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Cadernos de Psicopedagogia

versão impressa ISSN 1676-1049

Cad. psicopedag. v.3 n.6 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

 

Linguagens e pensamento: introdução a uma abordagem interdisciplinar entre a psicopedagogia e a semiologia para a compreensão da construção do pensamento

 

Languages and thought: an introduction to an interdisciplinar approach between psychopedagogie and semiotics for the comprehension of thinking construction

 

 

Eliana Branco Malanga *

Instituto de Psicopedagogia, Universidade de Santo Amaro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho é uma primeira abordagem ao estudo da intensa relação entre o desenvolvimento do pensamento, em seres humanos, e seus mecanismos. Especialmente ele focaliza o papel das linguagens nesse processo, principalmente a linguagem verbal, falada e escrita. Vigostsky fez pesquisas importantes sobre a questão do desenvolvimento do pensamento infantil. Usamos seus estudos, bem como os de Paim e Jarreau, pelo lado da Psicologia e da Psicopedagogia. E tentamos pensar interdisciplinarmente usando esses autores e os pesquisadores de Semiótica e Linguistica Peirce, Saussure e Chomsky.

Palavras-chave: Linguagem, Psicopedagogia, Pensamento, Semiologia.


ABSTRACT

This work is a first approach to the study of the intense relationship between the development of thought, in human beings, and its mechanisms. Especially it focuses to the role of languages in this process, mainly the verbal language, spoken or written. Vigotsky did important researches about the question of child thought development. We use his studies, as well as those of Paim and Jarreau, by the field of Psychology and Psychopedagogy and we try to think in an interdisciplinary away using those authors and the Semiotics and Linguistics researchers Peirce, Saussure and Chomsky.

Keywords: Language, Psychopedagogy, Thinking, Semiotics.


 

 

Se aceitarmos que o objeto de estudo da Psicopedagogia seja a autoria do pensamento, temos como passo seguinte a compreensão de que o pensamento humano se formula através de uma linguagem, geralmente a linguagem verbal1. A linguagem verbal é talvez a forma mais característica da comunicação humana, mas não a única. Existem também as linguagens não verbais: o desenho, a pintura e a escultura, a música, a dança, o teatro (este misturando a linguagem verbal e a não verbal), a mímica, e, mais modernamente, o cinema e a televisão, que tal como o teatro, incluem também o uso da linguagem verbal, o desenho animado e a fotografia. Isso sem falar na linguagem gestual cotidiana.

Em teoria da comunicação a linguagem eqüivale ao código, o qual permite a elaboração das mensagens, que são emitidas por uma fonte e transmitidas através de um canal ou meio, atingindo um receptor, conforme ilustrado na figura abaixo.

 

Vigotsky (1997, pp. 37 e segs.) ressalta que existem formas de pensamento operativo que são desvinculadas da linguagem verbal, podendo ser anteriores a esta e sendo observáveis mesmo em alguns animais. Esse tipo de pensamento estaria ligado ao uso de ferramentas e outros meios materiais que permitem atingir objetivos práticos. Para ele, também algumas atividades relacionadas ao trabalho manual, inclusive agrícola, estariam ligadas a esse tipo de pensamento. É preciso ressaltar que Vigotisky se propôs, junto com outros pesquisadores soviéticos, a desenvolver uma psicologia marxista, e que para os marxistas, o caráter distintivo do ser humano se desenvolveu sobretudo pelo trabalho. Isto, contudo, não invalida sua observação a respeito do pensamento não verbal.

 

Psicopedagogia e linguagem

A psicanálise, em cujos fundamentos teóricos a psicopedagogia se apoia em grande parte para estudar os aspectos afetivos que se relacionam à cognição, valoriza os sonhos, que são manifestações do inconsciente através de imagens, mas que podem incluir fala. Nesse caso, não se pode falar em pensamento, no sentido de elaboração mental que visa à comunicação. Trata-se de um outro processo, de comunicação intra-pessoal, mas que foge, inclusive à regra desta, porque o processo de comunicação não é, via de regra, regido pelo inconsciente, embora possa, involuntariamente ser influenciado por este.

A comunicação, além de ser intra-pessoal pode ser interpessoal, grupal e de massa. Na comunicação interpessoal há uma troca de mensagens entre duas ou mais pessoas, que trocam entre si as funções de emissor e de receptor das mensagens. Embora essa permuta de papéis não ocorra obrigatoriamente, pois um dos interlocutores pode ouvir calado, ela é possível,dada a proximidade física (real ou intermediada por instrumentos como o telefone) dos interlocutores. Na comunicação grupal, também há um contato direto entre emissor e receptores da mensagem, mas estes são mais numerosos, de modo que tende a haver uma menor quantidade de troca de papéis. É a situação de uma aula ou de um espetáculo de teatro. O que distingue a comunicação grupal da comunicação de massa, é justamente essa possibilidade de que o receptor da mensagem se torne emissor de uma resposta, chamada de feed back ou retroalimentação pela teoria da comunicação. Na comunicação de massa, ao contrário, a via é de mão única. O telespectador, o leitor de um livro, jornal ou revista, quem observa um cartaz na rua, não podem se comunicar com o emissor daquela mensagem, utilizando-se do mesmo meio de comunicação através do qual estão recebendo a mensagem. Para tal precisam recorrer a outro meio, por exemplo, o telefone, uma carta etc.. Nos estudos referentes à relação entre o desenvolvimento do pensamento e a linguagem, interessam-nos especialmente os dois primeiros tipos de comunicação: a interpessoal, que o bebê terá com sua mãe e com os que o cercam na primeira infância e a intrapessoal.

Vigostsky (1993) considera a comunicação intrapessoal o elemento essencial para o desenvolvimento do pensamento. Para ele, a linguagem se inicia pelo uso social, de contato com outros seres humanos, ou seja, a comunicação interpessoal. A partir disso, a criança desenvolve a fala egocêntrica, que eqüivale a um pensar alto, e, posteriormente, esta se interioriza. Vigostsky (1993, pp. 15 e segs.) estudou crianças em idade pré-escolar e em idade escolar, colocando-as diante de situações de pequenos problemas para realizarem os desenhos que deveriam fazer durante o experimento. Ele verificou que diante de um problema, como a falta da cor desejada, a criança em idade pré-escolar fala mais consigo mesma, raciocinando na busca de uma solução que quando está no transcurso normal da atividade. Em crianças um pouco mais velhas, a fala egocêntrica foi substituída por períodos de silêncio. Quando o pesquisador perguntava a elas o que estavam pensando, o conteúdo da resposta se assemelhava ao da fala das crianças menores. Essa fala egocêntrica é econômica em informações, já que a fonte e o receptor da mensagem são a mesma pessoa, a qual está devidamente informada sobre o contexto a que se refere a mensagem. Limita-se, portanto, a comentários lacônicos, como “vou usar este” ou “vou fazer mais forte”. Essas mesmas crianças, em situação de comunicação interpessoal elaboram frases mais completas.

Antes de falar em simbolização, cabe entender as três formas de unidades de representação simbólica de acordo com a Semiologia:

a) Os índices, que apresentam uma relação causal com aquilo que representam, indicam ou significam. Por exemplo, o suor indica que a pessoa está sentindo calor, o trovão indica a iminência de chuva e assim por diante. Para que o receptor seja capaz de decodificar essa mensagem é preciso que ele conheça essa relação de causa e efeito.
b) Os ícones guardam uma relação de semelhança visual ou estrutural com a coisa representada. Por exemplo, o desenho ou a foto de uma casa, não representa a casa com exatidão pois é bidimensional, mas, por reproduzir aspectos estruturais semelhantes, permite a identificação do objeto representado.
c) Os signos têm uma relação arbitrária entre o que é representado (significado) e a forma de representar (significante). Formam códigos estabelecidos por um determinado grupo social para permitir a comunicação. É o caso da linguagem verbal, por exemplo.

" UM SIGNO NÃO É UMA ENTIDADE SEMIÓTICA FIXA , mas antes o local de encontro de elementos mutuamente independentes, oriundos de dois sistemas diferentes e associados por um correlação codificante. (...) Assim, os signos são o resultado provisório de regras de codificação que estabelecem correlações transitórias em que cada elemento é, por assim dizer, autorizado a associar-se com outro elemento e a formar um signo somente em certas circunstâncias previstas pelo código (Eco, 1991a, p. 40).

O filósofo norte-americano Charles Peirce (1995), que foi o primeiro a tratar da Semiologia como uma ramo autônomo do conhecimento, utilizou o termo símbolo utilizado para designar o que mais comumente se costuma chamar de signo, tal como exposto acima. De um modo geral, o termo símbolo é entendido como um signo ou um grupo de signos que adquiriram uma amplitude e uma quantidade de significados muito acima do padrão normal. Um símbolo acumula tal carga de significados em um processo social e histórico, no qual também influi nossa vida psíquica. Os símbolos estão ligados ao conhecimento dos conteúdos do inconsciente, mas também ao estudo das culturas, da arte, e, das religiões.

Quando dentro do universo da linguagem verbal, a linguagem simbólica costuma ser classificada a partir dos recursos utilizados em cada segmento do texto: alegoria, metafóra, metonímia, parábola, hipérpole, personificação etc.. Esta lista, contudo, não dá conta de explicar a linguagem simbólica, pois os símbolos possuem uma grande carga emocional, eles ultrapassam as fronteiras do racional. E aí se encontra sua especificidade, pois permitem a expressão de realidades humanas que não podem ser comunicadas pela linguagem referencial. É importante a relação entre a estrutura da linguagem poética e da obra de arte em geral e o símbolo, embora um não possa ser usado como sinônimo do outro. Mesmo porque, o símbolo pode ser usado em mensagem que não sejam artísticas. Esse uso, contudo, tende a desgastá-lo, esvaziá-lo de sua riqueza, na medida em que procura limitar seus significados. Já a linguagem poética tende a criar permanentemente novos símbolos.

Epstein (1997, p. 68) considera que os símbolos sejam um subgrupo dos signos. Um símbolo não seria nunca completamente ‘esclarecido’ explicitamente, isto é, sempre há um resíduo implícito. E existiria entre ele e o que representa um certo grau de semelhança, contudo essa iconicidade ou semelhança que existe entre o símbolo e a coisa simbolizada seria fruto de uma maneira comum de refletir e que subsiste nas duas coisas.

Essa impossibilidade de “esclarecer” e explicitar completamente um símbolo decorre da sua riqueza de significados. Para explicar um relação simbólica em linguagem referencial faz-se necessário um texto muito longo, o qual, por sua vez, não tem o poder de representação do original. Uma das características do símbolo é, pois, a densidade de significados, ou, visto de outro modo, seu poder de síntese.

"Os símbolos são concentrações de idéias expressas taquigraficamente, numa imagem, numa expressão. Sua característica mais geral é que envolvem sempre uma operação semelhante à metáfora, pois os símbolos são objetos sensíveis que são aplicáveis a entidades abstratas e não sensíveis. (...) Expandir um símbolo, interpretá-lo, tornar explícitos os seus significados equivale, no entanto, a descaracterizá-lo como símbolo. O pensamento simbólico, ao contrário do pensamento científico, não é analítico, mas condensa em um significante um punhado de significados. Ao contrário dos signos da ciência, que demarcam um campo contínuo e claro, os símbolos pressupõem uma ruptura de plano, uma descontinuidade, uma passagem a uma outra ordem. O paradoxo do símbolo consiste em que para interpretarmos o sentido do símbolo precisamos expandi-lo, e isto é feito em termos de sentenças literais. Aí perdemos o sentido do símbolo enquanto símbolo." (Epstein, 1997, pp. 70-71).

A respeito da função simbólica, Pain (1987 / 1991, p. 67) ressalta que para que o símbolo exista é necessário que haja uma superação da univocidade entre significante e significado no signo. Embora esta relação unívoca seja mais uma exceção do que uma regra na linguagem verbal, ainda que na função referencial, a carga simbólica que uma palavra (ou gesto, ou desenho ou som etc.) adquire depende de uma ampliação das possibilidades de significado.

 

As funções da linguagem

Não se pode perder de vista, ao falar das linguagens na constituição da autoria do pensamento, que estas podem atender a diversas funções, em especial a linguagem verbal, oral ou escrita. A função mais comum da linguagem é a referencial, que visa uma comunicação o mais possível exata e despida de ambigüidade. A função fática visa o contato entre os seres humanos, seu objetivo é diminuir o nível de ameaça diante da presença de outro ser humano e manifesta-se através das fórmulas de cortesia comuns no dia-a-dia da convivência social. Mas, a linguagem também pode servir à função emotiva, centrada na expressão da emoção da fonte da mensagem. A função conativa ou imperativa visa persuadir o receptor e influir no seu comportamento. Finalmente, cabe mencionar a função estética, que no caso da linguagem verbal pode ser chamada de função poética, e a função metalingüística, que permite a elaboração do discurso a respeito da própria linguagem.

A função poética (no caso da linguagem escrita) ou função estética (no caso das demais linguagens) está centrada na própria mensagem, no tratamento desta e no uso inusitado do código. Ela tem como uma de suas características a multivocidade do sentido.

A função referencial e a função emotiva da comunicação relacionam-se, respectivamente, às funções denotativa e conotativa do código lingüístico. A denotação é o primeiro significado de uma palavra dentro de um idioma. A conotação consiste em uma ampliação ou acréscimo dos significados, um sentido figurado para uma palavra, que, naturalmente não pode existir antes que ela possua um sentido próprio, a denotação. Portanto, existem palavras que possuem apenas sentido denoatativo, mas o contrário não é possível, " O que cosntituiu a conatação enquanto tal é o fato de que ela se instituiu parasiatariamente". (Eco, 1991b, p.46)

 

Comunicação e cultura

Quando se fala em linguagens, cabe sempre lembrar que elas só existem na situação de comunicação. Uma linguagem surge e se desenvolve em função da necessidade de comunicação entre os membros de um grupo. A comunicação ocorre dentro de uma cultura, e é ela que dá significado aos fatos e à comunicação.

Se cultura, nas palavras do antropólogo Clifford Feertz, “são as redes de significado” que giram em torno dos seres humanos, então as comunicações — linguagem, arte, música, dança textos escritos, filmes, gravações, software — são as ferramentas que os seres humanos usam para interpretar, reproduzir, manter e transformar essas redes de significado"(Harvey, 2001, p. 112).

Para Edward T. Hall (Apud Harvey, 2001, p. 112) a comunicação constitui o centro da cultura e, de fato, da vida em si. E Edmund Leach (Apud Harvey, 2001. p. 112) afirmava que a cultura comunica.

Existe uma tendência de ver a comunicação como uma mera transmissão de mensagens. Essa abordagem processual da comunicação se refere, desenvolvida por Norbert Wiener e outros ciberneticistas das décadas de 1940 e 1950 tratam da questão de como uma pessoa usa a comunicação para afetar o comportamento ou o estado mental de outra pessoa (Harvey, 2001, p. 112). Já a escola antropológica, influenciada pela semiologia, vê a comunicação como a geração de significados sociais por meio da transmissão de textos.

A Semiologia surge com os estudos do filósofo norte-americano Charles Saunders Pierce (1995), na segunda metade do século XIX. O lingüista suíço Ferdinand Saussure (1970), em 1915 retoma a questão propondo que a Lingüística seja parte de uma ciência maior que estudo as várias linguagens, e não apenas a linguagem verbal. O objeto de estudo da Semiologia (também chamada de Semiótica, embora Peirce denominasse “semiótica” ao fenômeno de atribuição do significado e “semiologia” o ramo que estudo esse fenômeno) é o estabelecimento dos significados, através da comunicação nos diversos grupos sociais, ou seja estudam como as comunicações estabelecem significado, reproduzem valores comuns e ligam pessoas em relacionamentos sociais. (Harvey, 2001, p. 112).

Na realidade, “comunicação” e “comunidade” vêm do mesmo radical “comum”, ou seja, compartilhado. Isto porque, as comunidades só existem como tal porque compartilham significados. É por isto que os antropólogos afirmam que as comunicações não podem ser divorciadas da comunidade e da cultura. Uma não pode existir sem a outra. (Harvey, 2001. p. 113).

Gimeno-Sacristán (2000, p.28) afirma que a construção do sujeito se dá em articulação com o recebimento da transmissão cultural, da crítica da mesma, do aprendizado da leitura e escrita e da possibilidade de que esse sujeito se situo no mundo que o rodeia. Ele utiliza o esquema abaixo:

 

A linguagem como determinante do pensamento

O conhecimento objetivo e desapaixonado da realidade foi o objetivo de estudiosos durante muitos séculos. A ilusão de atingi-lo foi a pretensão das primeiras gerações de cientistas. Hoje, temos uma melhor compreensão de como se dá a percepção da realidade e do quando nossas próprias crenças, nem sempre racionais, interferem nesse processo.

Entre o objeto, aquilo que é representado, a realidade, e a representação que dela se faz através do signo (no conceito de Pierce) ou do significante (da terminologia de Saussure) existe sempre um conceito, uma imagem mental, ou seja, uma construção mental a respeito da realidade percebida, que é o significado.

Na lingüística moderna, entretanto, a tendência dominante tem sido considerar a língua como organizadora da estrutura conceitual do universo e já se tornou lugar-comum afirmar que ela é “o molde do pensamento”, ou “o instrumento de análise ou recorte da realidade” (...); trata-se, em última análise, da tese clássica de W. von Hulboldt, para quem a língua é “o órgão construtor do pensamento” (“das bildende Organdes Gedanken”) (Blikstein, 1983, p. 40).

Pelo esquema de Chomsky (Apud Blikstein, 1983. p. 50), entre o estímulo externo e a percepção haveria a filtragem feita pelo sistema de crenças, estratégias perceptuais e outros fatores. Resta a questão de como se formaria esse sistema que seleciona e organiza a realidade percebida. Pode-se afirmar que é através da socialização que o ser humano adquire os modelos perceptivos através dos quais vê a realidade. Isto num processo individual de adaptação à sociedade, mas esta também constrói modelos perceptivos compartilhados a partir da práxis.

"Somente uma pequena parte das experiências humanas são retidas na consciência. As experiências que ficam assim retidas são sedimentadas, isto é, consolidam-se na lembrança como entidades reconhecíveis e capazes de serem lembradas. Se não houvesse essa sedimentação o indivíduo não poderia dar sentido à sua biografia. A sedimentação intersubjetiva também ocorre quando vários indivíduos participam de uma biografia comum, cujas experiências se incorporam em um acervo comum de conhecimento. A sedimentação intersubjetiva só pode ser verdadeiramente chamada social quando se objetivou em um sistema de sinais desta ou daquela espécie, isto é, quando surge a possibilidade de repetir-se a objetivação das experiências compartilhadas. Só então provavelmente estas experiências serão transmitidas de uma geração à seguinte e de uma coletividade à outra." (Berger, Luckmann, 1976. pp. 95-96).

Existe, pois, uma relação direta entre a experiência concreta e a organização do pensamento. Entretanto, não se trata de um contato direto e único. Os grupos sociais organizam sua experiência em forma de conhecimento com a finalidade de preserção da vida. Entretanto, essa experiência, ao organizar-se utiliza-se da mediação da linguagem, e, de certo modo, cristaliza-se, de maneira que, as novas experiências tendem a ser organizadas de acordo com os padrões pré-estabelecidos. A mudança desses padrões é um processo longo e cheio de atritos.

Por que organizamos nossa percepção desse modo? Porque a realidade é caótica e pouco significativa, a menos que seja filtrada e organizada pelo observador. Assim sendo, na dimensão da práxis vital, o homem cognoscente desenvolve, para existir e sobreviver, mecanismos não-verbais de diferenciaçãao e de identificação: dentro do próprio grupo social a que pertence, o indivíduo estabelece e articula traços de diferenciação e de identificação. A partir deste é que ele se torna capaz de discriminar, reconhecer e selecionar, por entre os estímulos do universo amorfo e contínuo do “real”, as cores, as formas, as funções, os espaços e tempos necessários à sua sobrevivência. (Blikstein, 1983, p. 60).

Os traços adquirem valores positivos e meliorativos ou negativos e pejorativos, transformando-se assim em traços ideológicos, os quais vão configurar os corredores semânticos ou isotopias. Os corredores semânticos formam os “óculos sociais” que vão dirigir a percepção e a cognição. É através, pois dos estereótipos de percepção que vemos a realidade.

Blikstein (1983, p. 63) explica a formação do aparelho perceptivo, através do qual a realidade será filtrada, e construída, ou como ele prefere dizer, fabricada.

O referente, que normalmente identificamos com a coisa, ser ou objeto percebido, não é, pois, a realidade propriamente dita, mas a realidade percebida através dos “óculos sociais” que permanentemente utilizamos. A compreensão de que a cognição se dá de forma tão complexa e mediatizada é um instrumento útil quando se a autoria do pensamento, que embora seja subjetiva na medida em que o indivíduo dá ao seus saberes uma carga de emoção, baseada nas suas vivências sociais, é marcadamente social e cultural em seus limites e contornos.

Em seu estudo sobre a questão da linguagem e seu desenvolvimento na infância, Souza (1997) ressalta a influência do meio social e do sistema ideológico na construção do sujeito, apoiando-se em Bakhtin.

“Bakhtin sugere, assim, que a distorção que o sujeito opera na compreensão da realidade não pode ser explicada exclusivamente pela história individual de um psiquismo, como pretende a psicanálise e busca as conexões esclarecedoras da verdade do sujeito nos sistemas ideológicos sedimentados no contexto social e que este se encontra submetido” (Souza, 1997, p. 62).

Mesmo quando se trata da manifestação artística como um caminho terapêutico, existe uma influência do meio cultural. Os afetos que se manifestam através do fazer artístico de crianças e adultos em situação de arte-terapia não estão totalmente desvinculados da influência do seu meio cultural. Assim como a linguagem (que só existe numa determinada cultura e grupo social) possibilita, limita e conduz o pensamento, também o código simbólico iconográfico é influenciado pela cultura.

A seleção dos temas, o valor dos contrastes, a utilização de certas cores ou materiais, a busca da textura, de luminosidade ou de horizonte, assim como tentativas de negação de todos esses valores tradicionais constituem diversas modalidades de representação próprias a uma cultura. (Pain & Jarreau, 1996, p. 44).

 

Considerações finais

O estudo das relações entre as linguagens e o pensamento é amplo e oferece inúmeras possibilidades ao pesquisador da área de Psicopedagogia. Esta breve discussão sobre o tema não passa de um primeiro levantamento, que visa, principalmente suscitar o debate multidisiciplinar e interdisciplinar entre aqueles que se dedicam a essa área de estudo tão nova e tão promissora que é a Psicopedagogia.

Tudo está por fazer, porque o ser humano em sua complexidade é ainda para nós um mistério. A contribuição da Semiótica, em estudos interdisciplinares com a Psicopedagogia poderá ajudar a levantar um pouco mais a ponta desse véu, desvelando aspectos inesperados da cognição e da afetividade.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: emalanga@unisa.br

 

 

*Mestre e Doutora em Comunicação Social
1 O termo linguagem verbal engloba tanto a linguagem falada como a escrita, ao contrário do que entende o senso comum que entende “verbal” por falado.

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