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Cadernos de Psicopedagogia

versão impressa ISSN 1676-1049

Cad. psicopedag. v.3 n.6 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

 

Narrativa e cura: a função terapêutica da palavra

 

Narrative and healing: therapeutical role of the word

 

 

Leda Maria Codeço Barone*

Instituto de Psicopedagogia da Universidade de Santo Amaro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora propõe estudar a função terapêutica da narrativa. Concebe a narrativa na perspectiva de Walter Benjamin de transmissão e organização de experiência humana. A partir da apresentação do uso da narrativa em três situações diferentes – a primeira informal e as duas seguintes em contexto de trabalho acadêmico – a autora discute a adequação do método ao problema estudado. Finalmente encontra no método psicanalítico, a interpretação concebida como ruptura de campo, valiosa contribuição para o estudo da questão proposta.

Palavras-chave: Narrativa, Cura, Função terapêutica, Método psicanalítico, Ruptura de campo, Organização de experiência.


ABSTRACT

The author proposes the study of the therapeutical role of narrative. She understands narrative in Walter Benjamin's perspective for transmission and organization of human experience. The use of narrative is presented in three different situations: a first informal situation and two other in academic enviroment, and the author discusses the metodological adequation to the studied problem. Finally, she finds out in the psychoanalytucal method the interpretation conceived as "breack of field" contributing preciously to the study of the proposed question.

Keywords: Narrative, Healing, Therapeutical role, Psychoanalysis, Break of field, Experience organization.


 

 

Narrativa e cura é o título de um precioso artigo de Benjamin (2002) no qual ele assim argumenta: …”a narração não criaria, muitas vezes, o clima apropriado e a condição mais favorável de uma cura? Não seria toda doença curável se ela se deixasse levar pela correnteza da narração até a foz?” Tomei de empréstimo o título desse inspirado trabalho por ele condensar de forma exemplar o que vem me ocupando ao longo de anos, pois as investigações que venho desenvolvendo em minha vida acadêmica, de um modo ou de outro, se relacionam com algum aspecto da narrativa.

Antes, porém, gostaria de falar de uma experiência particular que marcou de forma profunda o início de minha vida profissional. Ainda como estudante de Pedagogia, surgiu a oportunidade de assumir uma classe de pré-escola por ocasião do afastamento inesperado da professora efetiva. Isto ocorreu de forma abrupta e já no final do ano quando os alunos estavam bem apegados à professora.

Depois dos acertos necessários com a direção e orientação da escola, fui apresentada aos alunos que me receberam com muita inquietação e desconfiança. Terminadas as apresentações e já sozinha com meus 20 alunos, eis que me depara a maior decepção. Minha, e naturalmente dos pequeninos alunos, pois nenhum deles queria saber de mim nem me ouvia. Tentei falar alguma coisa para explicar a ausência da professora, mas nada. Pouco a pouco a confusão foi aumentando e alguns objetos começaram a ser atirados em mim. Quase entrei em pânico. Pensei em chamar a orientadora, pedir auxílio fora, mas contive-me. Queria muito aquele emprego e também confesso, fiquei com vergonha de não conseguir conter aquelas crianças. Súbito veio-me a idéia de contar uma história. Falei para a classe: “Conheço uma história, a do macaco que perdeu o rabo1 Vocês querem que eu a conte?” Fez-se um silêncio na sala. Repeti a proposta e agora já com a simpatia da classe. Pedi então que se sentassem comodamente no chão, onde também me sentei, e contei a história que ouvira tantas vezes de meu pai.

Depois desse episódio pude exercer tranqüilamente minha tarefa de professora. Hoje, há mais de 30 anos daquela aventura, ainda a tenho viva dentro de mim, tal fora o impacto que me causou. Confesso que na ocasião não tivera a mínima idéia de por que sugerira contar uma história e menos ainda porque escolhera aquela história entre tantas outras que costumava ouvir quando criança. Mas o certo é que, sem saber, falei também para meus alunos sobre coisas importantes que a psicanálise nos ensina. Entre elas destaco a dificuldade, já apontada por Freud, de nos desligarmos de nossos objetos de amor. Destaco, também, a raiva impotente com que reagimos diante da perda desses objetos. Assim, ao propor a história “do macaco que perdeu o rabo”, sem saber, interpretei. A história contada funcionou como interpretação psicanalítica. Interpretação selvagem, talvez, mas o certo é que ela pode denunciar o campo de insatisfação em que estavam presos aqueles alunos, o campo da impossibilidade de suportar a perda da professora querida. A história, porém, apontava para a possibilidade de substituição e de, mesmo assim, tocar a vida para frente. Pude então, assumir meu lugar de professora.

Em 1982 defendi minha dissertação de mestrado no Instituto de Psicologia da USP. Naquela ocasião interessava-me a questão dos efeitos, no leitor, do texto literário. Mais precisamente interessava-me investigar que efeitos a leitura de um texto de literatura infantil provocava no leitor. Na verdade tinha uma suspeita dos efeitos terapêuticos que o texto literário poderia ter sobre o leitor. Desprovida de um meio mais adequado de estudar minha questão, vali-me de um modelo “científico”, bem difundido onde pesquisava. Trabalhei com 5 classes de alunos utilizando tratamento estatístico. O trabalho recebeu 10 com distinção. Mas confesso que senti muita insatisfação. Foi como falar com absoluta certeza de algo que não tinha a menor importância. Se o trabalho foi considerado tecnicamente “perfeito”, ele pecava pela insignificância do que revelava. Quer dizer, o método não era adequado à investigação que me propunha.

Alguns anos depois, ainda inquieta com questões relacionadas à leitura, defendi, no mesmo Instituto, meu doutoramento. Nele estudei o percurso de alfabetização, de um menino de sete anos, ao longo do qual utilizei diferentes modalidades de contar histórias. No início do atendimento meu paciente apresentava uma escrita com uma espécie de ideogramas japoneses inventados por ele. Em seguida ele passou a pedir-me que escrevesse algo a partir das histórias que eu contava para ele, para que ele copiasse. Nessa fase sua escrita era cópia da minha escrita. Depois de um tempo trabalhando dessa maneira – eu escrevendo e ele copiando - ele me pede que escreva JATSON. Tomada de surpresa, digo não saber. Ele, então, com um aglomerado de letras escreve: “O fantástico Jatson”, no desenho que acabara de fazer. Utilizando teorias psicanalíticas faço uma análise deste percurso, a partir do conceito de narcisismo e dos três tempos do Édipo proposto por Lacan.

Proponho que a primeira escrita era uma escrita mágica onipotente, com função fálica criada para dar conta da impossibilidade de Marcel, de escrever. Como não sabia escrever Marcel “alucinava” uma escrita própria. Com ela Marcel marcava a onipotência do desejo: bastava querer para escrever.

Já a segunda forma de escrita – a escrita-cópia - é analisada a partir da identificação especular. Agora a escrita de Marcel é cópia da minha. Ou, dito de outra forma, sua escrita é uma escrita submetida à minha.

Antes, porém, gostaria de falar de uma experiência particular que marcou de forma profunda o início de minha vida profissional. Ainda como estudante de Pedagogia, surgiu a oportunidade de assumir uma classe de pré-escola por ocasião do afastamento inesperado da professora efetiva. Isto ocorreu de forma abrupta e já no final do ano quando os alunos estavam bem apegados à professora.

Porém, quando eu digo não saber escrever JATSON algo acontece. Desloco-me da posição fálica, ou seja, daquela que detém o poder de instaurar a lei e me coloco submetida a uma ordem anterior à minha vontade. Quer dizer, no caso, eu também me coloco submetida à lei da escrita. E, deslocando-me do lugar fálico, Marcel também pode se lançar à aventura de aprender.

Se no primeiro trabalho a minha questão era pertinente ao campo da psicanálise, o tratamento escolhido a descaracterizou. Já no segundo trabalho estive mais próxima da psicanálise: a questão estudada e a teoria utilizada eram pertinentes ao campo da psicanálise. Porém, neste segundo trabalho, usei a teoria como interpretação. Nele há uma espécie de aplicação da teoria com objetivo de explicar o que aconteceu na clínica. Esta é uma possibilidade, que é também, amplamente utilizada, ou seja: explicar algo que aconteceu na clínica a partir da teoria psicanalítica.

Porém, quais as conseqüências de deixar falar a clínica? Quais as conseqüências de, no lugar de usar teorias previamente estabelecidas para interpretar o que ocorre na clínica, apostar na potência heurística do método interpretativo criado por Freud? Esta é a questão de Herrmann. Ao observar as diferenças flagrantes entre as diversas escolas psicanalíticas a respeito de seus postulados, teorias e técnicas e o efeito mais ou menos semelhante na clínica, Herrmann levanta a hipótese de um operador comum presente em todas as formas de psicanálise e de psicoterapias também. Descobre este operador no método interpretativo, a ruptura de campo.

A partir da proposta de Herrmann de método interpretativo como ruptura de campo, vou propor uma nova interpretação do trabalho realizado. Isto porque, no atendimento de Marcel algo produziu efeito, e, convém, por isso, abrir novas trilhas de investigação, agora ancorada pelo método interpretativo.

Para efeito da discussão que pretendo aqui, vou tomar uma atividade realizada com Marcel. Trata-se da que denominei de Imaginação. Consistia, esta atividade, em ler uma fábula, parte por parte, e pedir que ele desenhasse cada uma delas, e, que ao final de cada desenho me narrasse o que havia desenhado. No final ele teria, unindo os diversos desenhos feitos, uma espécie de livrinho que serviria então para ser “lido” por ele. Acredito que tal atividade surgiu quando constatei que a fala de Marcel me suscitava imagens. Pensei que seria produtivo se conseguisse fazer com que ele da imagem pudesse narrar e, de minha narrativa, formar imagens. Pretendia trabalhar nesse trânsito: de narrativa para imagem e de imagem para narrativa. A fábula utilizada foi: A formiga e a pomba, de Esopo2.

Em seguida apresentarei a fábula que li, os comentários de Marcel, seus desenhos e sua narrativa.

1- “Corria pela floresta um regato de águas claras e borbulhantes, e sobre um talo de capim, na margem do regato, estava parada uma formiga. Tinha ela muita sede, e inclinou-se para beber água, mas ao fazer isso escorregou e caiu no riacho”.

 

Comentários de Marcel:

“O ratinho e a água.

O ratinho caiu na água. Aqui o queijo, as águas, peixe, polvo, árvores, cipó do macaco”.

Intervenção minha:

“Conte-me a história que você desenhou”.

Marcel:
“O mato. Tinha um rio que atravessava o mato. Naquele negócio, ‘tuco’ morava um rato. Ele estava morrendo de sede. Depois quando ele foi beber água do rio ele perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu no rio. Foi isso que desenhei”.

2- “Apanhada pela forte correnteza, a formiga foi arrastada, e, por mais que tentasse, não conseguia nadar para a margem. Nesse momento uma pomba passou, e ao avistar a formiga que se debatia, compadeceu-se do apuro dela. Partiu um galhinho de uma árvore próxima e jogou na água”.

 

Comentários de Marcel enquanto desenha:

“Aqui a árvore, aqui o pedaço de tronco da árvore. A formiguinha e aqui a pomba”,

Intervenção minha:

“Conte-me a história que você desenhou”.

Marcel:
“Tinha uma árvore e passou uma pomba. Quando ela viu a formiguinha sendo arrastada no rio, pegou um pedaço de uma árvore e jogou”.

3- “A formiga, sem perder tempo, subiu agilmente no galhinho, e finalmente conseguiu alcançar a margem com segurança”.

 

Comentários de Marcel, enquanto desenha:

“Aqui o sol, aqui as águas, página 3, as nuvens e o arco-íris”.

Intervenção minha: “Mas conte-me a história”.

Marcel: “Aqui o arco-íris, aqui as nuvens, o sol e a formiguinha se salvando”.

4- “Não muito tempo depois disso, a formiguinha saiu para um passeio e topou novamente com a pomba. Um caçador estava preste a apanhar a ave com uma grande rede”.

 

Comentários de Marcel, enquanto desenha:

“Aqui o caçador com a rede, a pomba, a formiguinha, a árvore, e página 4”.

Após minha intervenção:

Marcel:
“A pomba fugindo do caçador. O caçador tentando pegar a pomba com a rede. A formiguinha passeando”.

5- “Vendo o que ia acontecer, a formiga mordeu com força o calcanhar do homem, que gritou espantado. A pomba ouviu, assustou-se e voou”.

 

Comentários de Marcel, enquanto desenha:

“Aqui a pomba se assustando e voando. Aqui a formiguinha mordendo o calcanhar do homem”.

Marcel, após minha intervenção:

“O caçador tentando pegar a pomba. Aqui a formiguinha mordendo o calcanhar”.

Algumas linhas de investigação se abrem aqui. Uma delas nos leva acompanhar o borbulhar de representações surgidas a partir da primeira parte da fábula. Paciente e terapeuta são arrastados pela correnteza transferencial, ilustrando de maneira exemplar o que Herrmann descreve vórtice. Ao comentar tal experiência o autor propõe que o vórtice provoca uma espécie de momentos psicóticos nas análises, em que se confundem representações de realidade e de identidade, além do surgimento de buracos representacionais. Na experiência com Marcel há uma espécie de colagem do ouvinte à fábula contada. É o ouvinte que cai na água como a formiguinha da história. A formiga se transforma em ratinho e sobressai a sede: o ratinho morrendo de sede. Ao comparar a reação de Marcel às diferentes partes da fábula, percebe-se que, apenas na primeira, ele se desorganiza no sentido de confundir a identidade do personagem.

Outra via de investigação que me parece bastante fecunda seria acompanhar os efeitos de fala sobre o arranjo sempre instável do eu. No caso aqui rompe o distanciamento facultado pelo simbólico e a fala toma corpo. O próprio Marcel escorrega na água como a formiguinha da fábula e é tragado por ela. É um equilíbrio tênue que não suporta a sede do ratinho. Porém há um cipó do macaco que como a voz do terapeuta pedindo “conte a história que você desenhou” o retira da água, do afogamento. Há nesta fala pelo menos duas mensagens: uma de reconhecimento de Marcel como autor daquela produção, e, ao mesmo tempo, outra em que estabelece uma distância entre o sujeito e o objeto, distância esta que Marcel havia perdido pelo impacto da queda da formiguinha no texto.

Uma outra via, encontro, em acompanhar os efeitos de trânsito, de transferência que a atividade de Imaginação possibilita. Falo da passagem de representação por imagem e representação por palavra. Penso aqui em tratar da recuperação do valor criativo da palavra.

 

Referências bibliográficas

Barone, L.M.C. (1982). Literatura e ansiedade: um estudo sobre reações ao texto. [Dissertação - Mestrado - Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo].        [ Links ]

—————————————. (1993). De ler o desejo ao desejo de ler. Petrópolis: Vozes.        [ Links ]

Benjamin, W. (2002). Narrativa e cura. Jornal de Psicanálise (São Paulo), 35(64/65):115-116.        [ Links ]

Herrmann, F. (1999). O que é Teoria dos Campos.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: lbarone@unisa.br

 

 

* Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo
1 Trata-se de história do folclore brasileiro que narra as aventuras de um macaco que sofre variadas perdas e sucessivas substituições e que mesmo assim vai levando a sua vida.
2 Fabulas de Esposo recontadas por Robert Mathias, São Paulo, Círculo do Livro, s/d.

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