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Cadernos de Psicopedagogia

versión impresa ISSN 1676-1049

Cad. psicopedag. v.7 n.12 São Paulo  2008

 

ARTIGOS

 

Indisciplina e intervenção psicológica em sala de aula: relato de experiência

 

Indiscipline and psychological intervention in classroom: story of experience

 

 

Alice Casanova dos Reis1; Andréa Vieira Zanella2

Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa refletir sobre uma intervenção psicológica realizada junto a uma turma de 3a série de uma escola pública federal. Atendendo a queixa da professora relativa à “indisciplina” que caracterizava a turma, foram realizadas observações em sala de aula e atividades com os alunos. Efetuou-se também entrevista e conversas informais com a professora sobre a intervenção realizada junto aos alunos, para que essa se reconhecesse como co-produtora do contexto. A proposta de trabalhar em duas vertentes, a saber, com os alunos e com a professora, fundamentou-se no pressuposto de que qualquer mudança em uma dada situação implica os vários pólos da relação que a constituem. Como resultado, constatou-se o reconhecimento tanto da professora quanto dos alunos como partícipes da situação/queixa e das possibilidades de sua transformação. Com a instituição de um modo geral, no entanto, os resultados foram pífios no que se refere a essa implicação.

Palavras-chave: Indisciplina, Intervenção psicológica, Psicologia escolar.


ABSTRACT

This article aims to reflect on a psychological intervention accomplished into a group of 3rd grade of a federal public school. Taking care of the complaint of the teacher to the “indiscipline” that characterized the group, observations in classroom and activities with the pupils had been carried through. Also was effected informal interview and colloquies with the teacher on the intervention carried through next to the pupils, so that this if recognized as co-producer of the context. The proposal to work in two ways: the pupils and the teacher, was based on the purpose that any challenge in one given situation implies some other aspects that constitute the relation. As result, the recognition of the teacher and the pupils as participants by the situation/complaint and for the possibilities of its transformation. With the institution in a general way, however, the results had been inconsiderables with respect to this implication.

Keywords: Indiscipline, Psychological intervention, Educational psychology.


 

 

Introdução

Este artigo tem por objetivo refletir sobre uma intervenção psicológica3 realizada junto a uma instituição pública de ensino regular. Essa intervenção consistiu no acompanhamento de uma turma de 3a série (atual 4º ano) do ensino fundamental, e contou com procedimentos variados: entrevista com uma das professoras, observações em sala de aula, conversas com a professora e realização de intervenção junto aos alunos.

A queixa trazida pela professora era relativa à “indisciplina” que caracterizava a turma, a qual se expressava principalmente através de conversas paralelas. A partir da queixa, o trabalho centrou-se, por um lado, em atender à demanda da professora e, por outro, em atuar junto à professora e à instituição escolar para que estas se reconhecessem como co-produtoras da situação problema, de modo que qualquer transformação implicaria os vários pólos da relação que o constituem, ou seja, professora, alunos e a instituição escolar como um todo, com suas regras, práticas e modo de funcionamento. Necessário destacar que a professora, considerando o lugar social que ocupa, historicamente marcado por significações de saber e poder, tinha um papel privilegiado nesse processo, o qual será aqui relatado e analisado.

 

A experiência

A queixa trazida pela professora regente4 na entrevista inicial enfocava alguns comportamentos dos alunos e sua dificuldade em lidar com estes de uma forma que não fosse desgastante. Destacou a conversa excessiva dos alunos; a agressão verbal entre eles, o modo como apontam defeitos do outro e não reconhecem as próprias inadequações. Disse que é um desgaste parar a aula a todo o momento para chamar a atenção e que não gostaria de precisar usar “reforço negativo”5 para conseguir silêncio, porém o faz porque os alunos só atendem quando ela explode.

Para conhecer a situação e ao mesmo tempo estabelecer vínculo com os alunos e a professora, condição para qualquer intervenção psicológica, foram realizadas 15 observações em sala de aula, em diferentes dias, horários e disciplinas. No primeiro dia, após breve apresentação e explicação da proposta de trabalho, a recepção, por parte dos alunos, foi calorosa, o que pode ser explicado pelo fato de estarem acostumados à presença de estagiários posto se tratar de colégio vinculado a uma universidade.

Nas observações buscou-se direcionar o olhar para as relações que constituíam aquele contexto: as relações entre os alunos, destes com a professora e dela com os alunos. De um modo geral, a turma mostrou ter muita energia e intensas trocas sociais, onde corpo e voz eram constantemente usados para comunicar. A circulação das falas, no entanto, carecia de uma organização, de modo que em vários momentos muitos alunos falavam ao mesmo tempo, a professora falava sem ser ouvida e, quando conseguia a atenção dos alunos, todos queriam participar ao mesmo tempo. Assim, vários alunos levantavam a mão, mas o aluno que era ouvido pela professora, sem esperar sua vez de falar, tomava a palavra para si, levantando-se e falando mais alto, ou seja, impondo sua voz. A impressão geral era de que todos, alunos e professoras (pois as observações aconteciam também em outras aulas), queriam ser ouvidos, mas não se dispunham muito a ouvir o outro.

A professora se posicionava diante da conversa generalizada dos alunos lançando mão de algumas estratégias: pedia silêncio sem levantar o tom de voz; chamava a atenção de alunos individualmente; chamava a atenção da turma, levantando a voz e demonstrando sua irritação; ameaçava os alunos com algo desagradável para eles, como ficar na aula depois do término das atividades, ou não ir a brinquedoteca6. Geralmente as últimas estratégias eram usadas quando as primeiras não surtiam efeito.

Também se confirmou o que a professora havia dito na entrevista sobre não reconhecerem as próprias inadequações, pois em diversas ocasiões um aluno que recém havia parado de falar chamava a atenção de um colega que estava conversando. A agressão entre os alunos foi observada como parte das interações, algo que iniciava sempre entre risos, como uma brincadeira de provocar o outro, com palavras, olhares, tapas ou socos, e que às vezes ultrapassava um limite que não estava claro para eles.

Outro aspecto observado foram alguns lugares sociais assumidos na turma: o do aluno modelo, admirado e respeitado por todos; o do bode expiatório da turma; o do aluno excluído. Alguns desses lugares eram identificados através de apelidos pejorativos, que faziam trocadilhos com os nomes, como por exemplo, “Otário” ao invés de Otávio. Para mapear as redes de relações estabelecidas entre os alunos foi feito um sociograma, onde cada aluno elegeu três colegas com quem gostaria de fazer um trabalho na sala de aula e três com quem gostaria de passar um final de semana.

Após o primeiro período de observações, foi feito à professora um breve relato sobre os pontos principais observados em sala de aula. Refletiu-se em conjunto sobre como estava se configurando o processo de comunicação entre ela e os alunos, bem como a dificuldade de administrar a distribuição da vez de falar naquela turma. Algumas alternativas simples para a professora lidar de outro modo na sua relação com os alunos foram apresentadas: a professora circular pela sala enquanto fala e se aproximar de quem estiver conversando, em vez de ficar lá na frente e de lá chamar a atenção de alguns alunos individualmente; ter claro para si e deixar claro para os alunos algumas regras de comunicação, a serem coletivamente acordadas: por exemplo, quanto ao aluno levantar o braço e esperar sua vez para falar; distribuir a vez de falar aos alunos mediante algum sistema de sorteio. Mas como de nada adiantaria a professora conceder a palavra ao sorteado se os colegas não o escutassem, fazia-se necessário um trabalho de mobilização do grupo para essa nova forma de relação. O planejamento de como inserir o sorteio foi elaborado conjuntamente com a professora e consistiu em uma dinâmica de intervenção focal onde vários aspectos foram trabalhados.

 

A Intervenção Realizada

Para a realização da atividade utilizou-se uma sala com espaço para acomodar os 25 alunos, a professora e a estagiária confortavelmente. Após a professora acomodar os alunos em círculo no chão, posição que se diferenciava das filas de carteiras que caracterizavam a sala de aula, iniciou-se a intervenção propondo que fosse desenvolvida uma atividade diferente para trabalhar aspectos que haviam sido observados das relações em sala de aula. Foi dito aos alunos que seria uma brincadeira com várias etapas, mas que só funcionaria se aceitassem as regras. A intervenção como um todo compreendeu 4 etapas, sendo que algumas delas comportaram várias atividades.

No aquecimento (1a etapa) eles foram convidados a caminhar, observando um detalhe da sala que ainda não tinham notado. Depois, deveriam parar e formar duplas, olhando para o colega mais próximo e procurando reconhecer nele algo que achavam legal, alguma coisa que gostavam. Durante todo este momento a regra era não encostar nos colegas e ficar em silêncio. A professora, juntamente com a coordenadora da atividade, colou uma fita adesiva na boca de cada aluno após explicar-lhes que isso os ajudaria com sua dificuldade de ficar em silêncio.

No início, mesmo com o acessório a dificultar a comunicação verbal, eles não escutavam as instruções, atiravam-se no chão, conversavam através de gestos, comunicando-se sem emitir som. Vinham falar que a fita havia descolado: era colada uma nova fita, não sem lhes apontar que a fita descolava porque não paravam de mexer a boca.

A próxima etapa (2a) foi um momento de compartilhar a experiência. Um de cada vez tirava a fita, contava o que havia observado da sala e recolocava a fita. Explicou-se que quem estivesse com a fita na boca estaria fazendo um exercício de escuta, prestando atenção no colega que estivesse com a palavra e este, ao passar sua vez de falar, recolocaria a fita para também respeitar a vez de falar do outro colega, assim como a sua vez foi respeitada.

Nesse momento os alunos começaram a entrar no jogo. Cada um percebeu um aspecto diferente da sala e o compartilhou com os colegas. Finalizou-se este momento comentando como essa brincadeira tinha sido interessante para perceber que na vida, nas situações em que se vive, no espaço da sala de aula ou fora dela, muitas vezes não se costuma enxergar o que está diante dos olhos, sendo necessário fazer esse exercício de estranhamento do vivido para poder ir além e ampliar as percepções. Destacou-se também que cada um havia notado um aspecto diferente na sala, ou seja, cada pessoa via por um ângulo diferente o contexto que era, em tese, igual para todos.

No momento seguinte, as duplas formadas no aquecimento foram convidadas a falar. Um aluno de cada vez contava para a turma o que havia reconhecido de legal no colega com quem formou dupla e vice-versa. Nesta atividade, o aluno que falava retirava a fita mas não a recolocava, porque teria o desafio de por si mesmo ficar em silêncio, respeitando a vez dos próximos falarem.

No início eles pareciam tímidos ao falar algo positivo sobre o colega. O primeiro aluno a falar, Lucas7, cuja análise da rede de relações revelou como sendo admirado por todos, não conseguiu mencionar nada de legal sobre Gustavo, com quem formou dupla. No entanto, depois que Gustavo apontou uma qualidade observada em Lucas, este então conseguiu reconhecer e falar algo que gostava em Gustavo.

João disse que não conseguiu ver nada de legal na sua dupla, mais especificamente no aluno que desempenha na turma o papel de bode expiatório (José Otávio). Perguntou-se se tinha olhado com atenção, pois todos têm características legais. João continuou se negando a valorizar o colega. Passou-se a vez para José Otávio, mas este devolveu o desprezo do colega apontando-lhe uma característica negativa. Falou-se que ninguém era só bom, nem só mau, que todos têm aspectos positivos e negativos, mas que este era um exercício para reconhecer o que de positivo havia no outro, e não de apontar seus defeitos, porque todos têm pontos que precisam melhorar. Convidou-se então José Otávio a não agir como João, mas a conseguir ir além. Ele então apresentou um aspecto positivo de João. Lucas interveio e falou que via algo legal em José Otávio: ele estava tentando melhorar. Perguntou-se se algum outro colega gostaria de complementar. Outros dois apresentaram qualidades de José Otávio.

Houve ainda um terceiro momento nesta roda de compartilhar: um aluno de cada vez contava para o grupo um segredo seu. Essa foi ainda uma forma de exercitar o espaço de falar e ouvir, enfatizando que cada um respeitasse a vez do colega falar e, ao mesmo tempo, uma atividade onde cada um pôde mostrar para a turma um lado pessoal positivo ainda não conhecido dos colegas.

A 3a etapa da intervenção consistiu na criação pelos alunos de seu cartão de identidade, chamando a atenção destes para o fato de que cada pessoa é única, singular, tem aspectos positivos que conhecemos e outros que desconhecemos. Foi proposto aos alunos que o cartão de identidade fosse a marca pessoal de cada um, tendo no verso o nome da chamada e na frente um nome especial, podendo ser algum animal, planta ou elemento da natureza, escolhido por apresentar uma característica que eles admiram e se identificam. Além disso, foi proposto que os alunos desenhassem uma figura que representasse esse nome.

Também foi ressaltado que a escolha de cada um não deveria ser motivo de chacota e seu uso deveria ficar restrito ao contexto de sala de aula. Destacou-se que a turma tinha um problema com apelidos pejorativos, desrespeitosos, que na vida muitas vezes as pessoas são chamadas de um jeito que não gostam mas que ali, nessa atividade, eles teriam a oportunidade de escolher como gostariam de ser chamados.

Foi interessante que enquanto as instruções eram apresentadas, os alunos começaram a reproduzir o comportamento de interromper a fala de quem ocupa o lugar de professora, seja com perguntas ou falando com o colega. Foi uma oportunidade para reorganizar o falar e o escutar, orientando que primeiro seriam dadas as instruções, depois quem tivesse dúvidas levantaria a mão e teria direito à palavra, de modo que falaria um de cada vez e os outros iriam escutar. Relembrou-se que, em sala de aula, todos querem falar ao mesmo tempo, até erguem a mão para solicitar a palavra mas não esperam sua vez, tomam a palavra para si, levantando a voz, de modo que muitos falam ao mesmo tempo e ninguém se escuta. Assim como em outras ocasiões, essa intervenção objetivou o exercício, pelos alunos, do autocontrole sobre a necessidade imperativa de falar e, ao mesmo tempo, refletir sobre a necessidade desse autocontrole para que todos tivessem o direito à palavra, que pudessem ouvir uns aos outros e assim a comunicação de fato acontecesse.

Um outro acontecimento foi uma brecha para trabalhar com eles a dificuldade do grupo em aceitar as regras do jogo. Quando foram espalhados os cartões no centro da sala para que cada um escolhesse um cartão (existiam quatro opções de cor), o que era feito concomitante à apresentação das instruções para a atividade, os alunos foram se aproximando e, repentinamente, se atiraram sobre os cartões. Neste momento a professora interveio, falando para todos devolverem os cartões, pois não havia sido dito para ninguém pegar. A situação engendrou a reflexão coletiva sobre o acontecido, mediada pela coordenadora da atividade e com a participação ativa da professora, que buscaram estabelecer relação com as situações cotidianas observadas durante as aulas. Após essa conversa, a atividade foi retomada, destinando-se um tempo para criarem seu cartão de identidade, momento este livre para dialogarem enquanto realizavam a tarefa. Os alunos envolveram-se com a atividade e trocaram informações e impressões no decorrer do processo. Houve uma relativa agitação, porém nada que os atrapalhasse.

Finalizada a tarefa, foi aberto espaço para que cada um mostrasse o seu cartão para o grupo e dissesse porque escolheu aquele nome e desenhou aquela figura, guardando em seguida o cartão num saquinho que ia passando de um em um. Em geral, este foi um momento onde respeitaram a fala do colega, com algumas exceções em que foi preciso intervir, chamando a atenção dos alunos que conversavam sobre a necessidade de escutarem se também quisessem ser escutados. Como em seguida novamente estes alunos estavam conversando, a estratégia utilizada foi a mudança de lugar, indo a coordenadora sentar entre os dois.

Depois que todos apresentaram para a turma o seu cartão, realizou-se o fechamento da atividade (4a etapa). Inicialmente foi explicado o destino que seria dado àquele saquinho e aos cartões de identidade: seriam usados para sorteio quando a professora tivesse uma atividade de correção de exercício; então, em vez de todos falarem ao mesmo tempo, a professora sortearia quem iria responder à questão e todos precisariam prestar atenção, porque qualquer um teria chances de ser sorteado. O sorteio seria, assim, um recurso para organizar as falas, quem fala e quem escuta em cada momento. E quando alguém estivesse falando, os demais, sem precisar de uma fita adesiva na boca, teriam o desafio de escutar, esperando sua vez.

Perguntou-se como se sentiram com a fita na boca: a maioria destacou que foi ruim, pois não podiam falar, conversar, que isso dava agonia porque são acostumados a falar muito, que foi difícil ficar em silêncio, que era impossível não falar. Um aluno que não usou a fita porque estava com o nariz congestionado disse que, sem a fita, foi mais difícil ficar em silêncio. Boa parte dos alunos também destacou um lado positivo de terem usado a fita, pois assim conseguiram ficar um pouco em silêncio. As impressões dos alunos foram problematizadas pela professora e coordenadora da atividade, que enfocaram as dificuldades de se conviver com outros e a necessidade de que essa convivência seja pautada por regras consensuais.

A atividade foi encerrada com a proposta/desafio de exercitarem diariamente em sala de aula o respeito à sua vez de falar e o escutar quando o outro está falando, sem precisar do controle externo de uma fita. Lucas interrompeu dizendo que todo mundo falava que ia mudar, depois voltava a ser tudo como antes. A professora insistiu que isso não os impedia de tentarem novamente, pois acreditava nos alunos e, como professora, diariamente plantava uma sementinha e muitas vezes não via o resultado de seu trabalho de modo imediato. Falou que era preciso apenas que cada um acreditasse que era capaz e fizesse a sua parte, pois apontar a falha no outro era uma forma de, ou não olhar para a própria condição, ou justificar a própria falta pela do colega. Após o encerramento da intervenção, conversou-se brevemente com a professora sobre a atividade e lamentou-se o fato de praticamente metade da turma ter faltado justamente neste dia. Para engajar os que faltaram na proposta, a professora se comprometeu a convidar um dos alunos para relatar a dinâmica e a dar os cartões para que eles também construíssem sua carteira de identidade e participassem dos sorteios.

Duas semanas depois, reuniram-se a coordenadora da atividade e a professora para avaliar os efeitos da intervenção realizada. Segundo a professora, o sorteio, solicitado pelos próprios alunos, estava sendo útil para a organização das falas durante atividades de correção, pois nesses momentos respeitavam a vez de cada um falar. No entanto, a mudança não acontecia em outras situações, como durante as explicações de conteúdos, onde as conversas paralelas continuavam.

Relembrou-se que os alunos tinham sido mobilizados para a mudança. Porém, como esse problema de comunicação não estava localizado neles e sim na relação entre eles e a professora - relações essas mediadas por uma lógica institucional que imprimia às práticas educativas a cisão entre saber/não saber, quem fala e quem escuta - também dependia dela agir de modo diferente para que mudanças realmente acontecessem. A professora concordou e perguntou como poderia fazer isso. Foi convidada então a refletir sobre quais eram os momentos em que realmente precisava do silêncio da turma e em quais momentos poderia dar liberdade para que conversassem, sobre quando a atenção precisava estar centrada na professora e quando não precisava. Ela falou que não exigia silêncio todo o tempo, mas em momentos como quando precisava dar orientações sobre exercícios ele era necessário e difícil de ser estabelecido. Foi perguntado se achava possível buscá-lo através de outra maneira que não coercitivamente, através do riso, por exemplo, chamando a atenção deles para algum modo de agir que fosse inusitado. Ela disse que pensaria sobre isso. Destacou-se então que o mais importante era essa posição aberta, sua disponibilidade para refletir sobre as situações de sala de aula e buscar, na interlocução com um outro, possibilidades diferenciadas de ação.

 

Algumas considerações sobre a experiência

A partir das observações realizadas em sala de aula, da escuta daquele contexto, foi possível compreender o modo como as relações professora/alunos e entre os próprios alunos estavam configuradas. Desse reconhecimento adveio a socialização do que foi observado para a professora, condição indispensável a troca de impressões e reflexão sobre o modo de ação de alunos, professora e do próprio profissional psi, implicando todos na (re)produção das relações sociais que constituem o contexto escolar (Zanella, 2003).

A constituição desse espaço dialógico com a(s) professora(s) é uma das importantes contribuições do(a) psicólogo(a) que atua em contextos escolares. Como destacam Neves, Almeida, Chaperman, e Batista (2002): “(...) o papel do psicólogo escolar implicaria em lidar com a subjetividade e as relações interpessoais no âmbito da escola e em proporcionar aos docentes e demais profissionais da Educação uma reflexão sobre sua prática educativa” (p. 4). No caso da intervenção aqui relatada, a partir do diálogo com a professora foi possível refletir sobre sua prática, bem como planejar uma atividade que mobilizasse alunos e professora para outras formas de agir e se relacionar.

Considera-se que a escolarização formal tem papel importante no processo de constituição dos sujeitos e do modo como estabelecem relações tanto com os outros quanto consigo mesmos. Contextos de escolarização formal são locus onde encontram guarida

(...) processos públicos e privados de regulação da conduta, os quais caracterizam a dimensão ativa dos sujeitos na organização da atividade conjunta e, decorrente da apropriação da significação desta, da própria subjetividade. Destaca-se, nessa perspectiva, o papel da linguagem, uma vez que a apropriação da significação – entendida enquanto função dos signos – por meio do convívio com outros indivíduos, constitui-se como fundamental para o desenvolvimento da atividade mental e da possibilidade de regulação da própria conduta (Zanella & Nuernberg, 2001, p.49).

A questão da conversa excessiva dos alunos foi trabalhada na intervenção justamente de modo a mobilizar os alunos nesse processo de auto-regulação da própria conduta, utilizando para isso a mediação de várias ferramentas8: a fita adesiva na boca, o destaque para a necessidade de escutar e ser escutado, o sistema de sorteio para que todos tivessem chance de obter o direito à palavra. O objetivo, em relação aos alunos, era buscar um modo diferenciado de relações em sala de aula em que a professora não precisasse mais chamar a atenção dos alunos para que fizessem silêncio, mas que eles próprios aprendessem a escutar o outro, professora ou colega, bem como a si mesmos. A fita, portanto, era um recurso simbólico, uma mediação externa que precisava ser apropriada por eles. Era necessário fazê-los se apropriar dessas significações, pois a apropriação da linguagem possibilita à criança dominar o seu movimento, submetendo-o ao controle das funções simbólicas, ou seja, sua ação pode ser pensada e planejada, sua atividade pode a ser auto-regulada.

A escolha do meio lúdico para envolver os alunos na apropriação dessas significações foi estratégica. Dizer-lhes simplesmente que era necessário conter o desejo de estabelecer conversas paralelas durante as aulas era um recurso ineficiente, que os imputava ao lugar de assujeitados a uma condição externa. Por outro lado, envolvê-los em uma brincadeira onde a regra era ficar em silêncio para escutar a fala do outro, significava considerá-los como sujeitos ativos na produção de um contexto relacional novo, onde escolhiam subordinar seu impulso de falar à sua vontade de participar do jogo. Esse atributo essencial da brincadeira, de fazer com que uma regra se torne um desejo, é destacado por Vygotski (1994): (...) a situação do brinquedo exige que a criança aja contra o impulso imediato. A cada passo a criança vê-se frente a um conflito entre as regras do jogo e o que ela faria se pudesse, de repente, agir espontaneamente

(...). O maior autocontrole da criança ocorre na situação de brinquedo (...) aqui a subordinação a uma regra e a renúncia de agir sob impulsos imediatos são os meios de atingir o prazer máximo (p. 113).

Destaca-se, além da atividade lúdica, o momento de compartilhar a experiência, fundamental para explicitar as significações ali engendradas, bem como conhecer o modo como os sujeitos haviam delas se apropriado. Este momento de reflexão foi importante na mobilização dos sujeitos para a mudança, uma vez que “...o desenvolvimento da vontade, a capacidade de fazer escolhas conscientes, ocorre quando a criança opera com o significado de ações.” (Vygotski, 1994, p. 115).

A interação das crianças e destas com a professora durante a intervenção, a confrontação ativa e cooperativa de diferentes pontos de vista, criou um espaço intersubjetivo definido por Vygotski (1994) como Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Segundo Zanella (2007):

A Zona de Desenvolvimento Proximal consiste no campo interpsicológico onde significações são socialmente produzidas e particularmente apropriadas, constituído nas e pelas relações sociais em que os sujeitos encontram-se envolvidos com problemas ou situações em que há o embate, a troca de idéias, o compartilhar e confrontar pontos de vista diferenciados (...) o que caracteriza a ZDP é a confrontação ativa e cooperativa de compreensões variadas a respeito de uma dada situação (p. 113).

Essa confrontação pôde ser vista sobretudo, no momento final de compartilhar a experiência, após a confecção dos cartões de identidade, onde todos os participantes foram convocados a falar como percebiam a situação vivenciada. Nesse momento, os alunos disseram que haviam mantido silêncio durante o aquecimento e a professora se contrapôs a eles, apontando como haviam se comunicado mesmo com a fita na boca. Os alunos então reconheceram sua dificuldade de conter a conversa, mas também disseram que silenciar foi bom para escutar os colegas, ou seja, houve um movimento de re-significação da experiência a partir do embate com o ponto de vista do outro.

Cabe ainda destacar a importância de o professor realizar mediações que possibilitem aos alunos assumir atitudes que de forma autônoma ainda não seriam capazes. Várias falas da professora no decorrer da atividade com os alunos tiveram essa dimensão, fundamentalmente porque assentes na confiança nos próprios alunos. Esse acreditar nos alunos é fundamental para toda e qualquer mudança, pois “(...) as expectativas do professor sobre o desempenho dos alunos pode funcionar como uma profecia educacional que se auto-realiza” (Rosenthal & Jackobson, 1997, p. 258). Essa auto-realização não se dá pela profecia em si, senão que a forma de agir do professor na relação com os alunos, influenciada por essa crença, acaba contribuindo para esse resultado.

A questão do preconceito dirigido a alguns alunos foi trabalhada na dinâmica através dessa possibilidade de re-significação, ou seja, mobilizando os alunos para uma mudança de olhar, convidando-os a buscar reconhecer no outro o que ele tinha de positivo. Isso foi feito sobretudo em relação a José Otávio, que era chamado pelos colegas, em várias ocasiões, de “José Otário”. Através da criação do cartão de identidade os alunos tiveram a possibilidade de escolher como gostariam de ser chamados, o que enfatizou as singularidades ali presentes. Essa mudança de olhar é fundamental, pois:

O aluno, é claro, é protagonista de sua própria história, porém esta não é somente sua, é produzida e reproduzida pelos muitos outros com os quais convive. Re-significar trajetórias é tarefa árdua e requer, nesse sentido, muito mais que a mudança de postura do próprio sujeito: é necessário que esses muitos outros transformem olhares, atitudes e expectativas, permitam enfim a circulação, produção e apropriação de sentidos outros que expressem/constituam diferentes formas de pensar, sentir e agir (Zanella, 2003, p.28).

 

Considerações finais

Via de regra os professores de ensino regular, ao solicitarem ajuda de profissionais da psicologia, localizam os problemas que enfrentam em sala de aula nos alunos, sejam nas dificuldades de aprendizagem ou nas dificuldades de relacionamento destes com colegas e/ou professores (Zanella, 2003). No caso da intervenção aqui relatada, a queixa apresentada pela professora também vinha nessa direção. Porém, um diferencial nessa queixa foi o reconhecimento, por parte da professora, de sua própria dificuldade em lidar com as conversas paralelas dos alunos, o que possibilitou a constituição de um espaço, tanto com a professora como com a professora e os alunos, para refletir sobre as relações interpessoais em sala de aula e as possibilidades de virem a ser modificadas.

A contribuição de um profissional em psicologia nesse movimento pode ser fundamental, desde que se disponha a conhecer o contexto em que irá intervir, que se disponha a ouvir seus diferentes partícipes e construir com estes espaços de reflexão e ressignificação de práticas e relações. A intervenção aqui relatada pretendeu seguir essa diretriz, embora seu espectro e resultados tenham sido limitados. Afirma-se isso porque se reconhece a necessidade de que a atuação da psicologia em contextos escolares seja ampliada, de modo a envolver todos os professores, outros profissionais, os alunos e seus responsáveis.

Necessário se faz, nessa perspectiva, ampliar os canais de comunicação, pois toda e qualquer mudança em contextos educacionais se efetiva a partir de relações dialógicas em que as práticas pedagógicas e possibilidades de sua transformação constituem-se como foco do debate, da problematização rigorosa que fundamenta a (re)criação de saberes e fazeres.

 

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Endereço para correspondência
Andréa Vieira Zanella Manoel Luís Duarte, 235
CEP: 88062-415 – Lagoa da Conceição – Florianópolis – SC
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1 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina
2 Doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
3 Essa intervenção fez parte de um conjunto de atividades que constituíram o estágio curricular em psicologia escolar realizado pela autora principal
4 Neste Colégio há, nas séries iniciais, uma professora com maior carga horária, responsável pelas disciplinas de Português e Ciências. Outros professores trabalham com cada turma, ministrando conteúdos de Artes, Educação Física, dentre outras disciplinas
5 Essa expressão foi utilizada pela professora, porém para a teoria de Skinner (1983), considerando o procedimento adotado por ela, é mais adequado falar em punição.
6 Essa escola dispõe de uma brinquedoteca, espaço que os alunos das séries iniciais freqüentavam semanalmente e que muito apreciam.
7 Os nomes que aparecem nesse artigo são fictícios.
8 Ferramentas são aqui entendidas como instrumentos mediadores da atividade humana, podendo se caracterizar por uma existência material ou simbólica. O fundamental a destacar é o fato de que essas ferramentas existem enquanto tal na medida em que significam algo para os sujeitos que delas fazem uso, significação essa social e historicamente produzida (a esse respeito ver Pino, 1995; Zanella, 1997)

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