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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.25 Rio de Janeiro nov. 2012

 

CONFERÊNCIAS

 

Ecos do passe. (A voz-a nova)

 

Echoes of the pass: the new voice-a

 

 

Marcelo Mazzuca

 

 


RESUMO

O tema do presente trabalho é a lógica da interpretação, com especial atenção ao problema do final de análise e suas continuações. Para tanto, tais questões são abordadas a partir da pergunta sobre a função do sonho, mas para interrogá-lo a partir do sesgo do objeto "pequeno a", mais concretamente sua dimensão de voz. Sob a expressão "voz-a nova", reúno algumas das consequências do final de minha análise e da experiência no dispositivo do passe. Em minha experiência analítica, os sonhos e sua interpretação tiveram um valor fundamental. O que gostaria de ressaltar da experência inicial? Que o sonho não é o inconsciente, e muito menos o inconsciente real. Entretanto, dá lugar ao real, não pode provocá-lo, mas sim evocá-lo. Essa dimensão do real repercute no sonho, abrindo o campo do sentido com suas vozes e ressonâncias.

Palavras-chave: Voz, Objeto, Sonho, Interpretação.


ABSTRACT

The theme of this work is the logic of interpretation, with particular attention to the problem of end of analysis and its sequels. Therefore, such issues are addressed from the question about the function of the dream, but to interrogate it departing from the profile of the "little a" object, more specifically, its voice dimension. Under the "new voice-a" expression, I collect some of the consequences of the end of my analysis and the experience in the pass device. In my onw analytical experience, dreams and their interpretation have had an essential value. What would I like to highlight from the initial experience? That the dream is not the unconscious, much less the unconscious real. However, it makes way to real, it cannot provoke, but evoke it. This dimension of the real resonates in the dream, opening up the field of meaning with its voices and resonances.

Keywords: Voice, Object, Dream, Interpretation.


 

 

Palavras preliminares

Para começar, quero dizer-lhes que, a respeito de minha tarefa de AE, creio ter chegado ao final de uma primeira etapa, que qualifico como "a mais testemunhal", e que consta de cinco testemunhos: (1) sobre o estatuto do inconsciente; (2) sobre o valor de índice de certos sonhos; (3) sobre o conhecimento do sintoma; (4) sobre a passagem da transferência ao desejo do analista; e (5) sobre a função da repetição e a sublimação.

Esta série de testemunhos já está publicada na Colômbia e será publicada em breve em Buenos Aires com o nome de Ecos del pase. Por isso, o título geral de minha intervenção de hoje é esse: Ecos do passe.

Desde o começo deste ano, estou em uma segunda etapa que consiste em retomar alguns desses problemas cruciais para abordá-los sob a perspectiva dos debates atuais de nossa Escola. Farei referência, então, à lógica da interpretação, mas com especial atenção ao tema do final de análise e suas continuações.

E, para tentar renovar a leitura de meus próprios testemunhos, voltarei à pergunta sobre a função do sonho, mas para interrogá-la a partir de outro viés, o do objeto "pequeno a" – como o batizou o próprio Lacan –, mais concretamente sua dimensão de voz. Por esta razão (e tendo em conta o cruzamento das línguas que hoje aqui se encontram) lhes apresento meu trabalho sob o seguinte título: A voz-a nova. Sob esta expressão (a voz-a nova) gostaria de reunir algumas das consequências do final de minha análise e da experiência no dispositivo do passe.

 

Apresentação do problema: a pergunta sobre a função do sonho

Gostaria de começar advertindo-os de que o que primeiro que salta à vista em minha experiência analítica é o valor fundamental que os sonhos e sua interpretação tiveram. Perguntei-me várias vezes sobre este fato tão contundente: por que foram tão determinantes?

Sem sombra de dúvida, a interpretação dos sonhos foi o que permitiu a Freud abrir a via de sua própria análise, e com ela a de todas as demais. Mais concretamente, foi o sonho inaugural, conhecido como A injeção de Irma, desencadeado pelo "tom de voz" com o qual seu colega Otto se referiu à cura inconclusa de sua paciente Irma.

Então, o que me é importante ressaltar hoje daquela experiência inicial? É o seguinte: que o sonho não é o inconsciente, e muito menos o inconsciente real. Entretanto, dá um lugar ao real, não pode provocá-lo, mas pode, sim, evocá-lo. A formação do sonho surge como contragolpe a este pequeno choque com o real. O que do real percute por meio da língua, repercute no sonho abrindo o campo do sentido com suas vozes e suas ressonâncias.

O resto daquela história vocês já devem conhecer: o duplo sentido da palavra "solução" (losung, em alemão) representa o sujeito e o passeia pela cena onírica. Nesse percurso, o corpo é afetado duplamente: o sonhador passa primeiro pelo buraco de uma garganta que o mastiga e o tritura até desfazê-lo. Digamos, um primeiro passo – no interior mesmo do sonho –, uma passagem pelo objeto.

Logo, o buraco da garganta o vomita e o cospe contra um muro onde a letra encontra sua representação gráfica e sua hipernitidez (a da fórmula da trimetilamina). Um segundo passo, então – que marca o final do sonho – uma passagem à letra e à fórmula.

Lembrarão que todo o trabalho de Lacan consistiu em ler e reconhecer nesse texto a gestação (ou o nascimento) do desejo do analista, para finalmente acrescentar – cito: – "e não é sem humorismo nem sem hesitação, já que isto é quase um Witz – diz Lacan –, que eu lhes propus ver aí a derradeira palavra do sonho. No ponto em que a hidra perdeu as cabeças, uma voz que não é senão a voz de ninguém faz surgir a fórmula da trimetilamina, como a derradeira palavra daquilo de que se trata" (LACAN, 1954-55/1985, p. 216). Frases que têm inclusive um conteúdo poético!

Vou falar-lhes, então, daquela voz (a voz que Lacan lê no texto de Freud), tal qual a recebi e a alojei em "meu próprio inconsciente".

Então, para tentar ganhar em clareza expositiva, vou dividir minha intervenção em três partes: a primeira (sob o título O murmúrio da verdade) tem a ver com a experiência da análise; a segunda (sob o título A canção do passe) tem a ver com a experiência do passe; e a terceira (sob o título A voz-a nova) tem a ver com o tema das continuações da análise.

 

1. O murmúrio da verdade (A experiência da análise)

Começarei pelo sonho que inaugurou minha análise. A imagem do sonho era a seguinte: uma mãe e dois filhos feitos de pedra no porta-malas de um carro norte-americano. Um sonho hipernítido, acompanhado de um sentimento de angústia e de horror, isso foi o que me despertou. Mas a diferença em relação ao sonho de Freud é que, nesse caso, foi uma interpretação pontual do analista que provocou o sonho. Foi o ato de sua palavra, ou melhor, "sua palavra em ato".

Essa interpretação abriu o trabalho de análise e foi tão decisiva, que me lembro dela até hoje. Consistiu, simplesmente, em marcar um dos termos da partitura do analisante uns compassos depois de haver sido pronunciada pelo paciente. Para ser mais claro, o analista pronunciou uma só palavra, disse, concretamente, em tom bastante elevado: "fusión!" (fusão). Pronunciou essa palavra quando o analisante falava da presença (inquietante) de duas mulheres na plateia de um recital de música do qual ele era protagonista tocando bateria.

Fusión foi, então, o termo que adquiriu valor significante, deslizando do sentido que lhe havia dado o paciente ("gênero musical predileto") para o sentido de "união harmônica das duas categorias de mulheres": as mulheres "F" e as mulheres "N", sendo essas duas letras (F e N) as iniciais dos nomes das mulheres classificadas pelo inconsciente. Ou, como já falei em mais de uma oportunidade: ficava exposta a versão musical da mulher ideal ou a versão ideal da mulher musical.

Mas por que essa interpretação teve como efeito o início da análise? Qual foi sua lógica? Creio que há aí três dimensões distintas.

1 - Em primeiro lugar, a dimensão da barra que divide o campo do significado e o campo do significante. Neste caso não foi somente uma substituição de termos que operou nesse nível, mas também um deslizamento do sentido produto da "equivocidade" do termo fusión. Produz-se, então, uma transformação no nível do significante: deixa de ser um nome próprio (o de um gênero musical) e passa a nomear a lógica que anima a operação da neurose (a união do gênero feminino).

2 - Em segundo lugar, é preciso considerar a dimensão do terreno em que o significante se escreve. Porque "a bondade do sentido", segundo Lacan – como recordou Andréa Fernandez em seu prelúdio (XII Encontro Nacional da EPFCL – Brasil. Salvador, 2011) – "consiste em eliminar o duplo sentido". Esta segunda dimensão, então, é a da instância da interpretação governada pela letra. Porque o termo fusión não designa somente a operação pela qual a neurose pretende unir os Estados Desunidos do ser feminino, mas a palavra fusión também "é" em si mesma essa união, na medida em que as duas categorias de mulheres (as F e as N) ficam escritas no começo e no final da palavra. Há aí outro terreno, o do "suporte material do significante", a palavra começa na materialidade da letra F e culmina na materialidade da letra N.

3 - Entretanto, isso não é tudo. Há uma terceira dimensão que não é nem a do significante nem a da letra, e que permite considerar a participação do corpo. "A interpretação", cito Lacan, "toca a causa de desejo, causa que ela revela" (LACAN, 1972/2003, p. 474). Dito de outro modo, a intervenção do analista é eficaz na medida em que revela essa dimensão causal e objetal do desejo. Esse objeto não é material nem possui substância, mas tem uma consistência (lógica) e, "episodicamente" – como diz Lacan –, assume uma função vocal. Neste nível, a interpretação – como o recorda Ana Laura Prates em seu prelúdio – opera menos "pelo que quer dizer" do que pelo fato de que "isso fala" (XII Encontro Nacional da EPFCL – Brasil. Salvador, 2011).

Essa terceira dimensão é a da temporalidade de um buraco que se abre e se fecha e, por isso, a interpretação não produz somente o começo da análise, mas também as condições de possibilidade de seu final. Porque a palavra fusión não somente une os termos desunidos do ser feminino, mas, ao mesmo tempo, os separa. Por um lado, porque interpõe outras quatro letras entre o F e o N, preenchendo o espaço da transferência. Mas, além disso, – e fundamentalmente – porque acrescenta o efeito sonoro (inclusive musical) sem o qual a intervenção do analista se reduziria a uma palavra morta. É por essa via que a interpretação "toca o sintoma": "toca", no sentido musical e instrumental do termo, o sintoma entendido como partitura (como composição musical escrita). Essa voz a minúscula, que o analista encarna com sua presença, intervém em contraponto ao significante e a letra, instituindo-se como condição de possibilidade da análise.

A partir daí, começou um longo murmúrio da verdade que se estendeu durante quatorze anos e muitíssimos sonhos. Fiquem tranquilos! Não irei relatar-lhes esses quatorze anos de análise, irei diretamente ao final.

A parte final da análise – que já faz tempo costumo denominar "o corredor do passe" – também esteve marcada pelos sonhos e sua interpretação. Quatro desses sonhos são suficientes para situar o que lhes quero dizer hoje. Neles, se elabora um mesmo conteúdo: a relação do desejo com o gozo fálico e com o Outro gozo.

No primeiro: tenho uma relação sexual com uma mulher. Meu irmão está atrás de mim emprestando-me o órgão. No segundo: estou deitado em uma maca a ponto de parir. No terceiro: estou grávido, mas não sou a mãe do bebê. Simplesmente empresto meu ventre para que alguém tenha um filho. E no quarto: deixo meu filho recém-nascido um tempo em um hospital. Vou embora com minha mulher para desfrutar um tempo a sós.

O que quero destacar hoje é o "dizer interpretativo" que os condicionou. Chamo-o de "dizer interpretativo" à falta de um termo mais preciso, mas, de qualquer forma, o que quero destacar é a diferença em relação à intervenção pontual que deu início à análise. Nesta parte final, a interpretação não se localiza em uma só intervenção nem se pode atribuí-la facilmente à pessoa do analista, trata-se, melhor, do dizer da análise. Entretanto, intervêm aí as mesmas três dimensões.

1) No que se refere ao campo da linguagem, os termos significantes foram: gestão e gestação. Nesse caso, creio, faz-se mais evidente pela série de sonhos, que o que conta não é tanto o múltiplo significado dos termos senão a operação de deslocamento de um termo a outro (de gestão a gestação) e sua consequência, a redução do sentido ao sem sentido do sexo. Porque – como recorda Sonia Alberti em seu prelúdio – "o sentido, que é sexual, fracassa porque sempre fracassa a relação sexual enquanto escrita". Nesse limite, em que o sentido choca-se contra o impossível de dizer da relação sexual, produz-se o deslocamento da significação fálica em direção ao buraco de onde surge a criação.

2) Quanto à instância da letra, o dizer interpretativo responde a uma lógica comparável, mas diferente. Não é tanto a de unir e separar, senão a de cortar e acoplar. O significante gestão – primeiro dos dois significantes a surgir – vai se recortando entre os termos do discurso analisante e se acopla ao significante gestação, que materialmente o inclui, mas, ao mesmo tempo, o excede.

3) Mas, além disso, os termos soam distintos, e daí a terceira dimensão. O segundo termo é, por assim dizer, o prolongamento sonoro do primeiro. Já não se opõem nem se distinguem com nitidez. Analogamente ao que ocorria com o termo fusión na porta de entrada da análise, o termo gestação "passa ao ato", se "realiza". Com isso quero dizer que não é somente o sentido da palavra que conta, senão que ela mesma é uma "gestação". Reconheço aí uma gesta da própria palavra. Ou, como já disse em alguns dos testemunhos anteriores, considero o termo gestação como um "velho significante reinventado", cuja participação no final da análise foi fundamental. A meu modo de ver, a série de quatro sonhos expressa que o gestado não é todo meu e que a mulher não é toda mãe. Acrescento, a respeito da cena sobre a qual recai a interpretação que inaugurou a análise, que o nome de meu grupo de música era Gesta Urbana (em homenagem ao conhecido grupo brasileiro Legião Urbana). Dito de uma última maneira: esse significante "esteve desde o começo, uma vez que se produziu no final". Daí que a lógica da interpretação seja ao mesmo tempo a lógica da cura.

Então, estritamente falando, o sonho que pôs ponto final ao trabalho de análise foi outro (e é aí que quero dar ênfase). A imagem do sonho é a de uma cena (escena) e um jantar (cena)1 de mulheres, e volta a enfocar a operação de corte e acoplamento entre os termos que dão suporte material ao trabalho do sonho. A lógica está determinada pela escena (primeiro termo) e cena (segundo termo), e daí a pergunta pelo gozo e pelo desejo feminino.

O relato aproximado do sonho é o seguinte: consigo que me convidem e me façam partícipe de um passeio de mulheres. Vamos todas jantar (cenar). Sou uma mulher mais entre as mulheres, o que me causa expectativas e uma grande curiosidade por aquilo que falam.

Ao relatar esse sonho em sessão, advirto que se produz um efeito de perda do "gozo da curiosidade". O sentido da cena (escena) perde-se definitivamente. Já não há grandes segredos, as mulheres jantam (cenan), como qualquer outro ser humano. Sem dúvida, quando o vazio de suas bocas lhes permite, também falam (e habitualmente falam muito). Mas não falam de nada em particular, simplesmente falam e, claro, gozam (mesmo que não tenham nenhum pedacinho em suas bocas).

Pouco tempo depois daquela sessão (sessão de análise e cessão de gozo) – não recordo exatamente quanto – a análise chegou a seu fim. E esse final merece uma nota à parte.

Posso testemunhar com dificuldade sobre aquilo que motivou o fechamento da experiência, porque foi uma satisfação mais do que uma conclusão lógica o que marcou o final. Isso sim: lembro-o com muito detalhe. Apareceu uma noite a caminho de um espetáculo de música e de teatro em que atuava com o trio de tango do qual sou integrante e fundador (ou, dito de outro modo, participo de sua gestão e fui artífice principal de sua gestação). Essa noite, "soube" – sem saber muito bem por que – que a próxima sessão de minha análise seria a última, e posso dizer que experimentei, no cenário, uma soltura cujos efeitos foram variados e notórios. Para sintetizá-los, hoje, diria que esse novo estado emotivo fazia que a voz fluísse sem travas. Entendo que esse foi um dos destinos da análise, um efeito de sublimação.

Poucos dias, logo depois da sessão final, os sonhos desapareceram durante vários meses, um fato surpreendente em função da presença que haviam tido para mim durante tantos anos. Voltaram a aparecer para inaugurar a experiência do passe.

 

2. A canção do passe (A experiência do passe)

Da série de sonhos do passe – que também foram vários, apesar de muitíssimo menos que os da análise – irei contar-lhes apenas três. (1) O que abre a porta ao dispositivo; (2) o que o fecha, e um terceiro; (3) que mostra até que ponto respondi à interpelação do passe não somente com meu nome próprio, mas também com meu nome de artista, isto é, o nome Arzeno. Começo por este sonho.

O sonho, cujo cenário reproduzia o consultório do primeiro passador, era o seguinte: um dos integrantes de Los Hermanos Arzeno (esse é o nome completo do meu trio de tango) chegava atrasado ao show. Além disso, o violão quebrava e era preciso improvisar. Uma espécie de lutier inventa uma corda e uma ponte para o violão. Eu me dispunha então a improvisar uma de minhas composições próprias, adaptando a letra para fazer referência a meu companheiro ausente.

Deste sonho surge para mim uma forma de conceber o dispositivo do passe: é como cantar uma canção a alguém, ou melhor, como repetir a canção da análise (respeitando sua estrutura formal), mas reinventando sua letra e harmonizando a voz em função do interlocutor da vez. Em síntese, como contar uma piada, em função de sua economia e sua ressonância, mas uma cuja sonoridade – cito um texto de Pascale Leray publicado na Wunsh 9 – "um dizer específico do passe, que faz signo do real". Nesse mesmo sentido, deixo explícito que estou de acordo com outro dos trabalhos da Wunsh 9 (p. 33), o de Elisabeth Léturgie, que propõe a existência de sonhos que são testemunhos de uma possível "inscrição inconsciente do passe" (Ibid. p. 14).

Tomo então os outros dois sonhos do passe, o do começo e o do final. O que me interessa destacar em ambos os casos é uma mesma coisa: a função causal de uma voz feminina e de uma língua estrangeira.

No primeiro desses sonhos, uma pessoa, com um esquisito aparelho inventado, projetava da varanda de um apartamento, imagens na superfície do prédio da frente. Como nos casos anteriores, volto a destacar que o que interessa do sonho não é seu sentido (que nesse caso pode ser reduzido ao sem-sentido do significante invenção), e sim o dizer e o objeto que o causam. Nesta oportunidade, foi a frase pronunciada pela pessoa que interrogou minha demanda de passe. Uma mulher que fala uma língua estrangeira e que, ao pronunciar em língua espanhola, contamina o dito com seu próprio canto. Suas palavras precisas foram as seguintes: "A partir de agora, você tem que inventar".

Uma voz similar foi a que interveio para causar o último sonho, o que encerra a experiência do passe. Confesso que não retive muito aquelas palavras, mas sim a notícia de minha nomeação como AE. Por isso, assumo que foi somente aquela voz (comunicando-me a nomeação) que causou o trabalho do sonho final.

Este último sonho consistia, simplesmente, na colocação em imagem de três gerações de mulheres de uma mesma família. Uma delas a ponto de "descansar em paz", as outras duas conversando e se virando com a sorte.

Entendo que este último sonho escreve morte e feminilidade, movimento e quietude, mas também – e essencialmente – a transmissão oral do desejo e da palavra viva de geração em geração (palavra que não é necessariamente paterna).

A partir daí, pude apreciar melhor um dos aspectos postos em jogo no sonho que inaugurou a análise. Vou dizê-lo assim: o que esse sonho representava (mediante o horror da imagem petrificada dos corpos) talvez não fosse mais que a versão paterna do "traumatismo" provocado pela "canção" materna. Mais precisamente, o traumatismo da língua que a canção materna permite incorporar, "o inconsciente musical", segundo a expressão que Antonio Quinet utiliza em seu prelúdio (XII Encontro Nacional da EPFCL – Brasil. Salvador, 2011). Acrescento que minha mãe, quando eu era pequeno, cantava tangos para mim no momento em que tentava pegar no sono (eu soube disso não faz muito tempo). Digamos, uma espécie de "canção de ninar" amorosa e traumática ao mesmo tempo, em síntese: "sintomática".

Por isso, se tivesse que resumir o que o último sonho do passe representa, diria: Uma voz-a nova, que não é inteiramente minha, mas tampouco de alguém em particular. É "a voz de ninguém" – como dizia Lacan do sonho de Freud –, ou melhor, a voz da Escola. Dela, gostaria de dizer-lhes umas palavras antes de concluir.

 

3. A voz-a nova (As continuações da análise)

Começo esclarecendo que a série de sonhos que lhes relatei, tanto os da análise quanto os do passe, não cumpriram a função mais habitual de promover as associações do analisante, o que Colette Soler denominou há muito tempo "o sonho como vetor da palavra" (2007). Neste caso, são todos sonhos-índice (assim os batizei no segundo de meus testemunhos) e cumprem outra função na experiência. Indicam sobre a tomada de posição do ser falante perante o buraco da verdade e ao tampão do real. Há então aí uma dimensão ética a considerar e, para poder fazê-lo, irei relatar-lhes dois últimos sonhos.

O primeiro deles pertence ao período que vai do final da análise até o começo do trabalho do passe. O segundo desses sonhos é muito mais recente e pertence ao período posterior à experiência do passe. Como verão, ambos compartilham a característica de serem sonhos produzidos fora dos dispositivos de análise e do passe.

O primeiro consistia, simplesmente, em uma imagem em movimento: via dois ou três dedos de minha mão derretendo. Um nítido sonho de castração, mas sem signos de horror nem de angústia. Mas, mesmo assim, foi muito impactante, não somente pela hipernitidez e contundência daquela imagem, porém, também, porque interrompeu um extenso período de vários meses sem sonhar. Era o índice de um desejo novo, o de participar da experiência do passe que a Escola oferece. Um sonho êxtimo: porque não pertence nem à análise nem ao passe e, ao mesmo tempo, pertence a ambos. Digamos que foi o "eco" da análise que "orquestrou" a experiência do passe. E creio que se este sonho tivesse algum sentido seria o seguinte: o buraco da verdade é a castração.

Vou agora ao último sonho. Com ele, farei referência às "continuações" da experiência. O que me interessa pensar não é tanto o estatuto do "analisado", mas o modo como aquele que passou ao lugar de analista pôde retomar sua posição analisante.

Dito de outro modo, interessa-me a formação do analista, que tem algo de interminável e cuja base fundamental é a própria experiência analisante. Recordo as palavras de Lacan, que privilegiou as formações do inconsciente na formação do analista. Posso, inclusive, coincidir com Freud, que propunha aos analistas retomar a análise a cada cinco anos, mesmo que não esteja de acordo em dois pontos. Primeiro, porque não me parece que seja possível determinar de maneira geral a cada quanto tempo um analista deve retomar sua posição analisante (isso é caso a caso). Mas, fundamentalmente – e esta seria minha segunda objeção – porque não me parece que seja estritamente necessário voltar ao dispositivo freudiano para que o analista dê lugar à condição analisante.

Como diz Lacan em O aturdito, fazer a experiência do final da análise pode fazer que o analisado fabrique-se uma nova "conduta", sem por isso supor que seu inconsciente foi eliminado. Pelo contrário, é sobre a base de sua relação ao inconsciente que o analisado poderia fazer-se uma conduta na vida em geral e em sua relação com a psicanálise em particular, já que é desse inconsciente – como diz Lacan – do qual oportunamente se vale para dar uma interpretação.

No meu caso, confesso-lhes que não somente continuo sonhando, como poderão supor, mas também que continuo utilizando os sonhos (ao menos alguns) em função de uma conduta que, hoje em dia, não considero senão no âmbito de minha relação com a Escola. Por esta razão, o título de minha intervenção em Paris será: "O AnalistanalisantE", tudo junto, expressão que tomei de Matías Buttini,2 um de meus colegas do FARP.

Passo então, agora sim, ao relato do único sonho (após o passe) em que aparece quem fora meu analista. A situação era a seguinte: fazia parte da casa-consultório de quem fora meu analista, onde também havia outras pessoas que pareciam pertencer a um grupo de estudos. O clima era de muito relax e diversão. Sobre uma pequena mesa estava apoiado um livro de capa amarela, com algumas linhas de outras cores (como se fossem serpentinas) e com algumas marcas (como se partes de suas letras estivessem tachadas). Era uma publicação de quem fora meu analista e de alguns colaboradores, sobre o ato analítico. Pergunto, com interesse, sobre o conteúdo da publicação, mas, quem fora meu analista, lhe retira todo valor e importância. Finalmente, saio daquela casa-consultório, sentindo que não era de todo bem-vindo. Até aqui o sonho.

O que rapidamente pude perceber foi o quanto a página inicial do livro do sonho se parecia com a versão impressa que tenho do Seminário 15. Sobretudo, parecida com o cartaz de propaganda de um dos candidatos ao governo de Buenos Aires. A estratégia publicitária dessa campanha gráfica era a seguinte: expunha-se, sobre um fundo amarelo com serpentinas coloridas, uma foto com o estereótipo de pessoas com as quais, evidentemente, o candidato ao governo não simpatiza nem um pouco. Uma pessoa, por exemplo, com a camiseta do River Plate (equipe de futebol para a qual torço) rival histórico do Boca Juniors (clube do qual foi presidente o candidato ao governo). A isto se acrescentava a seguinte legenda: "você é bem-vindo" ("vos sos bienvenido"). Mas, o cartaz que eu havia visto tinha sofrido uma série de intervenções urbanas, que valiam como uma interpretação. Na palavra VOS, acrescentaram um risco à letra V (transformando-a em um N) e também riscaram a letra S, transformando a frase "você é bem-vindo" ("vos sos bienvenido") em "não és bem-vindo" ("no sos bienvenido"). Isso seria o que corresponde ao resto diurno que motivou o sonho.

Acrescento que, na época, tinha interesse de estudar o seminário de Lacan sobre o ato psicanalítico, o que, finalmente, estou fazendo hoje em dia em um trabalho de cartel. Havia dito a mim mesmo que não poderia deixar passar mais tempo sem ler esse seminário detalhadamente, em um momento em que minha experiência do passe e meu trabalho de testemunhar estavam perdendo um pouco de força e vivacidade. Evidentemente, estava buscando algum Outro que me proporcionasse o saber sobre o ato psicanalítico, e entendo que daí surge o valor do sonho. É como se recebesse a seguinte resposta: você não é bem-vindo, não há nesse consultório nem neste livro nada que possa lhe servir. Você terá que se virar com o que conseguiu saber sobre o ato a partir de sua própria experiência como analisante e, eventualmente, retomá-la desde os limites desse saber.

Então, para terminar, deixo-lhes três impressões como resultado do pequeno trabalho que, como "analisante sem análise", fiz desta última formação onírica.

Primeiro, que o efeito de afeto foi claro e contundente: a partir daí retomei com muito mais força e entusiasmo a tarefa que vinha realizando na qualidade de AE.

Segundo, que o sentido que lhe atribuiria ao sonho seria o seguinte: não há doutrina do ato que assegure sua subsistência.

Terceiro, que esta é uma das manifestações, via inconsciente, daquela voz que não é minha, mas que tampouco é de ninguém, e que escolho qualificar como o canto que a Escola interpreta, no sentido musical do termo: uma voz-a nova.

Entendo que por meio dela repercute esse pedaço de real que percute nossos ouvidos, levando-nos à formação do sonho. Trata-se, como propunha Lacan, de tentar despertar, o que implica uma orientação ética para o trabalho de nossa Escola. Mas, cuidado! Não há despertar do real que seja definitivo. Cedo ou tarde, a verdade mentirosa volta a murmurar seu meio-dizer. Trata-se, então, de continuar conversando, de uma "colocação em diálogo de comunidade" que tente escrever algo do real que nos mantém vivo e nos orienta. Para isso, é preciso poder dar lugar a uma voz-a nova. Ou – como diz Dominique Fingermann no texto de seu prelúdio –, a "um oco proporcionando sempre um eco por vir" (XII Encontro Nacional da EPFCL – Brasil. Salvador, 2011).

 

Tradução: Maria Claudia Formigoni

Revisão: Ana Paula Gianesi

 

Referências

FERNANDEZ, A: Interpretação: arte poética do significante à letra, Prelúdio no 2, textos preliminares para o XII Encontro Nacional da EPFCL/AFCL – Brasil. Salvador, 2011.

FINGERMANN, D: A resposta que convém ao estilo do inconsciente, Prelúdio no 4, textos preliminares para o XII Encontro Nacional da EPFCL/AFCL – Brasil. Salvador, 2011.

LACAN, J. (1954-55). O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Tradução de Marie Christine Lasnik Penot, com a colaboração de Antonio Quinet. Rio de Janeiro, Zahar, 1985. 413p.         [ Links ]

_________. (1972). O aturdito. In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 448-497.         [ Links ]

LERAY, P. A abertura a uma nova satisfação. In: Wunsch no 9, Boletim Internacional da EPFCL. Outubro de 2010. Disponível em: <www.campolacaniano.com.br>         [ Links ].

LÉTURGIE, E. Depois do passe. In: Wunsch no 9, Boletín Internacional da EPFCL, Outubro de 2012. Disponível em: <www.campolacaniano.com.br>         [ Links ].

PRATES PACHECO, A.L. P: Prelúdio no 1, textos preliminares para o XII Encontro Nacional da EPFCL/AFCL – Brasil. Salvador, 2011.

QUINET, A: O inconsciente musical, Prelúdio no 3, textos preliminares para o XII Encontro Nacional da EPFCL/AFCL – Brasil. Salvador, 2011.

SOLER, C. Acerca del sueño. In: Finales de análisis. Tradução de Graciela Brodsky e Adriana Torres. Buenos Aires: Manantial, 2007. 150p.         [ Links ]

 

 

1 NT: Escena (cena) e cena (jantar) são palavras homófonas em espanhol.
2 El analista-analizante. Trabalho de sua autoria apresentado na mesa do Espaço Escola das Jornadas das AlSur, em julho de 2011.