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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.24 Rio de Janeiro June 2012

 

ENSAIOS

 

Contra a sobreinterpretação

 

Against the over-interpretation

 

 

Manoel Baldiz*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Barcelona / Espanha

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com base em um diálogo nos textos de Susan Sontag sobre a ansiedade de interpretar, e de Humberto Eco, sobre os limites da interpretação literária, o autor propõe que o tema seja de interesse dos analistas. Destaca vários pontos sobre a interpretação: propõe não confundir a posição do morto (destacada por Lacan com o jogo de bridge) com a do cadáver, pois o analista mudo e cadaverizado não é um analista; critica o excesso interpretativo do analista asfixiante que não deixa nada por interpretar; diferencia as intervenções válidas numa cura da interpretação propriamente dita; distingue a interpretação que corresponde à ética e à lógica do discurso analítico das intervenções sugestivas e persuasivas e; finalmente, discute o problema da interpretação na supervisão, articula interpretação e tempo, interpretação e transferência e interpretação e après-coup.

Palavras-chave: Interpretação, discurso analítico, intervenções, supervisão.


ABSTRACT

Departing from a dialogue with Susan Sontag's writings on the anxiety of interpreting and with Umberto Eco's writings on the limits of literary interpretation, the author proposes the theme to become part of analysts' interests. Several points about interpretation are highlighted: it proposes not to confuse the deceased's positions (highlighted by Lacan with the bridge game) with that of the corpse, once the speechless and ‘corpsed' analyst is not an analyst indeed; the author criticizes the interpretative excess of the suffocating analyst who does not fail to interpret anything; the author also differentiates the valid interventions in a cure of the interpretation itself. Besides, the text distinguishes the interpretation which corresponds to ethics and the logic of the analytical discourse of the suggestive and persuasive interventions, and, finally, it discusses the problem of interpretation in the supervision; it articulates interpretation and transference, interpretation and après-coup.

Keywords: Interpretation; discourse of the analyst; interventions; supervision.


 

 

Para o título do meu texto fiz uma combinação com os títulos de dois livros altamente recomendados. O primeiro e mais antigo, de Susan Sontag, Contra a interpretação (1996), é um texto que já se tornou um clássico do século XX. Trata-se de uma compilação de artigos dos anos 60 nos quais Susan Sontag lança dardos envenenados contra a ansiedade por interpretar. Embora suas agudas observações se refiram, acima de tudo, às produções artísticas, algumas de suas declarações podem ser levadas em consideração quando se trata de abordar a complexa questão da interpretação no âmbito estrito da psicanálise.

Transcrevo três parágrafos:

"Abusar da ideia de conteúdo comporta um projeto, perene e nunca consumado, de interpretação." (Ibid. p. 27)

"Necessitamos, em primeiro plano, uma maior atenção à forma da arte. Se a excessiva atenção ao conteúdo provoca uma arrogância da interpretação, a descrição mais extensa e completa da forma a silenciará." (Ibid. p. 37)

"A função da crítica deveria consistir em mostrar como é o que é, até mesmo que é o que é, e não em mostrar que significa. No lugar de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte." (Ibid. p. 39)

Fazendo minha a leitura da autora americana, destaco a sugestiva dualidade entre a arrogância da interpretação hermenêutica versus o silêncio que pode se vincular a uma erótica, a saber, a vertente pulsional que está além do sentido.

O segundo livro que tomei como ponto de partida é um pequeno livro intitulado Interpretação e sobreinterpretação (ECO, 1992). Nele, Umberto Eco polemiza com Richard Rorty e outros autores ingleses em torno do controvertido tema dos limites da interpretação literária. Trata-se de um assunto que há muito interessava ao nosso querido semiólogo e novelista piemontês, que não em vão cunhou a conhecida noção de "obra aberta". Perante uma ideia delirante de uma semiose ilimitada, ao estilo dos que perseguem textos como Finnegans Wake, de James Joyce, Eco sugere pensar quais são os possíveis critérios que nos ajudariam a pôr limites na interpretação, algo que nós, como analistas, devemos estar interessados ao extremo. Se nem sempre contamos com regras que permitam averiguar quais interpretações são as melhores, Eco nos propõe pensar ao menos quais são as interpretações ruins.

Passando para o cerne do meu artigo, devo dizer que por coerência estrutural com o tema que nos ocupa, optei por um estilo quase aforístico em que eu, deliberadamente, ignoro muitos argumentos intermediários. Às vezes a prática clínica nos demonstra que uma boa interpretação não necessita de longas explicações, dado que tem algo do aforismo, da sentença que aponta de maneira direta ao núcleo do que se está tratando, embora algumas vezes possa nomeá-lo de um modo tão transparente, que poderia confundir-se com a sugestão e/ou com uma possível demanda proveniente daquele que interpreta.

1. Há que transitar entre a Cila do declínio da interpretação e o Caríbdis do excesso interpretativo. Ninguém está livre de ambos os perigos, nem sequer – claro está – aqueles que tratamos de orientar nossa práxis por meio de Freud e de Lacan.

1a. O declínio da interpretação tem seu apogeu no analista completamente mudo, cadaverizado. Implica confundir a posição do morto com a do cadáver. Os mortos podem estar muito ativos e falar de maneira bem clara quando fazem falta, como bem sabem aqueles que costumam ler os clássicos. Lacan se referiu a eles em seu texto sobre a direção da cura, fazendo alusão à função do morto no jogo de bridge (1958/1984 p. 569). Os cadáveres, contudo, acabam podres. Um analista mudo e cadaverizado, na realidade, não é um analista.

1b. O excesso interpretativo tem seu apogeu no analista asfixiante que dirige a cura buscando sentidos por todas as partes, não deixando nada por interpretar. Um analista que interpreta em excesso, na verdade não é um analista. O excesso de sentido leva à religião, ao amor ou à paranoia, ou às três coisas de uma vez.

Poucos fatos vêm causando tanto desprestígio à psicanálise como os abusos da interpretação. Podemos ler autores muito diversos que estão dispostos a aceitar as teses fundamentais do inconsciente e da sexualidade infantil, mas que se afastam, horrorizados da psicanálise quando detectam entre muitos de seus praticantes beirando a obscenidade. Uma anedota narrada em primeira pessoa por Emile Cioran é um exemplo extremo mais significativo do que estou dizendo:

"Conto a um psicanalista norte-americano que, sendo como sou, um podador inveterado, na fazenda de uma amiga, investindo contra os galhos secos de uma sequoia, caí da árvore de uma maneira que poderia ter sido fatal. Se você se enfureceu com ela – me disse – não foi para podá-la, mas para castigá-la por viver mais tempo que você. Você estava ressentido contra ela porque ela vai sobreviver, e seu desejo secreto era vingar-se despojando-a de seus galhos.

Semelhantes interpretações – acaba dizendo Cioran – nos fazem detestar para sempre toda explicação profunda" (1987, p. 138).

2. Na realidade, como deveria ser óbvio (mas muitas vezes não o é), não se trata da quantidade ou se há mais ou menos interpretações por parte do analista, nem tampouco de buscar estas interpretações. A verdadeira questão é a qualidade das interpretações sobre o que respondem, o que interrogam, o que apontam e o que possibilitam. O importante é o estatuto da interpretação. Com base nesse ponto de vista, muitas interpretações não merecem, na realidade, esse nome. Podem ser intervenções perfeitamente válidas e coerentes de acordo com certos modelos teóricos e/ou a determinados momentos da cura, mas não são interpretações psicanalíticas no sentido estrito do termo.

3. Determinar qual é a estrutura que nos permite diferenciar as interpretações propriamente psicanalíticas de outras possíveis intervenções na direção da cura caminha de mãos dadas com o posicionamento teórico, com base no qual o analista orienta sua clínica. Lacan nos proporcionou ferramentas conceituais poderosas para poder diferenciar a interpretação analítica de outros modos de intervir na cura. Uma dessas ferramentas é a teoria dos quatro discursos. Com ela podemos formalizar a diferença básica entre as intervenções sugestivas e persuasivas que se apoiam no discurso do mestre e no discurso universitário, e aquelas interpretações que correspondem ética e logicamente com a estrutura do discurso analítico.

No discurso analítico ocorre a produção de significantes mestres (aqueles que têm regido a existência do paciente até então) ao mesmo tempo em que o saber passa a ocupar o lugar da verdade do sujeito, desmentindo a suposição de que o saber não ocupa lugar. Não obstante, a interpretação aponta também para a zona alheia ao saber.

4. O âmbito da supervisão clínica (âmbito que, apesar de sua importância, temos esquecido um pouco em nossas produções teóricas e em nossos debates clínicos) é especialmente adequado para encarar as dificuldades próprias do exercício da interpretação.

4a. É impressionante escutar como muitos supervisionandos recordam em detalhes quase tudo o que lhes diz o analisante e, contudo, têm sérios problemas para lembrar com certa precisão suas intervenções na direção da cura.

Nesse sentido, é altamente recomendado o exercício de tentar registrar os próprios dizeres do analista e despreocupar-se um pouco com o registro obsessivo das palavras do paciente. Assim, trata-se de apostar em ter mais presente aquilo que o analisante faz o analista dizer, lembrando-lhe que ele faz parte do quadro que está tentando pintar. O espaço "segundo" da supervisão ajuda a reinstalar o analista no dispositivo.

4b. Nas sessões de supervisão é bastante comum que o supervisionando traga para a supervisão a sensação de que está falando demais na condução da cura de um paciente, intervindo em excesso e nem sempre de uma maneira que sinta que está fazendo progredir o trabalho. Mas, igualmente não é nada raro que o supervisionando tenha a impressão de que na cura que está conduzindo falta algo. Ou seja, existe uma dupla queixa, em ocasiões quase simultâneas: a percepção clara (e às vezes, inclusive dolorosa) de um a mais de palavra vazia e um a menos de palavra plena, palavra que faça ato.

Na supervisão é possível tentar uma abordagem ética e com vocação científica das dificuldades reais que surgem quando o analista quer sair desses impasses dos "mais" e dos "menos". É evidente, de todos os modos, que em uma supervisão nunca (ou muito raramente) poderá construir-se uma interpretação pré-concebida e pronta para que o supervisionando leve-a ao seu novo encontro com o seu analisante.

5. Um livro curioso, de diversos autores (DIDIER-WEILL, 2003), mostra como uma das características mais impactantes da posição de Lacan nos tratamentos que conduzia e/ou supervisionava era sua capacidade de interrogação combinada com uma quase ilimitada predisposição para deixar-se surpreender. Isto é totalmente coerente com a ideia de que o mais específico da posição analítica não é ocupar um lugar determinado pelo saber, mas um lugar determinado pelo desejo. É por isso também que a interpretação vem, frequentemente, depois de uma boa pergunta.

Vejamos um brevíssimo exemplo extraído de minha prática clínica. Uma paciente, em um momento de graves dificuldades com seu parceiro, acorda cada noite às três da madrugada e então lhe custa muito voltar a conciliar o sono. O supervisor perguntou ao supervisionando se havia perguntado à sua paciente o que lhe sugere essa hora, às três da madrugada. Não, não havia perguntado. Tinha tentado, pelo contrário, pensar com sua analisante as possíveis preocupações que podem estar incidindo nessa insônia, mas o detalhe concreto da hora não havia sido interrogado. Na supervisão seguinte, o supervisionando explica que perguntou a ela a respeito e que a paciente não sabia o que dizer num primeiro momento, mas na sessão de dois dias mais tarde tinha ido para consulta relatando que assim que havia saído da sessão lhe veio à mente a melodia de uma canção que dizia algo como: "e soaram três horas, e a lua nos surpreendeu nus".

6. Este é um exemplo paradigmático dessas interpretações que vêm quase completamente sozinhas do próprio analisante. Trata-se, em última análise, do desvelamento de uma interpretação inconsciente prévia. E esse despertar é facilitado por uma pergunta, ou por uma simples escansão. Nem sempre é assim, nós sabemos, embora essa seja a estrutura mínima da interpretação. Em outras ocasiões o analista deve organizar um dito, uma frase, uma série de palavras que possibilitem esse despertar, mas, a cada vez, sem fechar a cadeia com a cola do sentido e/ou da significação imaginária.

Com base nesta outra perspectiva mais clássica de interpretação que surge do analista, embora saibamos que é causada pelo trabalho do analisante, quero propor uma fórmula sobre o que poderíamos considerar como específico da interpretação psicanalítica, aquela que, inclusive, poderíamos chamar – sem demasiado temor – a "verdadeira" interpretação analítica. A interpretação analítica geralmente é aquela que não poderia ser dita de outro modo, com outros significantes. Nesse sentido algumas interpretações analíticas são muito difíceis de traduzir (como as boas poesias), se não são diretamente intraduzíveis. Aproxima-se do matema e da letra escrita. Também podem assemelhar-se ao chiste. No polo oposto estão essas intervenções que poderiam aplicar-se a numerosos casos diferentes e que igualmente se podem formular com enunciados diversos e muito pouco específicos: "você reprime sua agressividade, você queria fazer tal coisa, mas não se atreve etc...". Provavelmente esta seja uma das diferenças essenciais entre a clínica psicanalítica e o tipo de intervenção mais comum no âmbito das chamadas psicoterapias. A interpretação analítica é homóloga com a trama inconsciente que tenta decifrar, por isso sempre tem algo da particularidade do caso, mais além ou mais próximo da universalidade de certas estruturas.

Um paciente que se queixa de ejaculação precoce reitera durante muitas sessões que nos encontros sexuais com sua companheira ele vai tão depressa, que ela "não se inteira de nada". Por meio da associação livre, irá recordar como, quando adolescente, havia espiado em várias ocasiões sua mãe tomando banho, o que lhe produzia uma intensa excitação, e em alguns casos tinha, inclusive, se masturbado, apesar do grande temor de ser descoberto. À medida que vai explicando os detalhes dessas cenas, e apesar da vergonha que experimenta, os significantes que usa são tão precisos, que o analista tem somente que dizer-lhe: "você tinha que ir depressa para que ela não se inteirasse de nada".

Esta interpretação (que aproveitava certa polissemia do "inteirar-se", introduzida pelo próprio analisante) teve também a virtude de não coagular um significado unicamente edípico ao seu sintoma, mas que permitiu ao nosso sujeito formular novas perguntas como: "é possível que agora tenha medo de que minha mulher se inteire?", pergunta que, em lugar de suturar a divisão subjetiva, o relança e o põe a trabalhar, questionando de maneira produtiva seu suposto desejo inicial e consciente de fazer gozar sua consorte.

7. Outro elemento essencial da interpretação é a sua dimensão temporal. Encontrar o momento adequado para interpretar, o kairós como diziam os gregos, é outro modo de se sair da sobreinterpretação. A questão da articulação do tempo com o dizer interpretativo exigiria um desenvolvimento muito extenso que agora não posso abordar, mas pode-se deixar enunciado um par de pontos que devem ser levados em conta.

7a. À margem do clássico dilema sobre interpretar com base na instalação da transferência ou fazê-lo justamente para propiciá-la, está claro que o poliformismo das curas nem sempre permite fazer um cálculo consciente da interpretação. Frequentemente, se produz uma espécie de amalgamento entre o instante de ver e o momento de concluir, como se o tempo de compreender houvesse reduzido a zero e/ou emergisse a posteriori mostrando também os limites da compreensão.

7b. Geralmente é aprés-coup quando o analista está em condições de advertir se sua intervenção discursiva ou seu ato teve um efeito de interpretação. E, às vezes, nem sequer depois, já que em última instância será somente o analisante quem poderá testemunhar a respeito. Os testemunhos dos passes são, e deveriam seguir desse modo no futuro, um bom lugar para seguir trabalhando todas essas questões.

 

Tradução: Elynes Barros Lima

Revisão: Luis Guilherme Mola

 

Referências bibliográficas

CIORAN, E. Ese maldito yo, Traducción de Rafael Panizo. Barcelona: Tusquets, 1987. 201 p.         [ Links ]

DIDIER-WEILL, A. y otros. Quartier Lacan: testimonios sobre Jacques Lacan.  Traducción de Horacio Pons. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003. 208 p.         [ Links ]

ECO, U. Interpretación y sobreinterpretación. Traducción de Juan Gabriel López Guix. New York: Cambridge University Press, 1995. 164 p.         [ Links ]

LACAN, J. (1961). La dirección de la cura, In: LACAN, J. Escritos. México D.F. Siglo XXI, duodécima edición en español, 1984. p. 565-626         [ Links ]

_________. (1970). El seminario, Libro 17: El reverso del psicoanálisis. Traducción de Enric Berenguer y Miquel Bassols. Buenos Aires: Paidós, 1992. 231 p.         [ Links ]

SONTAG, S. Contra la interpretación. Traducción de Horacio Vázquez Rial. Buenos Aires: Alfaguara, 1996. 231 p.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Manoel Baldiz
E-mail: mbf@comb.cat

Recebido em: 06/02/2012
Aprovado em: 08/03/2012

 

 

Notas

* Médico. Especialista em Psiquiatria. Ensinante na FCCL. Analista Membro  da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Barcelona / Espanha.