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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.25 Rio de Janeiro nov. 2012

 

ENSAIOS

 

A interpretação: uma arte com ética

 

Interpretation: an art with ethics

 

 

Antonio Quinet

 

 


RESUMO

Nesse artigo o autor interroga as condições da enunciação da resposta do analista chamada classicamente de interpretação, cujo termo advém de campos tão díspares. Inicialmente como oráculo, que toma a via do signo e do enigma, correndo o risco de ser tomada como vaticínio e também como fora-do-discurso das psicoses, que toma o sentido paranoico como sua via por excelência, portanto avessa à ética da psicanálise por referir-se a uma significação pré-estabelecida. Para sair do embaraço de nomear o dizer do analista com esse termo, o autor lembra que Freud indicava o caminho trilhado pelo artista, ou seja, o da interpretação musical ou teatral, justificando ao longo do texto a escolha da sua trilha pelo inconsciente musical de lalíngua e a mise-en-acte do analista.

Palavras-chave: Interpretação, Lalíngua, Mise-en-acte do analista.


ABSTRACT

In this article the author questions the conditions of enunciation of the analyst's answer classically called interpretation, whose term originates from diverse fields. Oracle at first, it follows the way of the sign and the enigma, running the risk of being taken as prophecy and also as out of the discourse of the psychoses, which takes the paranoid sense as its route par excellence, thus resistant to the ethics of psychoanalysis for referring to a pre-established signification. To get out of the embarrassing situation of labeling the saying of the analyst with such a term, the author recalls that Freud would point to the path followed by the artist, in other words, that of musical or theatrical interpretation, justifying along the text the choice for his path by the musical unconscious of lalingua and the mise-en-actedo analyst.

Keywords: Interpretation, Lalingua, Mise-en-acte do analyst.


 

 

O analista para se diferenciar dos outros agentes dos laços sociais, não deve responder diretamente à questão de quem o procura e sim fazê-lo falar. A singularidade de sua resposta reside, segundo Lacan, não no enunciado e sim na enunciação. Trata-se de uma resposta enviesada, à côté, uma para-resposta, regida pela ética da psicanálise. O analista está advertido do poder de comando de todo enunciado e de que é por sua enunciação que se coloca o desejo do analista. Quais as condições da enunciação da resposta do analista chamada classicamente de interpretação?

Lacan nos aponta embaraço do termo interpretação para se nomear o dizer do analista, pois ele advém de "campos tão díspares quanto o oráculo e o fora-do-discurso da psicose". (LACAN, 1973/2003, p. 492).

Esta última é a resposta pela via do sentido por excelência. Na paranoia, ela preenche o vazio da significação com um sentido ditado pelo postulado do delírio. Toda interpretação pela via do sentido é paranoica, na medida em que se refere a alguma significação pre-estabelecida. Ela é o avesso à ética da psicanálise que nos orienta para a desalienação dos sentidos pré-fixados.

A interpretação oracular é feita pela via do signo. Lacan desde 1958 evoca o oráculo como exemplo de interpretação analítica: "Intérprete do que me é apresentado em falas ou atos, decido acerca de meu oráculo e o articulo a meu gesto, único mestre/senhor a bordo" (p. 594). E mais tarde cita Heráclito: o oráculo, como o analista, não revela nem oculta, ele faz signo, dá um sinal. Em grego, a palavra oráculo significa palavra obscura, enigma - que deve efetivamente ser o status da interpretação analítica como forma de semi-dizer. No entanto, ela corre o risco de ser tomada como vaticínio, fazendo com que o analisante leia seu destino no enunciado oracular como Édipo, Rei.

Como sair do embaraço? Freud aponta o caminho: que o analista siga os caminhos trilhados pelo artista. Tomemos, então, o termo INTERPRETAÇÃO como interpretação de uma obra musical ou teatral. O músico interpreta uma obra com seu instrumento, um ator interpreta um texto de um autor. A arte do analista consiste na sua interpretação dos ditos do analisante. Vejamos o que essas modalidades da interpretação artística ensinam ao analista.

 

Interpretação e inconsciente musical

A interpretação analítica solidária do inconsciente como saber de lalíngua é a que leva em conta, por um lado, os equívocos de que ela é feita, por outro lado, seus arranjos musicais, que se encontram na enunciação. Equivocidade e música são as características da interpretação poética. É o sem-sentido próprio da música, presente na fala, que nos permite escapar ao autoritarismo do significante, que sempre tende a antecipar um sentido.

Lacan afirma que o corpo está ligado ao que da língua se canta (1976/2003, p. 565). Se Joyce nos mostra um manejo de lalíngua que nos remete à interpretação poética, é por ele ter feito a opção pela musicalidade das palavras, em detrimento do sentido, diz Joyce, que "amava mais o erguer e o tombar rítmico das palavras do que suas associações" (2001, p. 186). E chama de canção a própria poesia. "Uma canção de Shakespeare ou de Verlaine, em aparência tão livre e vivaz ... nada mais é do que a expressão rítmica de uma emoção" (1982, p. 388). Com efeito, Um retrato do artista quando jovem começa com duas canções, uma do pai e outra da mãe que o faz dançar: Tralala lala,/ Tralala tralaladdy,/ Tralala lala,/ Tralala lala. E logo em seguida ele conta sua primeira epifania, como todas, musical, com a voz do supereu. Pull out his eyes,/Apologize,/Apologize,/Pull out his eyes. (1968, p. 3). Seus olhos arrancar,/Se desculpar,/Se desculpar,/ Seus olhos arrancar.

Uma interpretação analítica pós-joyciana é a que está à altura do inconsciente musical, estruturado por lalíngua, que inclui portanto o trá-lá-lá do real, que restou da lalação, composta pelos traumatismos da língua materna. Pois, lalíngua é composta por significantes da língua materna + a música com a qual foram ditos.

A interpretação poética do analista joga não apenas com o equívoco do significante, mas também com a organização de silêncio e sons, altura, intensidade, mudanças de timbre e volume de sua voz. Se o analista muda a entonação de sua voz usando os mesmos significantes do analisante, o efeito é outro apesar de o enunciado ser o mesmo. A poesia, como diz Ezra Pound, é words set to music.

"Basta escutar a poesia", diz Lacan, "para que nela se faça ouvir uma polifonia e para que todo discurso revele alinhar-se nas diversas pautas de uma partitura" (1957/1998, p. 506). A música de uma fala com seu tom, andamento, pausas e sons presentifica o real. A razão da ética da interpretação analítica é sua ressonância, sua réson (com a letra e) como escreve o poeta Francis Ponge ao qual Lacan se refere em seu seminário O Saber do psicanalista, onde se pergunta: "o que ressoa – seria isso a origem da "res", com a qual se faz a realidade?" (1972/2011, p. 85-86).1 O analista, como um músico, interpreta a partitura do analisante. Ele aponta para aquela música que o próprio autor não escuta.

A para-resposta do analista corresponde à enigmatização do enunciado. Em vez de satisfazer a pergunta, ele a transforma em outra questão - inesperada – transformando o interlocutor em decifrador.

 

A mise-en-acte do analista

Com a retomada da psicanálise no campo do gozo, Lacan nos introduz à clínica do ato e nos faz passar da talking cure para a acting cure, da clínica da fala à clínica do ato, dos ditos ao dizer, definido como todo fazer que funda um fato. Uma vez inscrito num laço social, todo ato é da ordem do semblante, ou seja, um acting, uma representação no sentido teatral, um make believe. Todo agente de cada discurso deve eticamente se submeter a uma performance para que seu ato tenha efeitos no real, inclusive o analista, que deve fazer semblante de objeto a, que é o semblante, por excelência que permite o simbólico fisgar o real.

O semblante é também a característica do próprio significante. Como então o analista pode fazer semblante de a, que por estrutura tem "aversão ao semblante" por estar fora do significante? Pois bem, se você tira o significante do semblante o que resta? A pura enunciação: é por meio dela que o objeto a se presentifica.

O mesmo enunciado pode estabelecer qualquer laço social de acordo com sua enunciação, que é a maneira de colocá-lo em cena. A enunciação não implica somente a fala, mas também os gestos, os movimentos e o contexto. A enunciação corresponde à encenação. A enunciação de lalíngua designa não apenas a maneira de falar, mas também o contexto em que os traumatismos da língua foram perpetrados, os gestos que os acompanhavam, o cenário, os personagens que estavam presentes, enfim, tudo o que compõe a situação, como na cena de infância de Joyce.

Lacan fazia uma palavra dizer qualquer coisa que ele quisesse. A maneira como se fala trará um dizer para além do sentido dos ditos. Falar qualquer texto já é uma interpretação, no sentido teatral. Nesse sentido, falar é interpretar. A interpretação de um texto pode inclusive dizer o oposto do que está sendo dito.

Lacan propõe duas modalidades de semi-dizer da interpretação: o enigma e a citação. Ao enigma ele faz corresponder à enunciação e a citação ao texto colhido na trama da fala do analisante e citado pelo analista para o próprio analisante. Assim, o enunciado é enigmatizado por sua enunciação trazendo à cena o que está fora do discurso e que, no entanto, o causa. Como um ator faz com o texto dramatúrgico, o analista interpreta o texto do analisante a partir de uma encenação. O analista confere à literalidade do texto a teatralidade do semblante.

Assim como o teatro, a cena analítica deve ser o lugar da poesia viva. O analista é o intérprete que vivifica lalíngua, para o analisante, na poiesis de seu dizer. O analista se apaga como sujeito e se inter-presta ao semblante na cena analítica. Ele entra assim na Outra Cena e passa a fazer parte do inconsciente real. Não há como o ato analítico não utilizar-se do semblante para operar, pois é a única maneira de se abordar o gozo e assim visar um pedaço de real do analisante.

O objeto a não é um personagem específico de uma peça escrita por algum autor – é um lugar a ser ocupado. O objeto a, como semblante, pode ser todos os personagens possíveis desde que sustentados pela verdade do saber que orienta a estratégias dos semblantes. Tanto a psicanálise quanto o teatro lidam com a encenação e fazem de um texto um ato. A teatralidade do analista não é qualquer uma: ela tem por base a verdade. Não se trata de um faz de conta de mentira. É um faz de conta de verdade, sustentado pela ética do bem dizer.

Lacan compara o analista com o ator de tragédia grega. "O semblante deve ser porta-voz por se mostrar como máscara, abertamente usada como no palco grego" (1972, lição de 10 de maio). Essa máscara é o semblante do personagem que utiliza para interpretar. E esse semblante não precisa ser escondido. Ele "tem efeito por ser manifesto" continua Lacan - o analista não precisa fingir que não está representando, ao contrário, ele explicita sua encenação e obtém efeitos de verdade no real. Essa mise-en-scéne do analista em seu ato se encontra desde o início do ensino de Lacan comparando-a a intervenção do mestre zen: um sarcasmo, um ponta-pé. São formas de enunciação. Atos sem palavras, como peças de Beckett, onde coloca em cena a enunciação pura, sem enunciado algum.

O analista em seu ato de interpretar paga com sua encenação, não para que o analisante goze, como um espectador, mas para que produza sua particularidade. Ele produz seu dizer num ato cênico da ordem do semblante para fazer escutar a função poética dos signos de sua interpretação. Na partitura da interpretação se conjuga, assim, o fazer e os ditos, a enunciação global paralinguística e o significante poético de lalíngua. O real não faz sentido, mas ressoa. Ele se manifesta na ressonância de lalíngua, na sua musicalidade – por onde se expressa o real do inconsciente. Lá onde o sentido se esvai, desvela-se um novo cogito para o ser falante: Eu soo, logo existo. Eis onde deve incidir a interpretação do analista para fazer ressoar algo do real do analisante.

 

Referências

JOYCE, J. Um retrato do artista quando jovem. Tradução de José Geraldo Vieira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, 294 p.         [ Links ]

_________. Stephan Hero. Oeuvres. T.1, La Pleïade, 1982, 388 p.         [ Links ].

_________. A portrait of the artist os a young man. London: Everyman's Library, 1968, 225 p.         [ Links ]

LACAN, J. (1957). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: _________. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 496-533.         [ Links ]

_________. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 591-652.         [ Links ]

_________. O seminário. ... ou pior. (1971-1972). Inédito.         [ Links ]

_________. (1972). O saber do psicanalista. In: LACAN, J. Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011. 103p.         [ Links ]

_________. (1973). O Aturdito. In: LACAN, J. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2003, p. 448-497.         [ Links ]

_________. (1976). Joyce, o Sintoma. In: LACAN, J. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2003, p. 560-566.         [ Links ]

 

 

Recebido: 30/07/2012
Aprovado: 10/08/2012

 

 

1 Jacques Lacan, O saber do psicanalista, cujas três primeiras conferências foram editadas como Estou falando com as paredes.