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Cadernos de Psicopedagogia

versão impressa ISSN 1676-1049

Cad. psicopedag. v.5 n.9 São Paulo  2005

 

RESENHA

 

Angèle Murad1

Universidade Federal Fluminense

Endreço para correspondência

 

 

Levy, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. Tradução: Carlos Irineu da Costa.

“Não há um livro de papel de verdade para abrir, apenas uma sucessão de duas imagens controlada por um dispositivo interativo (...) na página à esquerda há a imagem de uma bela maçã vermelha em trompe d’oeil (...) a maçã encontra-se cortada na página seguinte, sendo progressivamente consumida à medida que a ‘leitura’ continua (...) A cada vez que as páginas são viradas, ouve-se claramente o som de uma mandíbula que se fecha sobre um pedaço de maçã (...). Comer a maçã surge como uma metáfora para ‘ler um livro’” (Relato de Lévy sobre Beyond Pages, de Masaki Fujihata, em Cibercultura, p. 77)

O desenvolvimento das tecnologias digitais e a profusão das redes interativas, quer queira ou não, colocam a humanidade diante de um caminho sem volta: já não somos como antes. As práticas, atitudes, modos de pensamento e valores estão, cada vez mais, sendo condicionados pelo novo espaço de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores: o ciberespaço.

Esse é ponto de partida de Pierre Lévy para estudar as implicações culturais engendradas pelas novas tecnologias de comunicação e informação. Cibercultura, lançado em 1999 no Brasil, é resultado de relatório encomendado pelo Conselho Europeu, dentro do projeto “Novas tecnologias: cooperação cultural e comunicação”.

Cibercultura? Mas, o que é isso? “Não é a cultura dos fanáticos da Internet, é uma transformação profunda da noção mesma de cultura” – apressa-se em explicar Lévy, em entrevista à @rchipress . Como tal, reflete a “universalidade sem totalidade”, algo novo se comparado aos tempos da oralidade primária e da escrita. É universal porque promove a interconexão generalizada, mas comporta a diversidade de sentidos, dissolvendo a totalidade. Em outras palavras: a interconexão mundial de computadores forma a grande rede, mas cada nó dela é fonte de heterogeneidade e diversidade de assuntos, abordagens e discussões, em permanente renovação.

Que não espere o leitor encontrar alentado debate sobre pedofilia, cibersexo ou estímulo ao terrorismo na Internet. Esses assuntos não ocupam mais do que poucas linhas, concentradas justamente na parte em que o autor, abordando a diversidade de pontos de vista sobre o ciberespaço, atribui à mídia o papel de alimentar o sensacionalismo às custas da Net.

Como nas obras anteriores, o professor da Universidade de Paris 8 é transparente nas idéias e se descreve como otimista. Assim, após apresentar, sucintamente, o ciberespaço sob o olhar da mídia, dos comerciantes (que o reduzem à idéia de mercado) e do Estado (voltado para o controle dos fluxos e a defesa da cultura e das indústrias nacionais), Lévy apresenta o seu ponto de vista, a favor do “bem público”, defendendo a promoção no ciberespaço de práticas de inteligência coletiva.

É preciso “explorar as potencialidades deste espaço no plano econômico, político, cultural e humano”, defende o filósofo do ciberespaço. Nessa difícil tarefa do convencimento – mais do que solução, a cibercultura é um problema a resolver, diz –, Lévy usa um dos seus melhores trunfos: escreve para não especialistas. Seu texto flui de maneira organizada, por entre conceitos como virtual, multimídia e interatividade, tabelas que sintetizam o conteúdo e depoimentos sobre a experiência pessoal de navegação no ciberespaço.

As idéias estão dispostas em três blocos. No primeiro deles, Lévy apresenta os pressupostos que orientam o estudo e os conceitos técnicos que sustentam a cibercultura, como é o caso da digitalização e das redes interativas. “Nem a salvação nem a perdição residem na técnica”, afirma, mostrando que as tecnologias não determinam, mas condicionam as mudanças à medida que criam as condições para que elas ocorram. Além disso, aborda o movimento social que deu origem ao ciberespaço – nascido do desejo de jovens ávidos por experimentar novas formas de comunicação e só depois resgatado pelos interesses da indústria -, e as grandes tendências de evolução técnicas no que se refere a interfaces e a tratamento, memória e transmissão da informações.

Uma vez preparado o terreno, o autor dedica-se, na segunda parte, às implicações culturais do desenvolvimento do ciberespaço. O retrato contempla essencialmente três temas: as artes, o saber e a cidadania. A educação é a que recebe maior atenção. Lévy descreve mutações nas formas de ensinar e aprender. O futuro papel do professor não será mais o de difusor de saberes, diz, mas o de “animador da inteligência coletiva” dos estudantes, estimulando-os a trocar seus conhecimentos.

Com o advento do ciberespaço, o compartilhamento de memória permite aumentar o potencial da inteligência coletiva. O saber, agora codificado em bases de dados acessíveis on-line, é um fluxo caótico. Daí, segundo ele, a necessidade de repensar a função da escola e dos sistemas de aprendizagem e avaliação. Nesse sentido, critica o fato de o diploma ser o único método de reconhecimento da aprendizagem e aprova a integração de sistemas de educação “presencial” e à distância. Por fim, propõe um método informatizado de gerenciamento global de competências, que inclui tanto os conhecimentos especializados e teóricos, quanto os saberes básicos e práticos.

Passada a bonança, a tempestade. Na última parte, intitulada “Problemas”, Lévy busca responder a denúncias contra o ciberespaço. Rebate a crítica da substituição, segundo a qual o real substitui o virtual; a telepresença, o deslocamento físico. Para ele, os modos de relação, conhecimento e aprendizagem da cibercultura não paralisam nem substituem os já existentes, mas antes os ampliam, transformando-nos e tornando-os mais complexos.

Quanto às denúncias, concentra seu fogo em quatro questões: a exclusão e o aumento das desigualdades, a cibercultura como sinônimo de caos, a ameaça das culturas e de diversidade de línguas (em miúdos, o domínio do inglês) e a pressuposta ruptura dos valores fundadores da modernidade européia.

No caso da exclusão, admite que as tecnologias produzem excluídos, mas aposta no aumento das conexões, com a queda de preços nos serviços, e alerta: mais do que garantir o acesso é preciso assegurar as condições de participação no ciberespaço. Às críticas quanto ao domínio da língua inglesa, responde que é uma questão de iniciativa, pois qualquer um pode colocar no ar mensagens em chinês, grego, alemão.

O autor acredita que a cibercultura seja a herdeira legítima da filosofia das Luzes e difunde valores como fraternidade, igualdade e liberdade. “A rede é antes de tudo um instrumento de comunicação entre indivíduos, um lugar virtual no qual as comunidades ajudam seus membros a aprender o que querem saber” . Diante da profusão do fluxo informacional e do caos emergente que isso venha a causar, ele acena que a rede tem a sua própria forma de controle: a opinião pública e as instituições que dela fazem parte.

Ao que parece, ao colocar as questões, Lévy pretende cutucar aqueles de quem ouve críticas. Para conhecer a Web, navegue nela; esse é o melhor meio, melhor do que muitos livros, insiste. Em nenhum momento, transparece estar dialogando com alguém diretamente, mas na entrevista à @rchipress ataca os desafetos: as críticas à cibercultura traduzem a ignorância e o desejo de manutenção de poder, “...porque há poderes e monopólios que estão ameaçados. Muitos intelectuais são diretores de coleção nas editoras, professores que animam as revistas e aí, com a rede, há todo um movimento de comunicação que escapa às redes tradicionais”.

Desde o início, o autor explicita a sua intenção de deixar de fora as questões econômicas e industriais, concentrando-se nas implicações culturais. Mas, ele próprio, não consegue se desvencilhar da teia de coalizões sociais, políticas e econômicas em que a técnica se insere e enaltece a “dialética das utopias e dos negócios”, numa referência à relação da cibercultura com a globalização econômica. Sem dúvida, questões tão complexas como essas mereceriam tratamento mais aprofundado. Segundo Lévy, o próprio ambiente, instável, dificulta a formulação de grandes respostas. De qualquer forma, ele consegue dar o seu recado: é preciso navegar neste mundo de transformações radicais.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: amurad@vitoria.es.gov.br

 

 

1 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense

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