SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número25Ecos do passe: A voz-a nova índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.25 Rio de Janeiro nov. 2012

 

CONFERÊNCIAS

 

O analista frente ao inconsciente

 

The analyst before the unconsious

 

 

Bernard Nominé

 

 


RESUMO

O autor propõe uma reflexão sobre o psicanalista frente ao inconsciente na óptica do conceito de inconsciente real estudado por Colette Soler a partir de suas deduções do final do ensinamento de Lacan e propõe partilhar um pouco de seus próprios estudos referentes a uma retomada de leitura de Freud, que intitulou: o inconsciente e a questão do sentido. Pesquisando o conceito freudiano de contravontade, que se apresenta como uma especificidade arcaica da língua relativa aos pares de significantes opostos e representações contrastantes aflitivas, o autor lança a hipótese de que ele precede o conceito de inconsciente em Freud, e apresenta relações com o conceito de gozo e de alíngua, demonstrando a presença dessas relações no ensinamento de Lacan. O autor também lança uma reflexão sobre como a análise opera com o sentido, levantando a questão sutil do sentido em relação à significação e discutindo sobre o posicionamento do analista frente a esses conceitos, considerando também os apontamentos de Lacan sobre o fora de sentido.

Palavras-chave: Inconsciente real, Contravontade, Gozo, Alíngua, Sentido.


ABSTRACT

The author proposes a reflection over the psychoanalyst before unconscious under the perspective of the unconscious real concept studied by Collete Soler from her deductions about Lacan's final teaching and also proposes to share a little bit of his own investigations on re-readings by Freud, which he entitled The unconscious and the question of the sense. Researching the Freudian concept of counter-will, which is introduced as an archaic specificity of the language related to pairs of opposing significants and afflictive contrasting representations, the author raises the hypothesis that the aforementioned concept precedes Freud's concept of unconscious, and introduces some correlations with the jouissance and lalangue concepts, demonstrating the presence of these relations in Lacan's teaching. The author also proposes a reflection on how the analysis operated with the sense, raising the subtle question of the sense in relation to signification, and discuss the position taken by the analyst concerning these concepts, equally considering Lacan's writings on the out of the sense.

Keywords: Unconscious real, Conter-will, Jouissance, Lalangue, Sense.


 

 

Desde que Colette Soler iniciou o estudo do conceito de inconsciente real que ela deduziu do final do ensinamento de Lacan, nós nos interrogamos com ela sobre o alcance de tal mudança de perspectiva sobre a prática analítica. É nessa óptica que lhes proponho esta reflexão sobre o psicanalista diante do inconsciente.

Pessoalmente, no escopo de um seminário que conduzo em minha região, estimulado pelo trabalho de Colette Soler, dediquei um ano de trabalho ao retomar a leitura de Freud para tentar daí desvendar a lógica do passo que o fez descobrir o inconsciente. Eu havia intitulado este trabalho de O inconsciente, de Freud a Lacan, e prossegui neste ano, afinando o tema O inconsciente e a questão do sentido.

Proponho-me então, hoje, partilhar com vocês um pouco deste trabalho.

Tomei meu ponto de partida da leitura de um trabalho de Freud que data de 1892, Um caso de cura pelo hipnotismo, que me interessou muito particularmente, porque Freud descreve nesse artigo uma contravontade que me parece ser o antecessor do inconsciente freudiano. Antes de descobrir o inconsciente e sua estrutura linguageira com sua lógica, sua gramática, Freud, que praticava essencialmente a hipnose, teve a princípio a ideia de que a neurose testemunhava a existência de uma contravontade oposta a toda realização positiva do sujeito. E com seu tratamento hipnótico, quer dizer, com seu próprio desejo, ele sustentava o desejo vacilante do paciente para superar a contravontade. Interessei-me, então, por esse conceito de contravontade, Gegenwillen, e procurei verificar o que ele se tornara na obra de Freud.

Lembro-lhes que nesse primeiro texto Freud relata o sucesso terapêutico da sugestão hipnótica sobre uma jovem que acabara de parir, e que vomitava, não dormia mais e por isso não conseguia amamentar seu bebê. Freud não se preocupa em procurar um sentido para esse sintoma, ele se contenta em ver a obra de uma contravontade que se opõe, sem o conhecimento da paciente, a seu projeto de aleitamento.

O que me impressionou, na leitura desse artigo, é que Freud não considera por um só instante que essa contravontade pudesse ser a manifestação de um sujeito inconsciente que se oporia à vontade consciente. Essa contravontade se manifesta, diz Freud, por representações contrastantes aflitivas. Quando, por exemplo, temos um projeto e esperamos o momento de realizá-lo, podemos ter ao mesmo tempo a ideia de tudo que poderia acontecer e impedir a realização do projeto.

O que me impressionou, na leitura desse artigo, é que Freud não considera por um só instante que essa contravontade pudesse ser a manifestação de um sujeito inconsciente que se oporia à vontade consciente. Essa contravontade se manifesta, diz Freud, por representações contrastantes aflitivas. Quando, por exemplo, temos um projeto e esperamos o momento de realizá-lo, podemos ter ao mesmo tempo a ideia de tudo que poderia acontecer e impedir a realização do projeto.

Segundo Freud, essas representações contrastantes aflitivas devem, sem dúvida, estar sempre lá, ao lado da representação positiva do projeto. Ainda que Freud não o diga de forma explícita, eu deduzo que essas representações contrastantes aflitivas se impõem como um automatismo da língua que faz com que em toda língua os significantes se apresentem sob a forma de pares de opostos. Como se a felicidade não pudesse se pensar sem a tristeza, a conquista sem o fracasso, como a clareza não pode se definir sem a obscuridade. Então, essas representações opostas estão sempre lá, mas o que Freud sublinha – e eis aí seu traço de gênio – é que uma vida sã implica que não as percebamos.

Como é que uma pessoa, com vida ideativa sadia, lida com as ideias antitéticas que se opõem a uma intenção? Com a poderosa autoconfiança da saúde, a pessoa as reprime e inibe, na medida do possível, e as exclui de suas associações de pensamentos. Isto muitas vezes sucede em tal medida que a existência de uma ideia antitética contra uma intenção geralmente nem sequer se manifesta, tornando-se uma probabilidade somente quando passamos a examinar as neuroses. (1892-3/1987, p. 163)

Levanto, então, a hipótese de que esse tema da contravontade precede, em Freud, o conceito do inconsciente. Ele mostra como as representações contrastantes aflitivas resultantes da contravontade são excluídas da cadeia de associações - o que corresponde à saúde psíquica – e como elas emergem da neurose e como predominam na neurastenia. Mas o que é surpreendente é que a contravontade não implica, para Freud, a existência de um sujeito do inconsciente, ela não tem, então, que ser interpretada. Ao contrário, o que é muito nítido, é que ela se apresenta como uma especificidade da língua, na qual, primitivamente os significantes se constituem por pares de opostos, como a felicidade com a tristeza, o sucesso com o fracasso, o branco com o preto... sem que isso queira dizer o que quer que seja.

Se sou sensível a essa constituição arcaica da língua, é por ter trabalhado sobre a relação dos autistas com a linguagem. Todos aqueles que se ocuparam de crianças autistas terão notado que a criança autista pode passar horas a fazer funcionar esses pares de significantes opostos. Fechar uma porta e abri-la, acender depois apagar a luz, encher e esvaziar a pia... O autista é fascinado por esse nível arcaico, esse funcionamento binário do significante; existe aí, para ele, um gozo muito primitivo que não é articulado à fala e que não é partilhável com ninguém. É uma espécie de gozo automático do significante.

A clínica do autismo nos revela então esse nível de articulação arcaico e binário da linguagem que não aparece para aquele que utiliza a linguagem para ser representada por um significante ao lado de outros na fala. Pois, então, trata-se de um outro nível de articulação do significante. O significante, aqui, não mais se define pela única diferença em relação aos outros significantes, e notadamente a diferença com o significante oposto, mas se define pelo fato de que ele representa o sujeito para um outro significante. Isso implica a suposição de um sujeito que quer se fazer entender, que quer dizer alguma coisa, enfim, a questão do sentido. Esse nível de articulação da fala faz desaparecer a primeira articulação arcaica e, entretanto, restam rastros.

Freud se deu conta e construiu sua hipótese do inconsciente baseado nesses rastros. É por isso que ele se interessou pelos trabalhos de um linguista de sua época, Karl Abel, sobre o sentido antinômico das palavras primitivas. Abel demonstra que haveria primitivamente na língua uma só palavra para designar dois significados opostos.

De vez que todo o conceito é dessa maneira o gêmeo de seu contrário, como poderia ele ser de início pensado e como poderia ele ser comunicado a outros senão pela medida de seu contrário? (1884, p. 163).

Freud se encanta com essa hipótese pois ela o faz pensar nisso, o que ele mesmo descobriu a propósito do inconsciente, que este não conhece a contradição e que pode utilizar um significante para designar uma coisa ou seu contrário.

[...] o homem não pôde adquirir suas noções mais antigas e mais simples a não ser como os contrários dos contrários, e só gradativamente aprendeu a separar os dois lados de uma antítese e a pensar em um deles sem a comparação consciente com os outros. (FREUD, 1910, p.161).

Vocês notarão que a lógica do raciocínio de Abel é exatamente a mesma de Freud diante das representações contrastantes aflitivas. É a ideia de que a associação primitiva entre dois significantes opostos pode se desfazer e que se pode enunciar um significante esquecendo seu oposto. É uma condição necessária para poder pensar e falar sem essas conexões parasitas.

Essa tese de Karl Abel foi criticada por um certo número de linguistas e deixada de lado pelos psicanalistas. Lacan levou-a muito a sério e a relacionou à língua fundamental do Presidente Schreber. Essa língua fundamental, espécie de alemão primitivo, seria a língua falada por Deus; ela utilizaria eufemismos, antífrases; ela utilizaria, por exemplo, a palavra recompensa para significar castigo, a palavra alimento para significar veneno, ímpio no lugar de santo...etc.

Reparamos que nessa língua não há gozo do sentido, mas um gozo arcaico da binaridade do significante. Essa língua é feita de significantes que se articulam automaticamente uns aos outros. É uma língua reduzida ao código sem qualquer alcance de mensagem, quer dizer, sem a suposição de um sujeito outro senão Deus, para lhe dar um valor de mensagem.

Encontramos em Lacan alguma coisa que se aproxima muito dessa ideia da língua fundamental quando ele estuda um fenômeno que descreve cuidadosamente no alucinado e que ele chama a modulação interior contínua. É no seminário sobre As psicoses, precisamente na aula de 25 de janeiro de 1956.

Nessa aula, Lacan se interroga sobre o caráter estrutural da alucinação verbal no sujeito psicótico. E o que me impressiona é que ele adota a mesma abordagem de Freud no que concerne às representações contrastantes aflitivas.

Ele nos diz que, na vivência de um sujeito, antes que essa vivência se organize de modo articulado sob forma de história, com momentos cruciais que não são nada mais que pontos de estofo onde essa vivência toma sentido, os significantes encontrados na vivência de um sujeito se registram e sucedem de forma contínua sem outra articulação senão essa estrutura basal da língua onde os significantes se ordenam pelos pares de opostos, por pura contingência, por contiguidade ou simples assonância. Esse tipo de articulação automática interior, inerente à estrutura de base da língua, Lacan a descreve seja como frase simbólica, seja como modulação interior contínua. Ela tem certamente alguma coisa a ver com o inconsciente, mas eu acredito, entretanto que é preciso distingui-la. Lacan sugere isso quando opõe essa sucessão interior contínua e que se inscreve de um modo descontínuo com escansões, pontos de estofo que lhes dão um sentido e a coloca em continuidade com um diálogo exterior; ela se faz então escutar como discurso do Outro. Mas no fundo ela não se articula como discurso do Outro, mas antes como alíngua. E uma das funções do eu é utilizar suas orelhas para selecionar o que deve ser escutado, quer dizer, o que tem um sentido.

A modulação interior desfila então num contínuo, mas nossa consciência nos desvia dela. Então, nós não a escutamos. É nisso que ela é inconsciente. Mas isso não quer dizer que o sujeito a recalque intencionalmente. Por que ele a recalcaria? Ela não veicula em si mesma nenhum saber. A consciência nos desvia dela simplesmente para que nosso pensamento não seja parasitado por esse barulho de fundo.

A contravontade evidenciada por Freud nos seus inícios é, sem dúvida, uma manifestação disso. Como chamaríamos hoje essa potência obscura que reside nas profundezas da língua e que se opõe às intenções, quer dizer ao desejo de um sujeito? Eu acredito que nós poderíamos chamá-la gozo. É esse gozo ao qual renuncia aquele que toma a palavra. Não é o gozo do sentido que anima aquele que conversa, não é tampouco o gozo do corpo que é preciso calar e que deve passar ao inconsciente.

É preciso dizer que Freud não soube distinguir claramente esses três níveis de gozo, porque ele assimilou muito rapidamente essa famosa contra-vontade à manifestação de um sujeito que se oporia a essa privação de gozo: o sujeito do inconsciente. É a hipótese freudiana; ela é feita para dar sentido ao sem sentido de alíngua.

Um pequeno capítulo de A Psicopatologia da vida cotidiana (1901) - demonstrará isso facilmente a vocês. Eu o encontrei, procurando saber o que teria se tornado o conceito de contravontade na obra de Freud. Encontramos seu rastro nessa passagem sobre o esquecimento de projetos.

Freud nos dá, baseado na sua experiência pessoal, alguns exemplos em que ele esqueceu de fazer coisas que tinha projetado fazer e coloca esse esquecimento na conta de uma contra-vontade que se opõe à execução do projeto em questão.

[...] compilei os casos de omissões por esquecimento que observei em mim mesmo e me empenhei em esclarecê-los, descobrindo invariavelmente que se podia atribuir sua origem à interferência de motivos inconfessados e desconhecidos – ou, como se poderia dizer, a uma contravontade. Numa série desses casos eu me encontrava numa situação semelhante à do serviço [militar], sob uma pressão à qual eu tinha desistido inteiramente de me opor, de modo que me manifestava contra ela através do esquecimento. (p 191-192).

Então, a tese inicial da contravontade sofre uma mutação importante. Não se trata mais de uma potência obscura que age automaticamente; trata-se agora de uma manifestação do sujeito do inconsciente para se opor a uma pressão. A sequência do capítulo é ainda mais clara. Não se trata, forçosamente, de se opor a um projeto preciso, porque Freud nos dá alguns exemplos em que a contravontade não se opõe diretamente a um projeto, mas, utilizando uma associação significante, ela se opõe a um outro projeto aparentemente insignificante.

Freud fala de um projeto que ele tinha para comprar mata-borrão, Löschpapier, durante quatro dias ele se esquece de comprá-lo. Ele não entende porque uma contra-vontade se opõe a esse projeto tão insignificante, até que ele diz que há uma outra palavra para dizer mata-borrão: Fliesspapier. Ora, ele confessa que nesses dias teria tido boas razões para esquecer de pensar em seu colega Fliess, mas que ele não chegara a se desfazer de suas preocupações e que é um instinto de defesa que o faz deslocar o esquecimento do projeto de comprar Fliesspapier, projeto menos importante e então menos resistente. É preciso voltar atrás no texto de Freud para compreender o que ele entende por instinto de defesa.

Nós vemos que muitas coisas são esquecidas por elas mesmas; mas nos casos onde isso não é possível, o instinto de defesa desloca seu objetivo e mergulha no esquecimento uma outra coisa menos importante, mas que... é religada à coisa principal por uma associação qualquer. (Ibid. p. 197).

Notemos que a contravontade se manifesta utilizando associações linguageiras, nisso ela mostra bem sua origem tal qual Freud a isolou desde o início. É um tipo de automatismo que não reflete, que não calcula, e que de uma certa maneira age de forma não adaptada: esquecer que queremos comprar mata-borrões quando gostaríamos de esquecer de pensar nos problemas que temos com tal colega; o objetivo principal parece falhar.

E, entretanto, Freud fala de um instinto de defesa, e aí ele supõe que a contra-vontade resulte de um cálculo feito pelo sujeito para se defender contra uma instância, uma autoridade que o constrange. Se o objetivo é esquecer o projeto, ele falhou; mas se o objetivo é se opor à autoridade que constrange a se lembrar, então ele foi alcançado.

Seja como for, essa contra-vontade não é mais somente um tipo de inércia linguageira, ela é a expressão de um sujeito que diz não, que se opõe a uma autoridade constrangedora (o supereu, sem dúvida) e que utiliza para isso os processos primários que a linguagem lhe oferece. Aqui estamos de todo modo, no registro do inconsciente freudiano.

Uma conclusão se impõe. Freud começou sua carreira descobrindo a contravontade que se opõe, às vezes, aos projetos de um sujeito, quer dizer, a seu desejo. Essa contra-vontade, emanando da estrutura basal da língua, nós podemos assimilá-la a um gozo arcaico, aquele que nós podemos deduzir da clínica de alguns sujeitos que fracassam ao se inscrever num discurso. É um gozo da língua, mas nós não podemos assimilá-la com o gozo dito do Outro.

Ao contrário, quando Freud levanta a hipótese do inconsciente, ele atribui a um sujeito essa vontade de gozar da língua, e ele a assimila de bom grado a um desejo inconsciente, o que implica enodar esse gozo primitivo ao gozo do Outro.

Então, a questão que se nos coloca é saber se todo esse gozo primitivo chega a se enodar ao gozo do Outro, ou se resta dele alguma coisa que resiste a essa transformação. Parece-me que a resposta é sim; alguma coisa resiste a essa transmutação do gozo arcaico em gozo do Outro, e Freud mesmo o localizou com seu conceito de Urverdrängung: o recalque original que Lacan equiparou a um outro ponto inacessível pela decifração do sentido: o não reconhecido, o Unerkannt que constitui o umbigo do sonho. Esse ponto que restou fora do alcance das cadeias associativas que criam o sentido não é inerte, não permanece inativo, bem ao contrário, já que é ele que atrai toda cadeia significante que passa na proximidade por pouco que um significante a ele se ligue por homofonia, ou simples contiguidade. Definitivamente, Freud mesmo fala isso; se sabemos lê-lo bem, esse ponto de umbigo é o verdadeiro motor do recalque. É o que opera em Freud uma verdadeira subversão porque, até aí, Freud tinha a tendência de não colocar o recalque senão na conta do eu e do supereu. Aqui, ao contrário, podemos situar a causa do recalque nesse ponto obscuro, esse recalcado primordial que resta fora de alcance de toda tomada do sujeito, esse ponto não é outra coisa que o que Lacan designou com uma simples letrinha: o objeto a.

Ele tomou o cuidado de precisar sua função de mais-de-gozar. Quer dizer que a é o rastro desse gozo arcaico que não passou à cifração do sentido para constituir o inconsciente que goza do sentido e, entretanto, é preciso ver que é esse resto fora do sentido que é causa do recalque. Eu não me refiro aí a Lacan, mas a Freud, quando ele no diz explicitamente em sua Metapsicologia:

Além disso, é errado dar ênfase apenas à repulsão que atua a partir da direção da consciência sobre o que deve ser recalcado; igualmente importante é a atração exercida por aquilo que foi primevamente repelido, sobretudo aquilo com o que ele possa estabelecer a ligação. Provavelmente a tendência no sentido do recalque falharia em seu propósito, caso estas forças não cooperassem. (1915, p.153).

Vemos muito claramente que Freud constrói sua hipótese do inconsciente como resultado de dois tipos de forças: a força de atração do recalcado original e a força da censura que rejeita as pulsões que ela julga perigosas. Parece-me que Lacan vai exatamente no mesmo sentido quando ele precisa as relações do inconsciente com o que designa como alíngua. A função do recalcado primordial e a função de alíngua parecem-me bastante vizinhas, para não dizer idênticas.

O inconsciente não é estruturado como alíngua, ele é estruturado como uma linguagem, diz Lacan. Certamente o inconsciente é feito de alíngua, mas Lacan precisa: "O inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua" (LACAN, 1972-1973, p. 127).

Seu saber-fazer consiste em articular significantes, a lhes dar sentido, a partir do galimatias de alíngua e se servindo das possibilidades que ela oferece: representações contrárias, assonâncias, homofonias, metonímia... etc. Porque, definitivamente, quando alíngua se faz ouvir em seu barulho insensato, ela não pode, senão, suscitar um apelo ao sentido. Todo o processo do inconsciente está aí nessa resposta ao apelo, ao sentido.

O que todo mundo pode notar é que o sentido fabricado pelo inconsciente é unívoco, ele é exclusivamente de ordem sexual. Esse sentido é impulsionado pelo investimento de algumas representações fundamentais que organizam a polaridade da estrutura edipiana. Reportem-se à Conferência XXVII da introdução à psicanálise sobre O sentido dos sintomas (1916-1917).

A menina de que Freud fala no segundo exemplo não pode dormir senão depois de ter ordenado seu mundo para evitar toda copulação do travesseiro com a cabeceira da cama, todo batimento intempestivo do pêndulo... etc. Enfim, para organizar seu mundo ela tomou como modelo a copulação de seus pais que ela quisera impedir, porque ela desejava seu pai. Sua libido é, desta feita, impedida, pois o objeto visado lhe é interdito e ela se fixa então sobre as representações que lhe servem de substitutas e que alimentam seu sintoma.

A libido, para Freud, é a manifestação da pulsão sexual. É, antes de tudo, um investimento de algumas representações de objeto, é um percurso orientado que encaminha um sujeito em direção à realização de uma satisfação sexual. O sentido das palavras serve então de aparelho para o coito sexual. É o que Lacan diz em uma aula do seu Seminário de 1974, Os não tolos erram (lição de 08 de janeiro).

Em uma conferência em Bruxelas em 1977, Lacan dizia essa coisa muito simples:

Muito mais do que disse Freud, há a maior relação entre o uso das palavras, na espécie que tem as palavras à sua disposição, e a sexualidade que existe nesta espécie. A sexualidade é inteiramente incorporada a estas palavras. Este é o passo assumido por Freud.

A libido toma emprestado o sentido das palavras. Mas, ao mesmo tempo, dando peso a algumas representações, é ela que orienta o sentido das palavras. É uma relação de intrincação. A libido toma emprestado o sentido das palavras, mas ela o reforça também.

Podemos, ao mesmo tempo, colocar a questão do que pode ser a sexualidade daqueles que não têm acesso ao sentido das palavras.

Recentemente vieram me falar de um jovem adulto autista de quem eu me ocupara em sua infância. Seus educadores estão sobrecarregados pelas crises de agressividade que ocorrem cada vez com mais frequência, e eles acreditam que isso venha da sua impossibilidade de realizar qualquer atividade sexual. Ele, com certeza, é incapaz de ter qualquer relação sexual com quem quer que seja, mas segundo seus educadores, ele não é nem mesmo capaz de se masturbar de verdade. Ele passa longos momentos no banheiro a manipular o pênis enquanto urina, para tentar provocar alguma sensação, mas sai enfurecido, porque nada funciona. A tensão interna real que o assola em seu corpo não encontra uma saída, porque ele não tem os meios para convertê-la em libido. A libido teria necessidade de representações significantes para se orientar. É o que faz falta cruelmente nesse autista profundo. Desse fato podemos constatar que esse sujeito não conhece o gozo sexual. Ele é, entretanto, invadido por um gozo que o encerra em sua bolha autista. Mas o gozo autista de alíngua não é da mesma ordem que o sentido gozado que abunda no inconsciente, mas que não é aberto senão ao sentido sexual. Como o inconsciente se vira com alíngua?

Ele a utiliza como aparelho para dar sentido ao gozo do corpo. E o sentido que convém ao gozo do corpo é o sentido sexual. Quer dizer que é uma questão [affaire] de discurso. O sentido é sempre uma questão [affaire] de discurso. Não há sentido fora de um discurso. O sentido sexual é gerado pelo lugar que um sujeito ocupa no encontro de seu corpo com o corpo de um outro. É uma questão [affaire] de lugar numa ordem simbólica. Esse lugar não é necessariamente condicionado pelo real do sexo anatômico do sujeito. É por isso que podemos dissociar o sexo e o gênero, está bem na moda, hoje em dia. Se o sexo não faz signo, o gênero, em contrapartida, pode fazer sentido.

Seja o que for, a copulação que faz sentido é uma copulação entre significantes. Só os significantes copulam, diz Lacan, e é no inconsciente que eles copulam, independentemente da realidade anatômica que diferencia os sexos. É o que significa a fórmula clássica de Lacan que não é simples de compreender nem de admitir: "não há relação sexual". Há sentido sexual, todo sentido é sexual, acreditando-se em Freud e Lacan; mas esse sentido sexual, se ele é produtor de gozo – pelo simples fato da cifração do gozo para fazê-lo entrar num discurso coerente –, esse sentido sexual não diz nada do que se passa no nível do real do corpo de um homem e de uma mulher. "Homens e mulheres, é real" – dizia Lacan diante de seu auditório na Capela do Hospital Sainte-Anne – "mas nós não somos, a respeito deles, capazes de articular a menor coisa 'na alíngua' que tenha a menor relação com esse real" (1971).

Entretanto, existe na língua esse casal de significantes homem/mulher, e ele faz parte dos famosos pares de opostos dos quais vimos que alíngua era feita. Mas no meio do conjunto de pares de opostos, o casal homem/mulher tem uma função particular na condição de que essa função seja calcada sobre aquela da "pequena célula palpitante de simbolismo" que organiza "as primeiras simbolizações da situação edipiana" (LACAN, 1953-1954/1993, p, 103)

Contrariamente aos outros pares de opostos que se articulam na alíngua, o que gera essa celulazinha palpitante de simbolismo é o sentido. Podemos então considerar que, de saída, o sentido é sexual. O inconsciente é produtor desse sentido sexual. Se acreditamos em Freud, no inconsciente como discurso do Outro, não há sentido senão sexual.

Entretanto, esse sentido não é imediatamente acessível, porque ele é codificado. O que lhe dá seu atrativo particular é que é um sentido que foge, que engana, que utiliza desvios, propõe impasses, paradoxos. Nisso ele responde perfeitamente à única definição possível do sentido: o que faz nascer naquele que recebe uma mensagem a questão do que isso quer dizer e a vontade que isso suscita de lhe decifrar. Para mobilizar o sentido é preciso, então, duas operações: uma cifração e uma decifração.

O inconsciente cifra, está aí sua função e ele tira daí uma satisfação, Freud dizia um Lustgewinn. Seria mesmo, segundo Freud, no fim das contas, sua única função: satisfazer ao princípio do prazer. Entretanto, não se pode esquecer que o mensageiro que cifra é encorajado em seu trabalho pela ideia do destinatário que vai lê-la com a condição de compartilhar a cifra (o código). O parceiro do inconsciente é o psicanalista. É ele então que o encoraja à cifração e basta um pouco de prática de análise para constatar que os sonhos são feitos para o analista.

É preciso se escandalizar com isso? Não, certamente não, é o artifício necessário da transferência. O trabalho analisante se efetua a esse preço. Entretanto, se na cifração está o gozo, como Lacan o sublinha,1 o que se passa no nível da decifração? Uma certa satisfação, não sempre, as melhores interpretações não são aquelas que satisfazem o analisante. Mas admitamos! Se não existe forçosamente satisfação, na análise, a decifração pode trazer um alívio.

De qualquer forma, não acho que seja preciso assimilar a satisfação da decifração ao gozo da cifração. Se o analista compartilha com o inconsciente de seu analisante uma paixão sem moderação pelo gozo da cifração, então a aventura se arrisca a durar uma eternidade e não se vê bem qual poderia ser a saída, senão a do desânimo.

Seria preciso, então, examinar de perto como a análise opera com o sentido.

Não acredito que ela opere desconsiderando-o absolutamente. Se Lacan nos levou a considerar o núcleo fora de sentido a partir do qual o inconsciente é formado, eu não penso que seja para nos encorajar a ceder à fascinação desse real. Creio mesmo poder dizer que Lacan, antes, encorajava o analista a ser tolo do sentido. É o que podemos ler na lição de 13 novembro de 1973 do seminário Os não tolos erram, uma frase muito forte que eu gostaria de lhes transmitir para que vocês não esqueçam: Lacan aconselha aos analistas "forjar uma ética que se fundaria sobre a forma de ser sempre mais fortemente tolo desse saber, desse inconsciente que é, no final das contas, nosso único lote de saber".

Para trabalhar essa questão do sentido na análise, eu precisaria abordar a questão sutil do sentido em relação à significação. Não terei tempo para isso nessa conferência. Confundimos frequentemente sentido e significação. Lacan nos encoraja bastante a distingui-los. O sentido é móvel, a significação é fixa. Ela está congelada na fantasia, fixada nas regressões às quais o sintoma nos leva.

O que constatamos em nossa prática quotidiana é que a análise libera as significações fixadas interrogando o sentido, sublinhando o não-sentido, fazendo ouvir o duplo sentido, resumindo, remobilizando-o.

Vou lhes trazer uma pequena vinheta clínica muito instrutiva a esse respeito.

Trata-se de um menino de oito anos que vem, acompanhado de sua mãe, por um problema de enurese. Esse menino foi adotado por seus pais, que não podiam ter filhos. Mas um ano depois da adoção, o casal se divorcia e a criança se encontra então só com sua mãe, numa relação fusional da qual a enurese dava o signo. Sou informado nessa primeira entrevista que para proteger o sono da criança e o de sua mãe, resolve-se colocar fraldas no menino. Observei que ele é bem grande para isso e que essas fraldas testemunham o fato de que sua mãe e ele se entendem muito bem para mantê-lo nesse estado de bebê da mamãe. Utilizo a metáfora de vasos comunicantes explicando à mãe e a seu filho que é alguma coisa de um que transborda no outro. Aconselho vivamente que se tirem as fraldas. Uma semana mais tarde, a criança chega muito contente de me informar que não houve transbordamentos. Eu o encorajo então a me falar de outra coisa e lhe pergunto se ele sonha. Ele me diz que não, depois muda de ideia e me conta um sonho daquela noite. Ele estava em sua casa, e havia uma inundação, mas a porta segurava bem e o nível da água acabava baixando. É muito interessante ver que o gozo que transbordava realmente no sintoma da enurese passou à cifração da qual o inconsciente se serve para se exprimir no sonho sem despertar a criança.

Para dizer a verdade, minha intervenção não visava ao sentido, mas denunciava a significação de gozo compartilhado por mãe e filho. Parece-me que essa intervenção mobilizou o operador que faltava para permitir a esse gozo fixado passar à cifração do sentido. Se o sintoma da enurese testemunhava uma significação de gozo fixado na relação entre mãe e filho, o sonho nos informa que agora a libido encontrou um outro meio para se expressar, aquele do sentido. E, como é hora de concluir esta conferência, vou aproveitar dessa vinheta clínica para concluir sobre a fuga do sentido, referindo-me a uma observação de Lacan que considero essencial, concernente ao sentido.

Eu a extraí da Introdução à edição alemã dos Escritos (op. cit.), um texto fundamental sobre a questão do sentido: "O sentido do sentido se capta daquilo que escapa, a ser entendido como de um tonel", e ele acrescenta: "é disso que escapa que um discurso adquire seu sentido" (p. 553). Atenção então aos discursos que não escapam; eles são herméticos, no verdadeiro sentido do termo, eles dão voltas, mas não têm nenhum sentido. Não penso que Lacan tenha prescrito ao discurso do analista privar-se do sentido. Se ele trabalhou tão duro para manter o escape do tonel, como ele próprio confessa no texto ao qual eu me refiro, é bem porque ele mediu o risco da passagem ao universitário. Se há um discurso que se quer ao abrigo do turbilhão do sentido, é o discurso do universitário, não aquele do analista. Como o psicanalista de hoje poderia continuar a encontrar o interesse em seu trabalho se não for sempre animado pelo escape do tonel?

 

Tradução: Suzana Rosa Ramos

Revisão: Conrado Ramos e Ana Laura Prates Pacheco

 

Referências

ABEL, K. (1884). A significação antitética das palavras primitivas. In: Ensaios Filológicos, apud Freud, 1910.         [ Links ]

FREUD, S. (1892-1893). Um caso de cura pelo hipnotismo. Com alguns comentários sobre a origem dos sintomas histéricos através da "contravontade". In: Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud, v. 1, p. 159-170).         [ Links ]

______. (1901). A psicopatologia da vida cotidiana. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud, v. VI, p.13-271 ).         [ Links ]

______. (1910). A significação antitética das palavras primitivas. In: Cinco lições de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud, v. XI, p. 141-146).         [ Links ]

________.(1915) Recalque. In: História do movimento psicanalítico, atigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud, v. XIV. p.147-158).         [ Links ]

______. (1916-1917). Conferência XVII. O sentido dos sintomas. In: Conferências introdutórias sobre psicanálise (parte III). Tradução sob a direção de Jayme Salomão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud, v. XVI, p.305-322 ).         [ Links ]

LACAN, J. (1953-1954). O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Versão brasileira de Betty Milan. 3ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1986. 336 p.         [ Links ]

______. (1971-72). Da incompreensão e outros temas. In: Estou falando com as paredes. Conversas na capela de Saint-Anne. Coleção Campo Freudiano no Brasil. Série paradoxos de Lacan. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 2011. 104 p.         [ Links ]

______. (1972-73). O seminário, livro XX, Mais, ainda. 2ª ed. revista. Versão brasileira de M. D. Magno. Rio de Janeiro, Zahar, 1985. 202 p.         [ Links ]

______. (1973). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 2003. p. 553-556.         [ Links ]

______. O Seminário, livro 21: Os não tolos erram. (1973). Inédito.         [ Links ]

______. (1977) Sobre a histeria. Conferência proferida em Bruxelas. Inédita.         [ Links ]

 

 

1 "... que no ciframento está o gozo, sexual decerto, aquele que foi desenvolvido no dizer de Freud, e suficientemente bem para se concluir que o que ele implica é que isso é que é obstáculo à relação sexual estabelecida, e portanto, a que algum dia se possa escrever essa relação: ou seja, que a linguagem jamais deixará outra marca senão a de uma chicana infinita." Cf. Lacan, Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros escritos, Zahar, p. 558.