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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.25 Rio de Janeiro Nov. 2012

 

ENSAIOS

 

Quem tem medo do ready-made? Psicanálise, interpretação e arte contemporânea

 

Who's afraid of ready-made? Psychoanalysis, interpretation and contemporary art

 

 

Sonia Borges

 

 


RESUMO

Este artigo discute a orientação de Lacan para o trabalho de interpretação à luz de sua surpreendente afirmação: A interpretação é o ready made, Marcel Duchamp [...], na conferência A terceira, de 1974. Com esta "definição" da interpretação, Lacan não só radicaliza a sua crítica à perspectiva hermenêutica da interpretação, como ratifica a ideia do equívoco como sendo o seu paradigma. O ready-made, pelo fato de mostrar silenciosamente o que é um objeto, ou a falta essencial que habita e sustenta todo objeto, esclarece que é jogando com as palavras de forma provocativa que se pode ir além do deciframento dos significantes primordiais, sem, contudo, "engordar os sintomas com significados".

Palavras-chave: Psicanálise, Interpretação, Sintoma, Ready-made.


ABSTRACT

This article discusses Lacan's orientation for the work of interpretation in light of his amazing statement: Interpretation is the ready-made, Marcel Duchamp [...], made in the conference The third, in 1974. With this definition of interpretation, not only does Lacan radicalize his criticism to the hermeneutic perspective of the interpretation, but also ratifies the idea of having equivocation as his paradigm. For the fact of silently showing what an object is, or the essential lack which inhabits and sustains any object, the ready-made makes it clear that it is playing with words in a provocative way that one can go beyond the deciphering of the primordial signifiers without, however, "fattening the symptoms with meanings".

Keywords: Psychanalyse, Interpretation, Symptom, Ready-made.


 

 

Como referência para desenvolver este trabalho, tomei a surpreendente definição da interpretação analítica proposta por Lacan, em 1974, em Roma, na conferência A terceira. Diante de uma grande plateia, para assombro de todos, ao desenvolver o tema da interpretação do sintoma, Lacan (1974/2005, p. 58) faz a seguinte afirmação:

A interpretação deve ser sempre o ready-made, Marcel Duchamp, que ao menos vocês ouçam disso alguma coisa, o essencial que há no jogo de palavras, é isso que a nossa interpretação deve visar para não ser aquela que alimenta o sentido do sintoma.

Com esta provocação, Lacan não só radicaliza a sua crítica à concepção hermenêutica de interpretação, como ratifica a ideia do equívoco como o seu paradigma: tal qual o ready-made, a interpretação deve apontar para os limites da representação ou da linguagem, para o impossível de se dizer a coisa, para o real.

Mas, o que é o ready-made, modelo para a interpretação? Segundo Pierre Cabane (2008), um dos mais importantes críticos da obra de Duchamp, este objeto-arte pode ser pensado como "uma janela para alguma outra coisa". Não seria esta a função da interpretação?

Lacan diz de passagem que, embora o relacionem principalmente aos surrealistas, considera-se próximo do dadaísmo. O dadaísmo nasceu por volta de 1916 e congregou artistas plásticos, poetas e músicos que se rebelavam contra as ideias burguesas existenciais e estéticas então vigentes. Para isso, tinham como arma criações artísticas que veiculavam suas ideias pela via da ironia, da piada, do trocadilho, ou melhor ainda, do non-sense.

 

 

 

Na esteira desse movimento, Marcel Duchamp, o artista mais discutido do século XX, inventou os ready-mades que, conforme Breton (1934, p. 42), são "objetos manufaturados promovidos à dignidade de objetos de arte". Aceitá-los como obra de arte significa assumir que as diversas qualidades que, tradicionalmente, caracterizavam as obras de arte, tais como relação forma-conteúdo, habilidade do artista, estilo, expressão, gosto, beleza etc., não são mais, necessariamente, relevantes. Diante desta "nova arte", não se trata mais de contemplação, mas de experiência com a produção do artista.

 

 

 

O Mictório, ou "Fonte", título que já produz equívoco, a Roda de Bicicleta, o "Porta-Garrafa", o pé "Tortura-Morte"; assim como muitas outras de suas criações, quando expostas em um dos principais museus de Nova York, provocaram uma subversão no campo das artes, cuja repercussão se estende até hoje, inclusive no que tange à crítica de arte. Isto certamente se deve à prodigiosa repercussão de seus efeitos coerentes com os objetivos do dadaísmo, a saber, a crítica ao que Duchamp chamou de "arte retiniana", ou arte representacional, arte produzida conforme o modelo, então vigente, fundado na aliança entre arte, representação e racionalismo.

É esta subversão provocada por Duchamp no campo das artes o alvo de certa crítica que preconiza que suas obras, e a arte contemporânea de um modo geral, nem mesmo devam ser reconhecidas como arte. Duchamp, talvez pela radicalização de seu trabalho, vem sendo o mais atingido. No Brasil, intelectuais reconhecidos como Ferreira Gullar e Afonso Romano de Sant'Ana, entre outros, tecem constantes críticas a essa arte, mostrando verdadeira indignação diante do trabalho de Duchamp e de outros artistas, mobilizados, talvez, pelo amplo movimento e sucesso, inclusive internacional, da arte contemporânea brasileira. Em seu livro Desconstruir Duchamp, Afonso Romano (2003, p. 116) afirma: "Passou-se a aceitar como arte tudo aquilo que o artista apresenta como obra de arte. Passou a valer a assinatura, a intenção. Daí o silogismo perverso: se tudo é arte, então nada é arte".

Como se pode observar, é justamente o que preconizavam os dadaístas, o que está no foco dessas críticas: o seu rompimento com a ideia clássica de arte como representação, que se expressa muito bem no dito de um deles, Richard Huelsenbek: "O bom é que não se consegue, e provavelmente não se deve entender o Dadá" (DEMPSAY, p. 157).

A posição apaixonada destes críticos não viria da velha resistência ao desconforto inegável que qualquer representação que rompa a relação biunívoca entre significante e significado nos traz? O que estaria em questão não seria a busca ansiosa pela possibilidade de interpretação que mata a riqueza polissêmica e ambígua de nossas representações, palavras e imagens?

Lacan vai na contramão desta posição. Refere-se ao ready-made, na Terceira (op. cit., p. 59), para recomendar ao analista que interprete "jogando com as palavras", ou seja, de uma forma provocativa que rompa com significados estáveis, que seja capaz de despertar o que o uso corrente do discurso ordinário adormece, evitando-se, assim, engordar o sintoma com significados (p. 94). Para Lacan, em última análise, trata-se de se ir além do deciframento dos significantes primordiais que instituíram o sujeito, retendo-o na posição de sofrimento. Deciframento que, no entanto, não está descartado na direção das análises, como procedimento que leva o sujeito a aceder a tais significantes que mostram a sua alienação ao dito, ou à demanda do Outro. Em A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan (1958/2005, p. 640) afirma: "é de uma fala que suspenda a marca que o sujeito recebe do seu dito, e apenas dela, que poderia ser obtida a absolvição que devolveria seu desejo".

Assim sendo, pode-se perguntar: o que se faz, então, em uma análise? Decifra-se, ou se cria a partir do que já está ali? As duas coisas, certamente, pode-se responder. Decifrando-se, tem-se os efeitos de desalienação que, justamente, abrem as possibilidades para o processo criativo que se pode experimentar no trabalho analítico além do deciframento. Além do deciframento, porque esse é o ponto em que o significante não mais representa o sujeito para outro significante, mas o apresenta pela via de uma modalidade pulsional, a letra. Ponto ignorado pela ciência, já que para se fazer exige a transgressão de que só o fazer poético é capaz. O poético, que tomamos aqui no sentido grego do termo que, em uma de suas acepções, remete à criação, àquilo que se opõe à theoria enquanto contemplação, e à práxis como ação.

É com a poesia que Lacan, sobretudo a partir de 1970, esclarece o que é o ato analítico, ressaltando que "a língua é fruto de uma maturação, de um amadurecimento de alguma coisa que se cristaliza no uso; já a poesia releva de uma violência feita a este uso" (LACAN, 1976-1977/2005, lição de 15/03/1977). A poesia, assim como toda arte, subsiste dessa violência que provoca na língua e, consequentemente, na cultura, transmutando o impossível em contingência. Quando Lacan recomenda que a interpretação produzida pelo ato analítico tenha efeito de equívoco, assim como o ready-made o tem sobre os espectadores nos museus, e até sobre os críticos, aponta para o seu necessário efeito de transgressão, travessia, de ato no sentido estrito:

[...] enquanto está escrita, a obra [aqui Lacan se refere à escrita literária] não imita o efeito do inconsciente. Ela coloca dele o equivalente, não menos real que ele, por forjá-lo em sua inflexão (LACAN, 1977, apud LEITE, 2011, p. 37).

Estaria neste ponto – no ponto de violência da poesia e de toda arte – a conexão que permite a homologia, feita por Lacan, entre a interpretação analítica e o ready-made?

No entanto, sabemos que há também controvérsias e desconforto no campo da psicanálise diante da radicalidade dessa orientação lacaniana quanto à interpretação. Desconforto que advém por também se estar apontando, seja com a palavra que equivoca, que faz enigma, seja com o semidizer ou com o corte em sessões curtas, para os limites da linguagem que proíbem a assimilação entre interpretação, significado e verdade. E isto, sem se renunciar a sustentar a existência de um saber que pode dar conta da verdade, mas da verdade de inspiração heideggeriana, que está sempre escapando. "Não é o sentido que vocês interpretam", diz Lacan, "seja ele qual for, e sim o resto" (LACAN, 1962-1963/2005, p. 141). Mais adiante, volta à questão, precisando, no Seminário 11, que a interpretação, ela mesma, é um não-senso, mas que é falso dizer que está aberta a qualquer sentido. Afirma que não é isto, porque se trata de isolar no sujeito um coração, um KERN de não-senso, ainda que a interpretação seja ela mesma um não-senso. Mas, como se daria isto?

Quando Lacan se referiu ao ready-made, estavam em pauta os efeitos da interpretação sobre o sintoma. O sujeito, em sua resposta ao real, busca estabelecer esta montagem "teatral" – o sintoma – que lhe serve de anteparo. As formações do inconsciente, e de modo especial o sintoma, são invenções particulares do sujeito diante do real. Nenhum falante escapa desta perspectiva de ter que inventar esse anteparo. "O que Descartes não sabia", diz Lacan, também na Terceira, "é que, desde que se fale, há inconsciente" (p. 75). Esta é uma das definições de inconsciente que nos apresenta neste texto. Mas, traz também que o inconsciente é "um saber impossível", dizendo a seguir que "o ato analítico é um saber sem sujeito". Estas definições já são suficientes para nos indicar que não podemos sustentar a ideia de que a apreensão do inconsciente possa ser exaustiva. Por isso mesmo, a interpretação produzida pelo ato analítico é da ordem desse saber fazer, que é demonstrativo, no sentido de que não se dá sem a possibilidade de um equívoco. Lacan ressalta, inclusive, jogando com a homofonia permitida pelo francês, que "o um – equívoco" – l'une bévue – é uma tradução tão boa do Unbewusst quanto qualquer outra... "L'une bévue é alguma coisa que substitui aquilo que se funda como saber que se sabe, o princípio do saber que se sabe sem sabê-lo: é justamente nisso que o inconsciente se presta àquilo que eu acreditei que devia suspender sob o título de l'une bévue" (LACAN, 1976–1977, lição de 16/11/1976). Ou seja, l'une bévue é uma escrita de outro registro que não a do significante, avessa a qualquer sistema como tal, "um inconsciente suspenso e caracterizado por descontinuidade, que desliza de palavra a palavra, sem a conexão metonímica; dá conta de uma ordem em que não há a adição, mas a subtração de sentidos" (MORAES, 2011, p. 53).

É no bojo desta orientação que Lacan toma o fazer poético, e também o ready-made que, por suas peculiaridades, se presta mais ainda para tal, para cifrar a interpretação analítica. O ready-made caracteriza-se por ser algo que se retira do contexto. É como retirar S2 de S1. O S2 é o que faz o contexto sempre. Esta operação aponta para o furo do real. Os comentadores de Duchamp também dizem que os ready-mades são trocadilhos em três dimensões que, como tal, apontam para o mais além da significação. Nisto, o chiste se aproxima da poesia. Freud (1905, p. 154) falava da "benevolência do chiste: as palavras são um material plástico, afirma, com o que se pode fazer qualquer coisa". Para Lacan, "O que se diz a partir do inconsciente participa do equívoco, do equívoco que está na base do chiste" (LACAN, 1976-1977/2005, lição de 11/08/1976).

O fazer poético, o chiste e a interpretação têm em comum ser expressão da função poética da linguagem, portanto têm a mesma estrutura, que os faz aptos à criação, à ficção e à produção de semblantes. Os ready-mades, pode-se dizer, já estavam na casa de muita gente, mas Duchamp os retira, os descontextualiza, e os mostra como invenção ficcional e, ao se tornarem invenção ficcional, indicam que são semblante de algo que está e não está lá. Sua pretensão era de nenhuma representação, e a coisa pura, a roda da bicicleta, se torna arte. Está se falando de semblantes, de ficção, e estes devem ser tomados no sentido que Lacan indica: a verdade tem estrutura de ficção. A verdade é uma montagem, semblante.

Esta orientação teórico-clínica de Lacan implica privar o sintoma de sentido, mas ainda é sobre o sintoma que se opera, mas para reduzi-lo. Por isso a necessidade de distinguir a perspectiva semântica, da assemântica da interpretação. A pontuação, por exemplo, ao realçar um significante, produz uma significação, diferentemente do equívoco que interrompe o movimento concernente ao sentido do sintoma, e reconduz o sujeito ao sem sentido do real, à opacidade do seu gozo e à perplexidade.

Para terminar, acho importante ressaltar que esta manipulação por Lacan dos efeitos linguageiros, ou dos jogos fono-semânticos que propõe como modelo para a interpretação, não tem como meta efeitos estéticos. Com Haroldo de Campos (2001, p. 116), em seu belo ensaio O poeta e o psicanalista: algumas invenções linguísticas de Lacan, é possível dizer que:

Lacan está pensando em situar o inconsciente (...) não pela via destra e mestra do significado, mas pela via canhestra e sinistra do significante; não por uma via prevista e insuspeita do acesso, mas, por um desvio imprevisto (...) insuspeito do insucesso.

 

Referências

BRETON. A. Le phare de la mariée. In: Revista Minotaure. Paris, n. 6, 1934, p.136-165.         [ Links ]

CAMPOS, A. O poeta e o psicanalista. In: A invenção da vida: arte e análise. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001, p. 126-135.         [ Links ]

CABANE, P. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo, Perspectiva, 2008. 205p.         [ Links ]

COCCHIARALE, F. Quem tem medo da arte contemporânea? Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2006, 77p.         [ Links ]

DEMPSEY, A. Estilos, escolas e movimentos. São Paulo: Cosac Naify, 2003. 330p.         [ Links ]

FREUD, S. (1905) Os chistes e sua relação com o inconsciente. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 8, 154p.         [ Links ])

LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1985, 269p.         [ Links ]

_________. (1958). A direção do tratamento. In: LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 591-652.         [ Links ]

_________. A terceira. (1974). Texto inédito. Tradução para uso interno, FCCL/Rio de Janeiro, 2005. 41p.         [ Links ]

_________. L'insu – que – sait de l'une bévue s'aile a mourre. (1976-1977). Seminário inédito.

LEITE, N. entreAto – Apresentação. In: MILÁN-RAMOS, J. e LEITE (orgs.). entreAto – o poético e o analítico. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2011. p. 11-20.

SALSANO, R. O fracasso do equívoco é o amor. In: MILÁN-RAMOS, J. e LEITE, N. (orgs.). entreAto – o poético e o analítico. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2011, p. 53-58.

 

 

Recebido: 16/02/2012
Aprovado: 27/03/2012