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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.24 Rio de Janeiro June 2012

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS

 

O que pode ser uma lógica do real?

 

What can be a logic of the real?

 

 

Ronaldo Torres*

Universidade de São Paulo - USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Logo após formalizar a lógica da fantasia, Lacan demonstrou como o ato psicanalítico implicava, em última instância, um ato para além dessa lógica. Com isso Lacan chegou ao extremo de uma tensão entre os campos da lógica e da ética, na qual o limite do primeiro se encontrava em uma resposta advinda do segundo. O ato, assim, é uma resposta do real à montagem fantasmática pela qual o sujeito se constituiu com base na determinação simbólica. Neste sentido, lógica e real se mostravam excludentes. Todavia, Lacan não tardou em formalizar o tipo de laço que se estrutura como efeito deste ato, um laço que pressupõe uma lógica afeita ao real. O objetivo deste texto é acompanhar estas passagens do ensino de Lacan, tendo em conta que o laço do discurso do psicanalista é aquele que possibilita uma lógica à interpretação.

Palavras-chave: Lógica, interpretação, ato psicanalítico, discurso do psicanalista.


ABSTRACT

Soon after formalizing the logic of fantasy, Lacan demonstrated how the psychoanalytical act meant, ultimately, an act way beyond that logic. Thus, Lacan got to the extreme of a tension between the fields of logic and ethics, in which the logic finds its limit in an ethical response. In this way, the act is a real response to the fantasy, by which the subject was constituted from the symbolic determination. In this sense, logic and real proved themselves to be mutually excluding. However, it did not take Lacan long to formalize the type of bond that is structured as an effect of this act, that is, a bond that requires logic related to the real. The aim of this paper is to follow these passages in Lacan's teachings, taking into account the fact that that is the discourse of the analyst that provides logic for interpretation.

Keywords: Logic, interpretation, psychoanalytical act, discourse of the psychoanalyst.


 

 

O deslocamento de "técnica psicanalítica" para "práxis psicanalítica", operado por Lacan sobre sua própria maneira de nomear o campo pelo qual o analista entra na experiência clínica, não é sem razão e consequências. Essa passagem pode ser localizada no Seminário da Ética, momento no qual Lacan propõe, com todas as letras, que a direção da cura deve ser orientada pelo real. Logo no início do seminário diz: "iremos, pelo contrário, ao inverso, no sentido de um aprofundamento da noção de real. A questão ética, uma vez que a posição de Freud nos faz progredir nesse domínio, articula-se por meio de uma orientação do referenciamento do homem em relação ao real" (LACAN, 1959-60/1997, p. 21).

Esse "sentido de um aprofundamento da noção de real" se deve ao fato de Lacan ter verificado a presença do real na clínica para além de sua função exclusiva de limite ao simbólico, posição que vinha orientando suas formalizações até então. O real, dessa forma, passa a ser reintroduzido em seu ensino desde a recuperação da noção das Ding, de Freud, neste mesmo seminário, até sua reformulação do objeto a no Seminário da Angústia, passando pelo agalma e pela ideia de mancha nos seminários e escritos intermediários. Todos eles, maneiras de abordar o real desde a perspectiva não apenas do objeto perdido, mas de um real como núcleo da pulsão, informe, sem representante e em um lugar de extimidade ao sujeito. Aquilo que estando no núcleo do próprio sujeito é o que lhe é de mais estranho e exterior, avesso às suas coordenadas.

Bom, isso basta para indicar como uma derivação como esta vem afetar a direção da cura, uma vez que não se tratará mais de dissolver os objetos imaginários da fantasia para que se chegue à realização da subjetividade pura enquanto falta-a-ser, estado puro do desejo. Pelo contrário, o que se coloca a partir desse ponto é a vertente real da fantasia que indica um campo que não pode ser dissolvido, mas, como Lacan o formula, atravessado, e na melhor das hipóteses. Mas levará algum tempo para que Lacan extraia todas as consequências desse reposicionamento do real em seu ensino. Todavia, nos Seminários de 66 a 68 (A Lógica da Fantasia e O Ato Psicanalítico), Lacan já é claro e contundente em relação a essa passagem: não será o objeto destituído, mas sim o sujeito. Destituído de sua posição fixa na fantasia (o que retorna sempre ao mesmo lugar) e de sua ficção produzida em sua suposição ao saber, intervalar na cadeia significante.

Aqui, já reconhecemos o ponto final no qual a noção de ato em Lacan vai desembocar. Como sabemos, o ato psicanalítico não é senão outro nome dado à travessia da fantasia e à destituição subjetiva de um final de análise. Ocorre que, com isso, Lacan promove um verdadeiro curto-circuito que localiza o final da experiência em seu início. Bom, é exatamente isso que o leva a afirmar "antes de mais nada um princípio: o psicanalista só se autoriza de si mesmo". Ou seja, essa autorização está única e exclusivamente na própria autoria do ato que fez a passagem de psicanalisante a psicanalista. Este ato será então condição necessária ao início de uma análise, e passa então a compor o que seja a direção da cura. Lacan é bastante claro no Seminário 15 ao posicionar, na experiência, o ato do lado do analista e a tarefa do lado do psicanalisante. Mas ao final, novamente subverte essas posições, pois o analisante deverá largar da tarefa por um ato, um ato de psicanalista que fará cair o psicanalista que o sustentara até aquele momento.

É neste vértice que gostaria de me deter, para depois avançar, se possível. Considero que é a partir daí que devemos entender como a interpretação se encontra na dimensão de um ato e como este ato se orienta pelo real. Todavia, para isso, é fundamental se questionar sobre a existência de um estatuto lógico da interpretação nesses termos e, se há algum, qual seria, pois a entrada da noção de ato em Lacan coloca grandes desafios à lógica.

Pois se Lacan encontra o registro do ato exatamente no rompimento das coordenadas simbólicas que determinam o sujeito, coordenadas simbólicas estas que compõem uma lógica que vai até a fantasia, como pensar em uma lógica que inclua de alguma maneira o ato em sua dimensão real? Como pensar a lógica para um além da fantasia? Porque acompanhando o ensino de Lacan até o Seminário 15, o que podemos observar é uma espécie de tensão entre o que é do campo da formalização, que poderíamos dizer lógica e simbólica (campo da determinação) contra o campo da ética, que escapa à lógica e ao simbólico (lugar da causa). É a mesma tensão que vem desde o Seminário 11 com as operações de alienação e separação. Para seguir isso, basta observar como a noção de escolha é tratada nessas operações. Muito embora Lacan proponha para a operação de alienação (tanto no Seminário 11 com a lógica dos vels, quanto no grupo de Klein, nos Seminários 14 e 15) essa noção notavelmente subversiva de "escolha forçada", ainda assim ela não deixa de se alinhar à determinação significante, na medida em que é ela mesma que institui essa determinação. No entanto, o tipo de escolha que encontramos na operação, separação ou no ato analítico é de natureza distinta: não é forçada e destitui as coordenadas simbólicas. Ou seja, é um ato que não se apoia nem no Outro, nem no sujeito, se imiscuindo como algo decididamente estranho ao sistema e tendo a causa como seu agente.

É essa tensão que se presentifica quando Lacan se refere à experiência como uma práxis e não como uma técnica analítica. Trata-se de uma práxis que contempla a possibilidade de que um ato venha pôr fim à sua própria experiência. Mas é dessa forma que se torna complexo pensar a interpretação como algo que reúna lógica e ato.

Todavia, parece que é esse desafio que vai orientar o esforço de Lacan a partir de então. É, na verdade, uma questão que se lhe abrirá em algumas frentes, embora todas elas girem em torno do mesmo ponto: o tipo de laço que se forma a partir do passe clínico, a partir deste ato. E isso já se desdobra em pelo menos dois campos: o tipo de laço que se forma ao se derivar deste ato a posição de analista praticante, cuja figura central passa a ser a interpretação; e o laço que se monta em torno do trabalho com os colegas, esses "esparsos disparatados" (LACAN, 1976/2003, p. 569) que formam a Escola (que não devemos esquecer, trata-se do estilo), cuja figura central passa a ser a transmissão. Notamos, então, que interpretação e transmissão se articulam de alguma forma e que, certamente, a questão do estilo é um dos pontos dessa articulação.

O estilo, como Lacan já apontava na abertura de seus Escritos, é aquilo que se pode fazer com o objeto a para além da fantasia que sustenta sua alienação ao Outro. É, na verdade, uma asserção muito próxima a uma das maneiras que vai se referir às consequências do ato analítico no Seminário 15: "a operação do ato analítico deve reduzir esse sujeito à função do objeto pequeno a" (LACAN, 1967, sessão 24/01/1968), função essa que se assimila à causa de desejo. São maneiras que Lacan encontra de apontar e falar sobre os laços que se estabelecem com base no passe clínico. Ao falar em "função do objeto a", Lacan já promove uma estrutura heterogênea para se referir ao laço. Se por um lado o objeto aqui na posição de agente refere-se ao real, fazer dele uma função recupera o campo da relação simbólica de alguma forma, na medida em que qualquer função é, ao final, uma relação, um laço. Aliás, não é de outra maneira que Lacan entrará no seminário seguinte, "De um Outro ao outro", afirmando que "a estrutura deve ser tomada no sentido em que é mais real, em que é o próprio real" (LACAN, 1968/2008, p. 30), o que é o mesmo que dizer que há uma lógica que concerne ao real. Mas o que é um dizer como esse?

É interessante, porque aquilo que aparece como um impasse, impasse clínico e impasse de formalização, poderá dar lugar a um passe, mas não sem que o impasse seja nele incorporado. Acompanhemos isso clinicamente. A construção da fantasia em análise é definida por Lacan como o impasse diante da evidência daquilo que o sujeito montou para fazer existir a relação sexual, uma relação que buscou escrever a proporção entre o homem e a mulher, mas que, neste ponto, se evidencia como apenas a relação entre um sujeito e um objeto. É nesse equívoco que conseguimos discernir como o objeto só pode tamponar a falta de uma escrita, na medida em que não pode se inscrever nessa falta por uma impossibilidade lógica. Ou seja, o que Lacan indica é que, exatamente por se tratar de um impossível lógico (modal), é que isso faculta que algo da ordem de um objeto venha se alojar nessa falta de escrita. Por sua vez, o passe não está em conseguir, de alguma maneira, escrever a relação, mas no giro de lugar do objeto, o que implica uma outra estrutura para tratar o impossível.

Pois bem, o mesmo se dá com o impasse de formalização lógica. Lacan indica diversas vezes como o projeto da lógica só faz realizar o impossível de se escrever da relação sexual a cada tentativa que faz em escrevê-la, como o projeto de Frege, por exemplo, de uma conceitografia, uma escrita livre de qualquer ambiguidade. Lacan dirá em "O Aturdito": "seria, porventura, descabido dar o passo do real que explica isso, traduzindo-o por uma ausência perfeitamente situável – a da relação sexual em qualquer matematização?" (1973/2003, p. 480). Ora, a estrutura que passa a interessar a Lacan é exatamente aquela que porta seu impasse enquanto tal, mas desde uma outra posição. Não é por acaso que ele trabalha com o par ordenado relacionado com o paradoxo de Russell já no Seminário 16, não com o intuito de resolver o paradoxo por qualquer lógica consistente, mas para que se mantenha o paradoxo no deslocamento do par entre S1 e S2.

É exatamente essa ordem do paradoxo que levará Lacan à ideia de um discurso sem fala (parole) e à teoria dos discursos. Pois é na dimensão de uma escrita que se pode constatar o furo, a ausência da relação sexual e ao mesmo tempo, onde se pode localizar sua estrutura. A fala, por sua via, indicará sempre a dimensão do sujeito, seja em seu enunciado ou enunciação. É isso que vai chegar até "O Aturdito", escrito no qual Lacan, alinhando o dito à fala, refere o discurso do analista ao dizer.

Vemos assim como o real vem com a estrutura, como uma parte da estrutura e não como algo além, aquém ou fora da estrutura. Lacan retoma em "O Aturdito":

É nisso que os matemas com que se formula em impasses o matematizável, ele mesmo a ser definido como o que de real se ensina de real, são adequados para se coordenar com essa ausência [relação sexual] tomada do real. Recorrer ao não-todo, (...) isto é, aos impasses da lógica, é, ao mostrar a saída das ficções da Mundanidade, produzir uma outra fixão do real, ou seja, do impossível que o fixa pela estrutura da linguagem. É também traçar o caminho pelo qual se encontra, em cada discurso, o real com que ele se enrosca (1973/2003, p. 480).

Assim, ao falar em "transmissão integral" no Seminário 20 (1972-73/1985, p. 150), Lacan parece levar ao cúmulo o que a noção de integral pode portar, se referindo a uma estrutura que se transmite não toda e que só dessa forma pode ser integral. Trata-se da transmissão que não vai sem o impossível, cujo nome na estrutura é furo.

É exatamente essa relação que Lacan proporá entre o dito e o dizer, afirmando que o dizer ex-siste ao dito. E será à dimensão de um dizer que Lacan buscará localizar a interpretação, em que se pese que um dizer nunca vá sem o dito, consideração importante que condiciona a interpretação à lógica e elimina qualquer aspiração do inefável que venha assediá-la. E isso pode ser muito bem localizado desde Radiofonia, quando Lacan insiste que "esse algo em que o psicanalista, ao interpretar, produz a intrusão do significante, esfalfo-me para que ele não o tome por uma coisa, já que se trata de uma falha, e estrutural" (1970/2003, p. 411). Mas uma falha apreendida na estrutura, como Lacan dirá no Seminário 20, quando fala daquilo que "não para de não se escrever" (1972-73/1985, p. 198).

Mas isso também formaliza como a interpretação, que se orienta por um dizer, não visa à verdade. Devemos recuperar que se por um lado Lacan sempre alinhou a interpretação ao não sentido para fazer frente à busca de sentido último que faria com que a linguagem (o Outro) pudesse dar um ser ao sujeito, o ponto visado não deixava de ser uma verdade negativa, a verdade última da falta-a-ser do sujeito. A separação entre dito e dizer faz com que Lacan localize a verdade do lado do dito, mas como uma verdade semidita, uma vez que ela não pode ser dita toda. O que dela não se faz um dito todo é o lugar no qual a relação sexual não se escreve e o lugar onde se monta a fantasia como resposta a essa verdade. É o núcleo do que Lacan chamará, em 76, de a verdade mentirosa.

Mas isso só faz mostrar que o que não é dito não é da ordem da verdade, mas sim da ordem do real. Assim, o dizer se orienta pelo real e não pela verdade. Se pudermos reconhecer nisso uma lógica formal, desvencilhá-la da verdade e orientá-la pelo real é um passo e tanto para o que se fez com lógica até então. E é o que podemos encontrar como esforço de Lacan para se pensar uma lógica para além da fantasia ou para além da fantasia da lógica, uma lógica que possa formalizar o laço que Lacan buscou estabelecer pelo discurso do analista.

 

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Ronaldo Torres
E-mail: ronaldotorres@gmail.com

Recebido em: 10/02/2012
Aprovado em: 01/04/2012

 

 

Notas

* Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Doutourando pela mesma instituição. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Autor do Livro "Dimensões do ato em psicanálise" (Annablume, 2010)