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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.14  Salvador Nov. 2013

 

Suicídio assistido mar adentro...

 

Assisted suicide "The sea inside"...

 

 

Marli Piva Monteiro*

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

Baseando-se no filme “Mar Adentro”, a autora focaliza a angústia existencial, a morte, única certeza do ser humano, e detém-se sobre a questão do suicídio assistido, considerando a autenticidade da decisão sobre a morte e a autonomia.

Palavras-chave: cinema; psicanálise; morte; luto; eutanásia; ortotanásia; distanasia; suicídio assistido; autonomia.


ABSTRACT

Death as the only certainty of human being is focused and specially on the view of assisted suicide as a legal decision or an act of autonomy. The plot of Almendrabar’s film “The Sea Inside” is taken as a background.

Keywords: cinema; psychoanalysis; death; dysthanasia; mourning; euthanasia; orthotanasia; assisted suicide; autonomy.


 

 

A câmera acompanha o nosso olhar e as suas escaladas delirantes para ver o mar – ser livre. Premiadíssimo, inclusive com o Volpi Cup e com o de melhor ator para Javier Bardem, o filme traz o problema instigante da morte de forma bastante atual. Ramón Sampedro, vítima de um fatídico acidente após um mergulho que provocou um traumatismo craniano, está definitivamente segregado da vida, inerte no leito, com a única possibilidade de mover os olhos.

Os progressos da tecnociência facilitaram o envelhecimento prolongado e, consequentemente, doenças degenerativas, com suas complicações. Além disso, criaram mais recursos para a sobrevida nos centros de tratamento intensivo, o que vai implicar dois grandes problemas: primeiro, que esta questão se tornou uma questão de saúde pública e segundo, que não se pode mais evitar a discussão sobre a eutanásia e suas variáveis, inclusive o suicídio assistido.

Na legislação brasileira, a eutanásia ainda é vista como homicídio. A definição do conceito de morte, então, se torna um complicador para as questões de transplantes e de pacientes terminais. No entanto, existiria de fato um conceito de morte fidedigno e consensual que permitisse estribar a eutanásia?

A morte, a grande inimiga da maioria dos homens, é seguramente, a sua única certeza e razão da sua angústia mais definitiva – a angústia existencial. De todos os seres vivos, o homem é o único que sabe que vai morrer, só não tem certeza de como, quando ou onde. Encaramos a morte como um fenômeno estranho e incompreensível, principalmente porque a solução da morte é o desconhecido que nos atemoriza. Olhar a morte como parte da vida, como fazem alguns povos orientais, é uma difícil arte que possibilita reduzir o sofrimento humano perante a morte. Ou melhor, a questão presente no filme está mais ligada ao morrer que à morte.

A mitologia já caracterizava o médico como “aquele que vence a morte”. Asclépio, deus grego que era filho de Apolo, aprendeu a arte de curar com o centauro Quiron e adquiriu a habilidade de ressuscitar os mortos.

A situação de morrer inquieta e perturba médicos, enfermeiros e todo o staff num hospital, bem como familiares e amigos, porque expressa o medo de cada um ante a morte. O estudante de medicina é preparado para ver a morte como o seu maior adversário e, por ele, empenha-se a lutar como se, por vezes, a vida fosse o bem maior, não importa a que preço. Uma das grandes angústias para a maioria dos médicos, ao constatar a morte do seu paciente, é a vivência da culpa por terem falhado, culpa por não terem sido capazes de vencer a morte, de não serem onipotentes como lhes cobram e eles próprios se exigem.

Se a morte ocupa tantos estudiosos da medicina, antropologia, filosofia, psicologia e todas as religiões, na tentativa de encontrar explicações para um além da vida, o morrer continua sendo o momento doloroso e único para cada um ante o qual não se encontram fórmulas nem respostas.

“Boa morte ou morte digna” é o que significa o termo grego eutanásia, usado pela primeira vez pelo historiador latino Suetônio, no século II d.C., ao descrever a morte suave do imperador Augusto. Séculos depois, Francis Bacon, em 1623, utilizou o termo em sua Historia vitae et mortis, como sendo o “tratamento adequado para as doenças incuráveis”. A expressão suicídio assistido é bem posterior e acontece quando uma pessoa solicita o auxílio de outra, caso não seja capaz de perpetrar o ato. Neste caso, é preciso que o doente esteja consciente e manifeste explicitamente sua opção pela morte.

Ramón vale-se de toda sua criatividade para continuar mergulhando no abismo vital em que se projetou e continuará se lançando a cada dia com ou sem palavras; compondo versos ou pintando quadros na sua imaginação; fazendo de conta que vive até que o tédio e o cansaço o vencem e, numa última tentativa de sentir-se vivo, ele se propõe a lutar pela causa da sua morte. Decide encontrar alguém que o ajude a perpetrar um suicídio assistido. As menores nuances desse desejo, percebidas por alguém próximo, ecoam como uma terrível ameaça. Todos se assustam e reagem mal à vontade de Ramón Sampedro de interromper a sua incansável luta diuturna para supor que estava vivo. Apenas a sua última vontade atendida poderia, depois de tantos anos, assegurar-lhe isso.

Em 1999, Lepargneur definiu Eutanásia como o emprego ou abstenção de procedimentos que permitem apressar ou provocar o óbito de um doente incurável, a fim de livrá-lo dos extemos sofrimentos que o assaltam.
Atualmente, define-se a Eutanásia em dois tipos de morte: a Ortotanásia, é a supressão dos cuidados terapêuticos inúteis porque se tem a certeza da evolução inexorável para a morte. Neste caso, permite-se que a natureza conclua sua evolução; e a Distanásia, é a manutenção persistente de medidas absolutamente comprovadas como ineficazes prolongando apenas o sofrimento do paciente. A defesa do suicídio assistido pauta-se na liberdade de escolha do homem, do paciente, que, autônomo e competente, decide interromper seu prolongado sofrimento irreversível em condições em que a qualidade de vida é a pior possível.

O filme retrata exatamente uma questão desse porte. Ramón Sampedro defende seu direito à morte, alegando que a vida não pode ser imposição de ninguém e nenhum outro tem mais motivos para considerar o que mais convém a ele. Em defesa da vida, estão os religiosos, que admitem a sacralidade da vida como dom do criador e, portanto, jamais podendo ser interrompida sob qualquer pretexto, a não ser por decisão divina. Quanto a essas questões dogmáticas, nada se pode objetar e nenhuma discussão pode ser encaminhada.

A pressuposição de que o homem não é o dono da sua própria vida nega-lhe até o direito de questionar, mas, muito mais que isso, iguala a todos os que vivem em condições de sofrimento e não consegue sequer admitir que nem todos preferem a morte, como bem coloca Sampedro, no filme. A sua individualidade é uma primeira garantia do seu direito, e ele o destaca com muita precisão.

A lei pondera a discussão sobre a autonomia pela possibilidade da desconfiança e o desgaste na relação médico-paciente ou a possíveis atos por motivos usurários como heranças, seguros, pensões, etc., ou ainda pressões psíquicas com a condição de “estorvo” para familiares. Do ponto de vista jurídico, a escola positivista diz que cada um é dono de si mesmo, e o suicídio é um direito do titular da vida, não se podendo impedir-lhe esse direito quando já não lhe convém viver. A lei não pune o suicídio, pois seria inócua a pena aplicada a quem não sente o instintivo medo da morte.

Por outro lado, há quem considere a premissa falsa porque o homem vivendo na sociedade, sua vida não lhe pertence, mas aos que por ela têm algum interesse. A vida é um bem inalienável que não pertence ao indivíduo, e a ninguém é dado o direito de prover ou antecipar a morte de outrem. O direito à vida continua inviolável.

Havendo sugestão de suicídio, deve haver o consentimento do paciente reconhecido como excludente de ilicitude. A participação de terceiro incluiria médico, enfermeira ou farmacêutico de quem se exigiriam juízos técnicos.

O suicídio assistido só pode ser concebido por manifestação expressa do paciente em virtude de enfermidade física ou mental comprovada por médico. A morte deve ser iminente, a orientação ou auxílio dado por profissional da área médica e haver total ausência de interesse por parte do médico. Todos os casos devem ser analisados nas suas particularidades, de acordo com a relevância das questões, aplicando-se o princípio que melhor convenha à situação no caso.

De todo modo, a questão é definir se alguém, cognitiva e eticamente competente, sujeito a atroz sofrimento que o torna consciente, pelos motivos que lhe competem, de considerar injustificável a sua sobrevida, tem ou não o direito moral de escolher terminar o seu trajeto neste mundo. Ou se essa decisão cabe a terceiros supostamente mais competentes porque instados pelas contingências ou porque são capazes de uma análise imparcial dos interesses em conflito, do paciente, familiares, dependentes ou da sociedade.

É importante lembrar que, mesmo sendo causa da nossa angústia maior, a morte é nossa companheira no dia a dia, como bem frisou Heidegger. A morte, queiramos ou não, é uma etapa da vida e é no momento em que nascemos que começamos a morrer. Ainda assim, em nosso inconsciente não há registro da morte; para o nosso inconsciente, somos todos imortais. Vemos a morte como coisa do outro. Os desejos de morte dos entes queridos, ainda que com a morte próxima, costumam incomodar os familiares extremamente, sobretudo quando a doença causa inequívocos incômodos e prejuízos.

Apesar dos cuidados que lhe prestavam a cunhada, o sobrinho e o irmão, somente no final um desabafo do irmão deixa patente o quanto lhe custava a vida do irmão doente. O seu comportamento teimoso e a sua recusa ao desejo de morte do irmão velavam seus desejos inconfessáveis de livrar-se dele. Na discussão que tem com o irmão obstinado que não admite o seu desejo de morrer, Ramon lhe diz que não aceita ser “escravo da sua ignorância” e, a partir daí, o irmão desabafa: “Eu, minha mulher e meu filho somos escravos seus. Deixei o mar para viver neste horto de merda...”.

O interesse de um indivíduo em morrer deve-se a uma razão aparentemente simples, ninguém a não ser o próprio indivíduo é mais capaz para decidir sobre a sua qualidade de vida, e é isso que vai determinar o seu desejo de interrompê-la.

O filme tem o grande mérito de conseguir abordar tema tão complexo focalizando um drama tão pungente, sem exageros melodramáticos, sem pieguice, lágrimas ou arroubos de piedade. Ramón Sampedro se dá conta da ameaça que ele representa ao dizer que quer morrer e afirma: “dizer que quer morrer é contagioso...”. Poeta e inteligente, constrói uma vida de benéficas alucinações, como quando quer ir ao mar “que lhe deu a vida e a tirou”, e fala para a advogada que tenta convencê-lo de que a vida vale a pena: “Quer ser minha amiga? Respeite minha vontade”.

Ele sabe curtir o pouco que lhe resta de possibilidades, usando o artefato que improvisou para escrever poemas, ouvindo músicas e acariciando pessoas com as palavras. Advoga a liberdade dos que querem viver e pede apenas que respeitem a dor dos que querem morrer. Sampedro insiste em que, quando faz suas afirmações, fala por ele. Ele não é o representante dos tetraplégicos como quer o padre, ele é o tetraplégico que acha que não pode amar. Em 13 de novembro de 1996, Ramón Sampedro dirige uma carta aos tribunais que não o quiseram ouvir:

Senhores Juízes,
Negar a propriedade privada de nosso próprio ser é a maior das mentiras culturais. Para uma cultura que sacraliza a propriedade privada das coisas – dentre elas – a terra e a água – é uma aberração negar a propriedade mais privada de todas, a nossa Pátria e reino Pessoal. Nosso corpo, vida e consciência – nosso universo.

E faz uma afirmação contundente: “Viver é um direito, não uma obrigação”. Sampedro é um homem lúcido e consciente, requer seu direito à morte com a tranquilidade dos que sabem o que querem e parecem em paz consigo mesmo.

Do ponto de vista psicanalítico, Ramón Sampedro é Édipo ou Antígona na sua relação com o desejo?

É Antígona quando se opõe com intransigência às leis terrestres, à justiça e à religião. Situa-se ante a morte sem recuos ou temores, pois já se considera morto-vivo e escolhe a morte para cumprir seu desejo. Mas é Édipo quando escolhe a morte da qual risca seu ser, ao invés da morte acidental, prefere a subtração de si mesmo para não arriscar a outra morte. Na ambivalência do amor-ódio, avança para o ser-para-a-morte até alcançar o aniquilamento. A sua escolha é uma escolha sem opção. Despojado de tudo pela vida, decide abdicar do seu próprio ser.

Para Lacan (1978), o único ato bem-sucedido é o suicídio, uma vez que o sujeito inicialmente nascido objeto, passa a condição de sujeito, sofrendo o corte: definitivamente sujeitado à linguagem.

 

Referências

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GUYOMARD, Patrick. O gozo do trágico: Antígona, Lacan e o desejo do analista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.         [ Links ]

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MAR ADENTRO. Direção: Alejandro Almendábar. Produção: Alejandro Amenábar e Fernando Bovaira. Intérpretes: Javier Barde, Belén Rueda, Lola Dueñas, Mabel Rivera, Celso Bugallo e outros. Roteiro: Mateo Gil. Música: Alejandro Amenábar. Espanha. Itália. França, 2004. 1 DVD (125 min), color.         [ Links ]

ROBATTO,W. Eutanásia: sim ou não? Aspectos bioéticos. Salvador: EGBA, 2006. 75p.         [ Links ]

SIQUEIRA, B.; SCHRAMM, R. Fermin. Eutanásia: pelas veredas da morte e da autonomia. Ciência & Saúde Coletiva, v.9, n.1, p.31-41, 2004.         [ Links ]

 

 

Recebido em 09/11/2013.
Aceito em 25/11/2013.

 

 

* Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.