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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.14  Salvador Nov. 2013

 

Amor de transferência: um estudo de caso baseado em In Treatment

 

Transference Love: a case study based on TV series In Treatment

 

 

Gabriela Trindade*; Rui Maia Diamantino**

Universidade Salvador, UNIFACS

 

 


RESUMO

O texto discute alguns aspectos do amor de transferência e da contratransferência a partir de episódios da série de TV americana In Treatment, envolvendo o psicanalista Paul e sua paciente Laura. Considera-se que, embora a ficção fílmica não dê os elementos necessários para a análise de um caso clinico, o que é retratado em In Treatment não se distancia das questões do desejo do analista na sua relação com seus pacientes. Essa perspectiva desdobra uma série de questões que ainda precisam ser elaboradas pelos que praticam a Psicanálise no lugar do analista.

Palavras-chave: cinema; amor de transferência; contratransferência; psicanálise; clínica psicanalítica.


ABSTRACT

This paper discusses some aspects of transference love and countertransference from episodes of American TV series In Treatment involving the patient (Laura) and her psychoanalyst (Paul). It is considered that although the filmic fiction does not give the necessary elements for the analysis of a clinical case, the content depicted in In Treatment does not distance itself from the desire issues the analyst might face in the relationship with their patients. This approach unfolds a number of issues that still need to be developed by those that practice Psychoanalysis in the place of the analyst.

Keywords: cinema; transference love; countertransference; psychoanalysis; psychoanalytic clinic.


 

 

Introdução

O conceito de transferência em Psicanálise está intrinsecamente ligado à expressão “amor de transferência”. Não por acaso, tal relação trata-se da transcrição da observação clínica desde os postulados de Freud de que o amor, enquanto repetição de experiências libidinais anteriores, fixa-se na figura do analista, e este deve servir-se desse ocorrido como instrumento motor da direção da análise.

Para Freud ([1912] 1996), cada indivíduo, através da ação combinada de sua disposição inata e das influências sofridas nos primeiros anos, apresenta um modo particular de conduzir sua vida erótica, produzindo o que ele denomina “clichê estereotípico”, que é constantemente reimpresso no decorrer da vida do sujeito. Apenas uma parte desses impulsos passou por todo processo de desenvolvimento psíquico e está acessível à personalidade consciente, fazendo parte dela. Outra parte desses impulsos, retirada do curso do desenvolvimento, mantém-se inconsciente e afastada da realidade.

Assim, é natural que, através da transferência, essa catexia libidinal seja direcionada para a pessoa do analista. Devido à presteza com que esses sentimentos emergiam, entretanto, Freud percebeu que eles não eram provocados pelas situações inerentes ao trabalho de análise, mas já estavam preparados no paciente e, com a oportunidade encontrada no tratamento, eram transferidos para a pessoa do médico (FREUD, [1916-1917]1996).

A qualidade da transferência para o médico bem como a natureza de suas manifestações dizem respeito não apenas às ideias antecipadas conscientes, mas também àquelas que foram retidas (reprimidas) ou que são inconscientes. Para Freud ([1916-1917]1996) a tarefa primordial do tratamento analítico está em direcionar o que está inconsciente para o consciente e, dessa forma, operar uma retirada progressiva das resistências que mantêm as repressões, ocasionando, por sua vez, a formação dos sintomas.

O tratamento analítico então passa a seguir a libido que, inteiramente ou em parte, entrou num processo regressivo, com o propósito de torná-la consciente e, em consequência, útil à realidade. No entanto, à medida que as investigações da análise se aproximam da libido, “[...] está fadado a irromper um combate; todas as forças que fizeram a libido regredir se erguerão como ‘resistências’ ao trabalho da análise, a fim de conservar o novo estado de coisas” (FREUD, [1912]1996, p.114). Contudo, Freud observou que as resistências oriundas dessa fonte não são as únicas, tampouco as mais poderosas. A libido, compelida a entrar num curso regressivo através da atração dos seus complexos inconscientes, tem de ser superada, isto é, a repressão que entrementes estabeleceu no indivíduo, deve ser removida. A análise tem de lutar contra as resistências que advêm de ambas essas fontes.

É nesse ponto, segundo Freud, que a transferência entra em cena. Quando algo no material complexivo serve para ser transferido à pessoa do médico, essa transferência é realizada e, invariavelmente, apresenta-se por sinais de resistências. Entretanto, ao examinar a relação entre transferência e resistência, Freud notou que era necessário estabelecer a distinção entre duas modalidades específicas de transferência: a transferência positiva e a transferência negativa, que se traduzem como a transferência de sentimentos afetuosos e hostis, respectivamente. (FREUD, [1912]1996)

A transferência positiva ainda pode ser dividida em transferência de sentimentos amistosos ou afetuosos, estes admissíveis à consciência, e transferência de prolongamentos desses sentimentos no inconsciente. Com relação a esses últimos, Freud percebeu que eles remontavam invariavelmente a fontes eróticas. Assim, as relações emocionais amistosas que desenvolvemos ao longo das nossas vidas são provenientes de desejos sexuais, muitas vezes suavizados e indiscerníveis à autopercepção consciente. A transferência para o médico, dessa maneira, é fonte de resistência somente na medida em que se tratar de transferência negativa ou de transferência positiva de impulsos eróticos reprimidos. Não obstante, na transferência negativa, sentimentos hostis e afetuosos podem coexistir, marcando a ambivalência emocional. (FREUD, [1912]1996).

De acordo com Freud, o fenômeno da resistência no trabalho de investigação analítica ocorre porque os impulsos inconscientes derivados de experiências infantis reprimidas não desejam ser trazidos à luz do consciente através do recordar, mas esforçam-se por reproduzir-se de acordo com a atemporalidade do inconsciente. Examinando por esse prisma, o paciente tenderia a atuar para não recordar uma experiência infantil reprimida, isto é, colocar em ato o conteúdo reprimido. Diante disso, “[...] tal como acontece aos sonhos, o paciente encara os produtos do despertar de seus impulsos inconscientes como contemporâneos e reais; procura colocar suas paixões em ação sem levar em conta a situação real” ([1912]1996, p.119). Essa atitude psíquica promove, então, um processo defensivo do ego ante o analista, que é então transformado, mediante transferência, em um representante das tendências pulsionais em relação às quais o ego se opõe. O analista, assim, passa a ocupar este lugar predeterminado na série psíquica do paciente. O trabalho de análise procura superar essa resistência de transferência, tentando compelir o paciente a ajustar esses impulsos pulsionais ao nexo do tratamento e da sua história de vida, e assim avançar no processo. (FREUD, [1912]1996).

Convencido de que, superadas as dificuldades com a técnica da interpretação, a única dificuldade realmente séria a ser enfrentada pelo analista residia no manejo da transferência, Freud destacava “[...] o caso em que uma paciente demonstra, mediante indicações inequívocas, ou declara abertamente, que se enamorou, como qualquer outra mulher mortal poderia fazê-lo, do médico que a está analisando” (FREUD, [1915]1996, p.177). Tal condição, nitidamente bem definida e de ocorrência amiúde, resulta do fato de o paciente ter transferido para o médico intensos sentimentos de afeição, o que, à primeira vista, não parece exercer qualquer vantagem para o tratamento.

Para Freud, entretanto, tal demanda de amor, que surge como interferência à continuação do tratamento, trata-se em grande parte da expressão da resistência. A paciente, que outrora apresentava sinais de uma transferência afetuosa, na ocasião em que é conduzida pelo trabalho analítico a recordar algum fragmento particularmente aflitivo e pesadamente reprimido da sua história de vida, tem sua atitude modificada (FREUD, [1915]1996).

No início do tratamento, é possível observar a emergência de uma transferência positiva. As relações entre paciente e analista mostram-se agradáveis; o paciente desenvolve especial interesse pela pessoa do analista, é amável e reage de modo favorável às interpretações, esforçando-se por compreendê-las e se deixando absorver pelas tarefas que o tratamento propõe. Nessas condições, a análise também faz bons progressos: a livre associação assim como o material mnêmico aparecem em profusão, como resultado do rebaixamento das resistências. Ademais, ocorre uma melhora objetiva em vários aspectos da doença (FREUD, [1916-1917]1996). Entretanto, tal dinâmica não perdura indefinidamente. Logo surgem dificuldades no tratamento; a paciente se declara incapaz de cumprir a regra fundamental. Dá a mais nítida impressão de não estar interessada no trabalho ou nas instruções que lhe foram dadas, comporta-se com indolência, muito embora aparente estar ocupada com algo – que prefere manter consigo (FREUD, [1916-1917]1996).

Logo Freud percebeu que a causa da dificuldade era a paciente ter transferido, para o analista, intensos sentimentos de afeição, que não se justificam pela conduta do analista, nem pela situação do tratamento. Ela esteve enamorada, portanto, por longo tempo; mas agora a resistência está começando a utilizar seu amor a fim de impedir o progresso do tratamento, desviar o seu interesse do trabalho e colocar o analista em uma posição embaraçosa (FREUD, [1915]1996).

Após examinar tal situação de maneira mais minuciosa, Freud percebeu a influência de motivos vinculados ao enamoramento da paciente. O primeiro deles deriva dos “[...] esforços da paciente em certificar-se de sua irresistibilidade, em destruir a autoridade do médico rebaixando-o ao nível de amante e em conquistar todas as outras vantagens prometidas, que são incidentais à satisfação do amor” (FREUD, [1915]1996, p.180). Com relação à resistência, nesses casos, é possível que ela se sirva da declaração de amor da paciente como meio de testar a severidade do analista. Além disso, a resistência age intensificando o estado amoroso da paciente e exacerba sua disposição à rendição sexual, a fim de justificar, de modo enfático, o funcionamento dos mecanismos repressores, ao apontar os perigos de tal licenciosidade.

Embora reconhecesse o caráter defensivo do amor transferencial, Freud alertava os analistas para que não confundissem o enamoramento da paciente com uma paixão verdadeira, evitando atribuir tal condição “[...] aos encantos de sua própria pessoa; de maneira que não tem nenhum motivo para orgulhar-se de tal ‘conquista’, como seria chamada fora da análise” (FREUD, [1915]1996, p.178). Ao contrário, tal situação deve servir como um esclarecimento valioso para a compreensão dos mecanismos inconscientes da paciente e uma advertência útil contra qualquer tendência à contratransferência.

A fim de levar a análise a um termo possível, o manejo da transferência deve ser feito de maneira cautelosa, pois seria desastroso para a paciente tanto que seu anseio por amor fosse satisfeito quanto que ele fosse suprimido. Diz Freud ([1915]1996, p.181):

Instigar a paciente a suprimir, renunciar ou sublimar seus instintos, no momento em que ela admitiu sua transferência erótica, seria, não uma maneira analítica de lidar com eles, mas uma maneira insensata. Seria exatamente como se, após invocar um espírito dos infernos, mediante astutos encantamentos, devêssemos mandá-lo de volta para baixo, sem lhe haver feito uma única pergunta.

Se, para Freud, a transferência pode ser traduzida como um deslocamento da libido dos objetos originais do passado para a figura do analista, uma operação evidentemente inconsciente e que obedece à noção da compulsão à repetição (o paciente repete na transferência as situações reprimidas no passado como algo efetivamente pertencente ao presente), ao suprimir o dito amor da paciente, o analista perderia a oportunidade de trabalhar esses conteúdos na consciência. Além disso, ao adotar tal postura, a paciente poderia sentir-se humilhada e não deixaria de vingar-se por isso.

De acordo com Freud, o analista não deve abandonar a neutralidade para com a paciente, adquirida pelo controle da contratransferência, e deixa claro que o tratamento deve ser conduzido na abstinência, no sentido de negar à paciente o anseio por amor que ela deseja. Em que pese essa observância, “[...] se deve permitir que a necessidade e anseio da paciente nela persistam, a fim de poderem servir de forças que a incitem a trabalhar e efetuar mudanças, e que devemos cuidar de apaziguar estas forças por meio de substitutos” (FREUD, [1915]1996, p.182). Através da interpretação produzida no trabalho analítico, as repressões serão removidas, e a paciente será capaz de satisfação real. A respeito da hipótese de os sentimentos da paciente serem retribuídos pelo analista, Freud ([1915]1996) é enfático: tal condição resultaria em grande triunfo para ela, porém no fracasso do tratamento.

Um relacionamento amoroso, ressalta Freud ([1915]1996), compromete a suscetibilidade da paciente ao tratamento analítico. Uma combinação de ambos faz-se impossível. A interpretação favorece o contato com a realidade e não com a relação do desejo, como é pedido pelo paciente e, se corretamente utilizada, frequentemente reduz o desejo e a resistência resultantes da transferência amorosa.

Porém, Freud ([1915]1996, p.184) já apontava que há “[...] determinada classe de mulheres com quem esta tentativa de preservar a transferência erótica para fins de trabalho analítico, sem satisfazê-la, não logrará êxito. Trata-se de mulheres de paixões poderosas, que não toleram substitutos”. Nesses casos, a aliança terapêutica está fadada a fracassar.

Apesar dos argumentos em prol de uma teoria da repetição de experiências libidinais infantis, o vivido transferencial, embora composto de reedições, é visto por Freud ([1915]1996) como tendo o mesmo status de realidade que qualquer outra vivência e, nesse sentido, não é menos real. O amor transferencial, entretanto, caracteriza-se por certos aspectos que asseguram sua peculiaridade: em primeiro lugar, ele surge na situação analítica; em segundo, é intensificado pela resistência, que domina a circunstância; por último, apresenta menor grau de apreciação da realidade do que o amor normal – embora afastar-se da norma é precisamente o que constitui os efeitos de “estar enamorado” (FREUD, [1915]1996).

Por sua vez, o analista – indubitavelmente implicado pelas relações transferenciais que se estabeleceram entre ele e o paciente, visto que ele evocou esse amor em primeiro ao instituir o tratamento analítico – precisa ter em mente a ética que envolve seu trabalho e os fins para os quais ele opera.

 

O Caso Laura

No episódio piloto de In Treatment, o constructo da temática do “amor de transferência” já começa a ser elaborado. A primeira cena do episódio apresenta-nos a jovem médica Laura Hill na primeira atuação da indubitável transferência erótica direcionada a seu analista Paul Weston, bem como a resistência resultante dela.

Chorando, Laura desculpa-se, diz que não deveria ter ido, embora revele que esteve por quatro horas em frente ao consultório, esperando o momento de sua sessão. Após a intervenção de Paul, Laura decide ficar e contar-lhe a versão completa do que, segundo ela, acabara com a sua vida. Brigara com seu namorado na noite anterior, pois ele lhe dera um ultimato: queria casar-se. Em resposta, saíra com uma amiga e, posteriormente, envolveu-se sexualmente com um estranho no bar. O relato de Laura acerca de tal encontro é minucioso e, embora verbalize que está envergonhada com a situação, mantém contato visual com seu analista por todo o tempo, interrompendo sua fala apenas para perguntar se soava desagradável escutar tais coisas. Tendo permissão para continuar, Laura prossegue e finaliza dizendo que pensou em Paul – e em como ele veria o ocorrido durante a sessão.

Após o relato de Laura, Paul faz intervenções no sentido de desvelar os motivos que levaram Andrew a escolher tal ocasião para evocar uma crise em seu relacionamento, e, através do discurso de Laura, torna-se claro que a iniciativa do término partiu dela, bem como a invocação do ultimato – o que ela nega veementemente. Ao questionar os motivos que levaram Laura a escolher esse momento em específico, a paciente confessa-se apaixonada por Paul, demandando a retribuição desse amor.

Devido às características do roteiro, a declaração de Laura pode soar aos espectadores como um legítimo caso de enamoramento. No entanto, já no primeiro episódio, temos a informação de que Laura está em processo analítico há um ano, sendo possível, então, colocar a hipótese de uma relação transferencial já construída. Freud ([1913]1976) assinala que “[...] os primeiros sintomas ou ações fortuitas do paciente, tal como sua primeira resistência, podem possuir interesse especial e revelar um complexo que dirige sua neurose”. Ademais, a emergência dessa mudança tende a acontecer na ocasião precisa em que se está tentando levar a paciente a admitir ou recordar algum fragmento particularmente aflitivo e profundamente reprimido da história da sua vida (FREUD, [1915]1976, p.180). O direcionamento das intervenções de Paul também sugere a interpretação, por parte do analista, de que Laura lhe está mandando uma mensagem endereçada através da expressão do acting out.

De acordo com Freud ( [1914]1969), a transferência é, em si mesma, um fragmento da repetição, que, por sua vez, remonta à transferência do passado esquecido, não somente para o analista, mas também para outros aspectos da situação atual. O papel desempenhado pela resistência em tal situação também pode ser destacado com facilidade, pois, quanto maior a resistência, mais extensivamente o acting out substituirá o recordar.

Ainda segundo Freud([1915]1996, p.184), “[...] quanto mais claramente o analista permite que se perceba que ele está à prova de qualquer tentação, mais prontamente poderá extrair da situação seu conteúdo analítico”. Diante da condição evocada por Laura, a resposta de Paul é condizente com tais pressupostos, na medida em que reafirma seu lugar como analista e a convoca a falar sobre isso na sessão seguinte.

Para essa sessão (Ep. 6.01), surge uma Laura completamente diferente. Animada, conta que aceitou o pedido de casamento de Andrew, e com o claro intuito de provocar o alvo do seu amor, pergunta se Paul está feliz por eles e convida-o para o casamento. No entanto, como na semana anterior, Laura demonstra que está atuando mais uma vez: dissera “sim” ao noivo na noite anterior à sua análise. Percebendo tal movimento, Paul indaga se seu objetivo não seria responder a ele, diante dos acontecimentos da última sessão. O que se segue é a mais clara expressão de resistência sob a forma de transferência: Laura rejeita as interpretações de Paul, parece imersa em pensamentos sobre o analista, seja fazendo perguntas pessoais ou declarações como: “Acabei de ter um pressentimento assustador. Eu sei que é bobagem, mas [...] não sei, é só um pressentimento de que algo poderia acontecer a você.”, quando depois de uma longa pausa, Paul lhe pergunta sobre o que está pensando. Tal como descreveu Freud ([1916-1917]1996), Laura comporta-se como se estivesse fora do tratamento.

Em que pese o fato de que elementos de resistência ainda permaneçam, Laura retorna por breves momentos à associação livre e descreve uma visita que ela e Andrew fizeram a Natalie, ex-namorada de Andrew, agora casada e mãe. Em todo o relato, Laura manifesta repulsa à ideia de casar-se, utilizando associações como a de uma prisão em que a mulher é “domesticada”. Ainda assim, depois dessa visita, ela dissera o “sim” ao casamento com Andrew. Claramente, as intervenções subsequentes de Paul objetivam compreender o porquê de tal decisão de sua paciente. Laura é direta: “Você realmente não entende por que eu disse ‘sim’ a ele? Foi porque você disse ‘não’ para mim”.

No diálogo que se segue, o analista encontra uma brecha para adentrar o território que parece ter sido a causa do complexo patogênico que propiciou a emergência de tamanha intensidade transferencial. Na ocasião em que sua mãe morrera, Laura, então com quinze anos, passou um verão na Califórnia com um casal sem filhos, David e Célia. Para ela, esse verão fora muito significativo, porque permitiu que ela se afastasse do pai, cuja influência ela denominava de “fumaça tóxica”. Laura sentiu-se atraída por David e desapontou-se quando a família verbalizou que, embora quisessem uma filha exatamente como ela, não poderiam adotá-la. Paul entende que sua paciente está reeditando a experiência que viveu no passado, em que David apresentava uma alternativa segura em oposição a seu pai, assim como o analista em relação a Andrew.

A resistência de Laura, então, emerge novamente. Depois de deixar claro que não queria que Paul a adotasse, mas dormisse com ela, Laura levanta-se, afastando-se fisicamente do assunto em questão. Novamente, Laura insiste que Paul a deseja, e defende a realidade do amor entre eles. Para Laura, Paul está morto – ou casado, o que para Laura tem a mesma representação – e só sua presença o faz voltar a viver. Apesar da tentativa do analista de encerrar a sessão, fazendo com que sua paciente volte na semana seguinte para dar continuidade ao processo analítico, Laura exige uma resposta inequívoca acerca dos sentimentos de Paul por ela. Seguro, Paul lhe diz um “não”, ele não a quer.

Na sessão seguinte (Ep. 11.01), Laura chega atrasada. Visivelmente ansiosa, justifica-se, mas comete um ato falho que a denuncia: já estava atrasada antes mesmo de o imprevisto a que ela acusou ser o responsável pelo atraso ocorresse. Quando o analista chama a atenção para tal, Laura reage agressivamente. Prevendo o fracasso do manejo de uma transferência amorosa tão implacável, Paul pondera se não seria o momento de ambos discutirem se o trabalho está sendo produtivo, ou, nas palavras dele “se tem feito bem ou não” a Laura.

Não obstante a reação hostil de Laura diante da possibilidade de encerar o tratamento analítico, Paul tenta dar prosseguimento à sessão, pois julga que tocou num ponto importante para o progresso analítico de Laura: sua raiva, expressa no seu atraso àquela sessão – que ela admitiu considerar não comparecer. Em toda a sessão, Laura demonstra essa raiva, sendo agressiva e descartando completamente as interpretações de Paul. Como ocorre frequentemente, é possível compreender suas associações seguintes como a expressão da luta empreendida entre a forte resistência que se ergueu na paciente e as exigências do trabalho de investigação analítica. Laura diz não ter anunciado a seu pai que irá casar-se, não quer “dar-lhe expectativas”, o que o analista lê como “não quero que se torne real”. Laura concorda, diz que se sente traindo o namorado por estar indiferente à situação. Sente-se como uma aberração sob o olhar julgador dos outros, que esperam o que ela fará em seguida. O analista, então, lhe avisa que o tempo de sessão acabara, e Laura têm uma reação de extrema agressividade, mais uma vez o acusando de expulsá-la da análise. Paul esclarece afirmando não estar expulsando-a, mas pedindo que ponderem se essa terapia está fazendo-a melhorar, sobretudo porque ela se recusa a ser sua paciente, demandando que ele a trate como alguém por quem está apaixonado.

– De repente, você não é mais um analista bom o bastante? Sou a primeira paciente a se apaixonar por você, Paul? Você é analista há vinte anos. Não deveria saber o que fazer nesses casos? Pelo amor de Deus, apenas lide com isso. Talvez não possa tratar-me porque está apaixonado por mim também.

– Não posso tratá-la porque os limites têm sido ultrapassados frequentemente. E os ultrapassa dizendo-me que não quer mais ser minha paciente.

O episódio seguinte (Ep. 16.01) começa com Laura narrando com riqueza de detalhes seu encontro com Alex, outro paciente de Paul, que Laura conhecera por acaso ao fim da última sessão. Entretanto, em vez do ambiente do consultório, as cenas acontecem em “tempo real”. Após a primeira interrupção de Laura, é possível perceber que Paul estava imaginando tais cenas. O analista está visivelmente perturbado com a ideia da interação sexual entre seus pacientes, e é nítida a relação de contratransferência que se estabeleceu entre ele e Laura. Através da narrativa imagética, que se reveza entre o rosto de Paul, bastante sério, e o de Laura, que demonstra intenso prazer em sua narrativa, sorrindo e olhando diretamente para o analista, é possível inferir que o analista está, nesse momento, como dissera Freud ([1915]1996), travando uma luta em sua própria mente, contra as forças que procuram arrastá-lo para abaixo do nível analítico.

Paul, então, faz sua primeira intervenção assinalando que não encarava como coincidência o fato de Laura ter dormido com um dos seus pacientes, assim como não fora coincidência a forma que escolheu para contar que estava apaixonada por ele: dormindo com outro homem. Sabemos que, na clínica psicanalítica, a escuta não se restringe somente às palavras, mas também os limites que a própria palavra impõe ao sujeito falante, ocasionando, por sua vez, interrupções na cadeia associativa. Por conseguinte, encontra-se no campo dos atos um dos maiores impasses assinalados por Freud ao trabalho analítico. Para Lacan (1967-1968), o ato é “sua dimensão significante”. Tal pressuposto mostra que, tal como as palavras, o ato pode ser escutado, na medida em que o sujeito é responsável não só pelo que diz, mas também pelo que faz, ainda que suas ações pareçam completamente impulsivas.

Laura diz que se lembrou da mãe naquela noite: seu processo de doença e a solidão relacionada à perda. Entretanto, nega-se a interpretar o porquê de ter-lhe ocorrido tal lembrança. Embora Paul atue preparando caminho, mediante interpretações e construções, para a conscientização da paciente, é clara a luta empreendida pelos mecanismos de defesa do ego de Laura, que não abandona suas resistências: volta a falar sobre Alex, diz que ele vai buscá-la depois da sessão. Terminou definitivamente com Andrew, por ele ser “um ótimo homem, que irá encontrar alguém que a mereça”, mas, ao mínimo comentário de Paul sobre os sentimentos do seu ex, Laura se irrita, acusando Paul de não cuidar dela e de expulsá-la da análise.

Laura afirma ainda que Paul está apaixonado por ela e discorre sobre a realidade do que sentem, com o argumento de que sabe ser parte da terapia que ele descubra por que ela está apaixonada por ele, mas já que, em todas as situações, é o passado que determina por quem nos apaixonamos, o amor dela é irrefutável. Assegura que Paul se engana quando pensa que ela é como pacientes que se apaixonam por seu analista, por idealizá-los. Ao contrário, ela o vê com suas imperfeições. Laura parece encarnar o “leigo instruído” que Freud descrevera em “Observações sobre o Amor Transferencial” ([1915]1996), mas, diferente desse personagem que seria “a pessoa civilizada ideal, em relação à psicanálise”, Laura é uma figura contemporânea que, em seu discurso, demonstra conhecimento sobre a técnica e o utiliza como argumentos para convencer seu analista de que o enamoramento manifestado na situação analítica é real.

Quando Paul intervém, perguntando se o que Laura deseja é ajudá-lo para que ele possa ajudá-la em retorno, ela foge do assunto. Diz que odeia a si mesma e está cansada de sentir-se assim. Embora Paul tente abordar o tema – que nunca fora trazido à análise por Laura –, ela resiste mais uma vez, devolvendo as perguntas de Paul, tentando analisá-lo. Com o fim da sessão, Paul vai até a janela do seu consultório e observa o encontro entre Laura e Alex. Laura vê que Paul os observa, e é possível inferir que ela conduziu tal situação para que Paul pudesse vê-los juntos.

Na sessão seguinte (Ep. 21.01), Paul tenta abordar o fim da análise de Laura, a ser feito de forma gradativa. Laura diz, decidida, que esta será sua última sessão. Irônica, pergunta se Paul sente-se bem como ela, e responde, ela mesma, que ele parece aliviado. Paul pergunta como foi a semana de Laura. Ela fala de uma situação de emergência com uma menina de quinze anos – idade que ela tinha quando sua mãe morreu. A paciente de Laura ficara sem respirar por alguns minutos e, embora a situação tenha sido contornada, ela culpa-se por isso. Percebendo a identificação com a menina, Paul pergunta quem era responsável por ela na ocasião em que sua mãe morreu – situação que Laura descrevera como uma “espécie de morte para ela também”. Laura reage como se anunciando a defesa da sua repressão: “Esse é o problema com a psicologia, Paul. A gente cava e cava, e descobre várias verdades sobre nós mesmos. E chegamos a lugares dolorosos, mas que bem isto faz, Paul?”

Após intervenção do analista, Laura fala do trauma da morte da mãe. Discorre sobre os flashes de memória que lhe ocorrem, e as fantasias sobre o desaparecimento do seu pai que costumava ter. Descreve sua vida com o pai extremamente dependente como “sufocante” – sem ar, como a paciente de Laura –, ela não queria continuar a viver daquela maneira. Foi quando ela foi para a Califórnia, passar o verão com David e Celia. Laura conta, então, que voltou a ver David, que ficou hospedado em sua casa por um tempo e que o seduzira, como em “Lolita”. Laura relata o envolvimento entre ela e David de uma perspectiva romantizada, define toda a situação como “adorável”. Envolto na relação transferencial com a paciente, Paul fica sensibilizado com a história, também nunca trazida antes, mas, ao tentar abordar o assunto com Laura de uma perspectiva analítica, ela minimiza a situação, apelando para a transferência amorosa: anuncia a Paul que terminou seu relacionamento com Alex, buscando uma reação do analista. Laura declara, então, que o incidente com sua paciente ocorrera porque estava pensando no analista, e julga que sua saída da análise terá o efeito de cessar a “influência negativa” que ela acredita que Paul tem sobre ela.

Em que pese tal anúncio, Laura entra em contato com Paul e retorna na semana seguinte (Ep. 21.01). Seu pai está hospitalizado, e ela reclama uma sessão a fim de conversar sobre isso. No entanto, Laura acaba falando do seu envolvimento com David, desta vez sob outra perspectiva.

– Foi nojento. Acho que teve um momento em que eu queria fugir, mas era tarde demais, porque ele disse que eu estava pronta.

É possível admitir, nesse momento, pela mudança de vislumbre ante sua experiência com David, que Laura conseguira recordar, através da transferência, o conteúdo reprimido que a impulsionava à repetição (acting-out).

– Queria que ele me pegasse, Paul. Que me levasse para longe daquela casa. Para me levar para longe da morte que pairava por lá. Só queria que me ajudasse a fugir. Nunca quis que ele dormisse comigo.

Embora, a essa altura, Paul tenha cometido o equívoco de permitir que sua contratransferência atravessasse os limites desejáveis em uma análise, chegando a se declarar a sua ex-paciente durante essa sessão, ele faz uma intervenção que permitirá, posteriormente, o sucesso da análise de Laura:

– Acho que o verdadeiro estrago que David fez, foi que ele destruiu sua habilidade de se comunicar com os homens em um sentido não sexual.

Laura rejeita a interpretação de Paul, e o resultado é a exigência que se posicione acerca da demanda de amor que ela lhe endereça. Entrementes, o que se segue – agora fora do setting analítico – é a expressão de que Laura obteve êxito em elaborar seu trauma: tal arranjo só vem a ser exposto pela contratransferência de Paul, que a procura para declarar definitivamente seu amor.

Paul vai até a casa de Laura e esta, depois de argumentar com seu ex-analista que aquele enamoramento que Paul diz sentir não é real, ela levanta-se, sutilmente indicando que quer que ele a siga – o que ele faz após um tempo. Paul encontra Laura em seu quarto, sentada em sua cama. Assim que ela o vê, começa a se despir. A cena é cortada. Em seguida, Paul está diante do consultório de Gina, sua supervisora. Envergonhado, Paul descreve o que ocorreu entre ele e Laura, e julga ter tido um ataque de pânico que o fizera sair correndo da casa de Laura. No entanto, a ansiedade que tal situação provocara em Paul fazendo-o partir em retirada, pode ser interpretada diante de sua ética profissional. Em que pese o analista ter tropeçado no manejo da transferência de sua paciente, como sujeito castrado, provocou a si mesmo o impedimento necessário para manter-se em abstinência. Ironicamente, a análise de Laura foi bem-sucedida, pois ela conseguiu elaborar a experiência que a empurrava a repetir, no plano motor, uma situação traumática, reproduzindo o material antes recalcado no plano psíquico. Mas assim como sugere a série em sua cena final – onde se é possível vislumbrar de uma perspectiva externa do consultório de Gina – a análise de Paul se inicia.

 

Considerações Finais

É irrefutável que a Psicanálise não está mais restrita ao ambiente acadêmico. Através de uma perspectiva privilegiada, pois como assinala Alain Badiou (2004, p.31)1, ”[...] o cinema é uma arte de massas porque é a arte da imagem, e a imagem pode fascinar a todos”, as séries televisivas e o cinema têm difundido amplamente tais conceitos e, por consequência, possibilitando, em maior ou menor grau, a transmissão desse conhecimento. Ao que se sabe, no entanto, o próprio Freud era contrário à ideia da psicanálise filmada, pois acreditava impossível representar de modo fidedigno o que se passa numa sala de análise (LACOSTE, 1992). As limitações de tal recurso aplicado a uma série televisiva são também reconhecidas: paciente e analista são fictícios, e não se tem acesso a informações além daquelas que podem ser alcançadas como espectador.

Não obstante, o absoluto sucesso da série, com mais de uma dezena de adaptações em todo o mundo, ela é digna de exame atencioso; sobretudo, por aqueles que têm a Psicologia – e mais especificamente, a Psicanálise – como instrumento de estudo. Para além do fascínio que acompanha o espectador convidado a adentrar o misterioso universo da análise clínica, deve este estudioso problematizar quanto às especificidades de tal justaposição. Podem afirmar alguns que as angústias, os erros e os fracassos de Paul inseridos na trama constituem uma ofensa à teoria, mas são esses tropeços que justamente fazem a transferência primária do espectador com a arte.

Dito isso, não implica contradição afirmar que tanto a paciente Laura quanto o analista Paul poderiam romper a barreira da ficção. Para o espectador, tanto quanto para o analista, tais personagens possuem características de pessoas reais: ela, atuando na resistência o material complexivo que seu ego ainda não fora capaz de elaborar; ele, um analista comprometido com a escuta clínica, dando ao espectador em seus silêncios, bem como em suas intervenções, a impressão de que trabalha ativamente na interpretação dos conteúdos trazidos, na tentativa de resgatar da repressão aquilo que Laura não sabe que sabe. Não obstante, comete erros na medida em que deixa que invadam o território da análise de sua paciente os seus próprios conteúdos e, por pouco, não leva, ele mesmo, o tratamento de Laura à ruína. Em última instância, pode-se dizer que In Treatment nos apresenta um terapeuta, que é, antes de tudo, humano – e se reconhece como tal.

Ademais, In Treatment admite ponderações concernentes ao desejo do analista: pode ele desejar mais do que uma análise chegue até um termo (considerando-a como interminável)? Em caso positivo, quais as implicações que se apresentam ao analista e ao analisando? Trata-se de uma análise? Ante o seu desejo, ainda que manejado eficazmente em função de uma análise pessoal consistente, formação teórica permanente e supervisão, pode um analista “imunizar-se” pela neutralidade ante as demandas de amor? O caso Paul-Laura deixa reticências quanto a isso.

 

Referências

BADIOU, A. Pensar el cine 1: imagen, ética y filosofia. Buenos Aires: Ed. Manantial, 2004.         [ Links ]

FREUD, S. A dinâmica da transferência [1912]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.12, p.107-119.         [ Links ]

FREUD, S. Sobre o início do tratamento [1913] (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise). In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v.12, p.161-187.

FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar [1914]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 12, p.193-203.         [ Links ]

FREUD, S. Observações sobre o amor transferencial [1915] (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise III). In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.12, p.75-188.

FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise [1916-1917] Conferência XXVII: Transferência. In:______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.16, p. 433-448.

LACAN, J. O Seminário, Livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.         [ Links ]

LACAN, J. Seminário XV: o ato psicanalítico [1967-1968]. Inédito.         [ Links ]

LACOSTE, P. Psicanálise na tela: Pabst, Abraham, Sach, Freud e o filme Os segredos de uma alma. São Paulo: Zahar, 1992.         [ Links ]

SÉRIE “In Treatment”. Direção: Rodrigo García. Roteiro: Rodrigo García, baseado em Be’Tipul. Ano de lançamento: 2008.         [ Links ]

 

 

Recebido em 11/11/2013
Aceito em 21/11/2013.

 

 

* Graduada em Psicologia pela Universidade Salvador – UNIFACS em 2013. E-mail: gbrtrindade@gmail.com
** Psicólogo. Mestre em Psicologia. Doutorando em Psicologia na UFBA. Professor Assistente da Universidade Salvador, UNIFACS. Psicanalista. rui.diamantino@gmail.com
1 “[...] el cine es un arte de masas porque es arte de la imagen, y la imagen puede fascinar a todo el mundo”. Tradução livre dos autores.