dois trechos:

[...] duas atitudes psíquicas diferentes, opostas e independentes uma da outra.

Estas duas atitudes persistem lado a lado ao longo da vida sem se influenciarem mutuamente. É a isso que se pode chamar uma clivagem do ego. (FREUD, [1938]).

Aqui, a clivagem é sustentada pela Verdrangung , o recalcamento, por isso a amnésia e o desconhecimento das atividades do Tyler quando este passa a assumir atitudes que seriam censuráveis pelo Jack. Jack não quer saber nada disso. O neurótico não quer saber desses desejos.

Na perversão, por outro lado, o ato perverso não sofre o recalque, pois a angústia é neutralizada pelo mecanismo da Verleugnung , o desmentido da castração. No ato perverso, não há apagamento, amnésia.

A alternância das “personalidades” é possível pela operação do recalcamento que impede Jack de reconhecer-se como Tyler, representação do seu desejo inconsciente com tudo que ele carrega de perverso e erótico.

Tyler Durden nada mais é que a resposta de Jack à angústia ante o ameaçador enigma que mulher implica. Resposta que permite a ele deslizar da posição passiva, masoquista, inibida, controlada e dessubjetivada para uma posição viril, erótica, sádica, em consonância com o seu desejo. Tyler é a realização em ato das fantasias neuróticas de Jack.

 

Referências

EY, H., BERNARD, P. e BRISSET, C . Manual de Psiquiatria . São Paulo: Masson do Brasil.1978, 2ª Ed.         [ Links ]

FREUD, S. Rascunho L [1897]. In: ______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, [n.d.]. v.I CD-ROM.         [ Links ]

FREUD, S. Algumas Observações Gerais Sobre Ataques Histéricos [1908] In: ______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, [n.d.]. CD-ROM. v IX.         [ Links ]

FREUD, S. Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade [1908]. In: ______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, [n.d.]. v.IX. CD-ROM.         [ Links ]

FREUD, S. Mal-estar na civilização [1929] In: ______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas . Rio de Janeiro: Imago, [n.d.]. v.XXI. CD-ROM.         [ Links ]

FREUD, S. Conferência XXXI [1932]. In: ______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, [n.d.]. v.XXII. CD-ROM.         [ Links ]

FREUD, S. A divisão do Ego no processo de defesa [1938]. In: ______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, [n.d.]. v.XXIII. CD-ROM.         [ Links ]

FREUD, S. Esboço da Psicanálise [1938]. In: ______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, [n.d.]. v.XXIII. CD-ROM.         [ Links ]

 

 

Recebido em 10/08/2013
Aceito em 02/09/2013

 

 

* Psicóloga (UFRJ/UFBA). Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico da Bahia, presidente na gestão 2013/2014. Coordenadora da Comissão de Biblioteca e Publicações. Participante da Comissão editorial da Revista Estudos de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Editora de Cógito. Capacitação na Metodologia SciELO–USP para formatação de Periódicos em Psicologia da BVS-Psi. E-mail:barbieri.cibele@gmail.com. Este comentário foi apresentado em novembro de 2002 no Núcleo de Cinema do CPB.