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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.25 Rio de Janeiro nov. 2012

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS

 

Construção e interpretação em construções em análise (1937), de Sigmund Freud

 

Construction and interpretation in Freud's Constructions in Analysis (1937)

 

 

Rosanne Grippi

 

 


RESUMO

Com base no texto freudiano Construções em análise (FREUD, 1934) e em O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, de Jacques Lacan, o presente trabalho pretende demonstrar clinicamente a interdependência dos conceitos de "construção" e "interpretação". Em seu texto, Freud questiona o que os analistas fazem em sua clínica e aponta que uma análise tomada a partir de um saber soberano do analista é, no mínimo, uma impostura clínica. Usar do poder da transferência para persuadir ou mesmo convencer um analisante sobre sua história é o que não se pode esperar de uma análise. Em Construções..., o tema da realidade histórica e da realidade material é explicitado, e podemos verificar, dentre outras coisas, que o delírio e as alucinações não são restritos à psicose. O texto Construções em análise confirma que uma construção não ocorre sem uma interpretação. A diferença reside no fato de que a interpretação se dá a partir de um dado isolado, como um lapso, enquanto que a construção confronta o sujeito com um fragmento de sua história primitiva. Lacan afirma, no O Seminário, livro 1, que Construções... abarca toda a teoria freudiana, o que nos instigou a investigá-lo.

Palavras-chave: Construção, Interpretação, Clínica psicanalítica.


ABSTRACT

Based on Freud's Constructions in Analysis (1934) and The Seminar, Book 1: The technical writings of Freud, by Jacques Lacan, this study aims to demonstrate clinically the interdependence of the concepts of "construction" and interpretation. In his text, Freud questions what analysts do in their clinic and states that an analysis taken from an arrogant knowledge of the analyst is, to say the least, a clinical imposture. Making use of the power of transference to persuade or even convince an analyzed about his/her history is what cannot be expected from an analysis. In Constructions, the historic and material reality themes are made explicit and we can verify, among other things, that the delirium and the hallucinations are not restricted to psychosis. Constructions in analysis confirms that a construction does not occur without an interpretation. The difference resides in the fact that interpretation takes place from an isolated fact, as a lapse, whereas the construction confronts the subject with a fragment of his/her primitive history. Lacan affirms in The Seminar, Book 1 that Constructions… encompasses the entire Freudian theory, which has instigated us to investigate it.

Keywords: Construction, Interpretation, Psychoanalytic clinic.


 

 

A questão "o que os analistas fazem quando fazem análise?" foi colocada por Lacan (1953-54/1983) no início do seu Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, no qual são trabalhados os escritos técnicos de Freud, que vão de 1904 a 1919. Em 1937, no texto Construções em análise, Freud (1937/1975) toma essa questão interrogando sobre a maneira como a psicanálise vinha sendo praticada, e enfatiza o fato de que faltava ao analista interrogar seu próprio saber. No modo como conduziam a direção do tratamento, sublinha Freud, os analistas pareciam estar "sempre com a razão contra o pobre e desamparado infeliz que estamos analisando, não importando como ele reaja ao que lhe apresentamos" (Ibid., p. 291). Como podemos ler, Freud chama a atenção para as práticas equivocadas da clínica psicanalítica.

Construções em análise é tão técnico quanto quase todos os textos freudianos, pois, "em certo sentido", Freud nunca cessou de "falar da técnica" (Seminário, livro 1, op. cit., p. 17). Nele, a visada de Freud, segundo assinala Lacan, é tratar "do modo de ação e de intervenção na transferência", o que não é pouco (Ibid., p. 16).

Uma análise visa à reconstrução da história do sujeito, sendo esta a maneira pela qual um analisante poderá fazer progressos, mas, evidentemente, o analista também deverá estar implicado com seu desejo. Reconquistar as recordações perdidas, permitir suspender o recalque é dirimir os sintomas e as inibições presentes, que são substitutos do que foi esquecido. Freud insiste nesse ponto na extensão de toda a sua obra, comenta Lacan.

Lacan assinala que a "apreensão de um caso singular" (Ibid., p. 21) é o que está em jogo para um analista quando há uma demanda de análise. À parte o manejo de alguns, "O progresso de Freud, sua descoberta, está na maneira de tomar o caso na sua singularidade" (Ibid., p. 21). Para isso, Freud diz textualmente em Construções...: "a relação de transferência, que se estabelece com o analista, é especificamente calculada para favorecer o retorno dessas conexões emocionais. É dessa obra-prima – se assim podemos descrevê-la – que temos de reunir aquilo de que estamos à procura" (Construções em análise, op. cit., p. 292). Sem transferência não há possibilidade de interpretação, o analista não ocupa o lugar de suposto saber para o sujeito, então não acontece uma psicanálise.

Mas não basta, pois para alguns analistas a psicanálise; a reconstrução do caso clínico é entendida como um saber construído pelo analista sobre o passado do sujeito analisante, tendo sido estabelecida, inclusive, a "sessão de devolução" pelas chamadas "psicologias de base psicanalítica". Nelas, há transferência, mas o analista acredita no saber que lhe é suposto.

Podemos nos perguntar: por que, em 1937, Freud se debruça sobre o tema das construções em análise se ele sempre pareceu ter dado mais importância à interpretação? Talvez o tenha feito justamente porque sabia que para fazer uma construção os efeitos de interpretação devem ter ocorrido a priori. Sabemos que não há como "devolver" nada ao paciente sem antes ter escutado os elementos simbólicos trazidos por ele. A partir desses elementos linguísticos, o analista poderá pontuar o texto que lhe é apresentado. Dito de outro modo, construção é o ato de pontuar a história que está sendo lembrada, e não ser deduzida por um saber superior.

Na clínica psicanalítica, não se trata de conhecer exatamente o que se sucedeu em determinado evento da vida do sujeito, mas escutar sobre o ser do sujeito que se realiza no tempo, isso que é verbalizado na sua singularidade por meio da recordação e do relato de suas lembranças. "A realidade do acontecimento é uma coisa, mas não é tudo. Há algo mais: a historicidade do acontecimento", diz Lacan, em 1952, em seu Seminário sobre o Homem dos lobos (Lacan, 1952, s/p.). Segundo Lacan, que retoma essa questão no Seminário 1: "a história não é o passado. A história é o passado na medida em que é historiado no presente – historiado no presente porque foi vivido no passado" (Seminário, livro 1, op. cit., p. 21). O essencial em uma análise é a reconstrução; se trata mais de reescrever a história do que rememorá-la: o passado é o que eu teria sido.

Freud compara o trabalho de reconstrução em análise com o trabalho do arqueólogo, passagem clássica desse texto, em que diz que ambos os trabalhos são idênticos, mas a psicanálise estaria em maior vantagem, "já que aquilo com que está tratando não é algo destruído, mas algo que ainda está vivo" (Construções em análise, op. cit., p. 293). A comparação se dá no sentido de que o analista "extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das associações e do comportamento do sujeito da análise" (Ibid., loc. cit.). Paradoxalmente, o que é vantagem para a psicanálise em seu trabalho de reconstrução da história do sujeito é justamente o que Freud (1937/1975, p. 294) aponta como também sendo a maior dificuldade, pois: "(...) os objetos psíquicos são incomparavelmente mais complicados do que os objetos materiais do escavador, e possuímos um conhecimento insuficiente do que podemos esperar encontrar, uma vez que sua estrutura mais refinada contém tanta coisa que ainda é misteriosa". Uma introdução para o que ele vai retomar – pois já havia tratado do tema desde 1901 e 1922 – sobre a dialética entre a realidade histórica e a realidade material.1

Segundo Lacan, no Seminário 1, nessa passagem Freud acentua e insiste sobre a reconstrução da história do sujeito e coloca em jogo "qual o valor do que é reconstruído?" (Seminário, livro 1, op. cit., p. 22). Freud sublinha que o importante não é aquilo que o sujeito revive, rememora, "o que conta é o que ele disso reconstrói" (Construções em análise, op. cit., p. 294). Freud equivoca, dizendo que o trabalho de reconstrução em análise é apenas um trabalho preliminar, e que são dois, esses trabalhos, "executados lado a lado, o do analisante e o do analista, cada um com sua tarefa específica" (Ibid., p. 295). Ele o descreve: "O analista termina um fragmento da construção e o comunica ao sujeito da análise, de maneira que exerça um efeito sobre ele; constrói então um outro fragmento a partir do novo material que sobre ele se derrama, lida com este da mesma maneira e prossegue, desse modo alternado, até o fim" (Ibid., loc. cit.).

Ao processo descrito acima, Freud vai chamar "interpretação e seus efeitos", mas afirma que "'construção' é de longe a descrição mais apropriada" (Ibid., loc. cit.). O interessante nessa passagem é a retomada que Freud faz sobre o conceito de interpretação em face da construção. Cito-o: "'Interpretação' aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou um ato falho. Trata-se de uma 'construção', porém, quando se impõe perante o sujeito da análise um fragmento de sua história primitiva, que ele havia esquecido" (Ibid., loc. cit.). Desse modo, podemos dizer, a construção é efeito de interpretação.

Em uma das sessões de análise que vem realizando, Anaïs diz o quanto é impossível separar-se do marido com quem está casada há trinta e três anos; ela se queixa de que se sente obrigada a fazer sexo com ele, que não sente nenhuma vontade, mas se ela não ceder, ele pode pensar que ela tem outro. E completa: "Ele não consegue manter a ereção, é uma dificuldade; é chato fazer sexo com ele, nem sequer olha para mim, não me beija na boca...". Algumas sessões depois, Anaïs comenta que marcou uma hora com uma massagista mulher, "jovenzinha", para o marido, pois este estava com o pescoço duro, "parecia um pedaço de pau". A analista pergunta: "O pescoço dele está duro? Nada como uma mulher jovem para dar um jeito, não é mesmo?". Tal interpretação tem efeitos, pois imediatamente Anaïs diz: "Nossa! Isso foi a maior prova de desamor que eu podia dar a ele". E lembra-se do "pescoço engessado, todo duro", devido a um acidente de moto, do vizinho de sua infância, pai de sua amiguinha, o qual fazia brincadeiras sexuais com ela todos os dias. Lembra-se justamente quando deixou de ir à sua casa, "naquele dia eu vi o pau dele, e saí correndo, não sei como!". Do amante, homem que lhe dá atenção, quem ouve o que ela tem a dizer e olha para ela na cama, adora quando ele lhe chama de "minha menina, minha criança". Anaïs diz que sabe que sentia prazer em ser bolinada quando menina pelo pai de sua amiga.

Anaïs conta, em sua primeira entrevista, que havia se consultado com outra analista que disse a ela que seu problema era a "síndrome do ninho vazio" e que por isso não prosseguiu em seu tratamento. Podemos afirmar, com Freud e Lacan, que o analista coloca uma análise em movimento quando oferece um pedaço de sua construção, feita a partir dos elementos trazidos pelo sujeito e verifica, a posteriori, se de fato sua construção funcionou, colhendo os efeitos provocados por ela. Lendo Freud com Lacan, só sabemos da interpretação a partir de seu efeito, pois ela é da ordem de um saber sobre a verdade do sintoma. Freud (1937/1975, p. 295) afirma que, situando o analista no lugar da falta, os analistas não pretendem:

(...) que uma construção individual seja algo mais do que uma conjectura que aguarda exame, confirmação ou rejeição. Não reivindicamos autoridade para ela, não exigimos uma concordância direta do paciente, não discutimos com ele, caso a princípio a negue. Em suma, conduzimo-nos segundo modelo de conhecida figura de uma das farsas de Nestroy – o criado que tem nos lábios uma só resposta para qualquer questão ou objeção: 'Tudo se tornará claro no decorrer dos futuros desenvolvimentos'.

Seguindo a elaboração sobre os efeitos da construção em análise, Freud imprime uma verdadeira discussão sobre a distinção entre a verdade histórica e a verdade material, nos brindando com reflexões sobre a alucinação e o delírio, ficando claro, inclusive, estes não serem exclusivos da estrutura psicótica. A recordação por parte do analisante após uma interpretação bem-sucedida apresenta uma "anormal nitidez" (Ibid., p. 301) de rostos de pessoas, por exemplo, assim como detalhes da decoração dos ambientes, aos quais a construção estava referida e que, obviamente, o analista não tem acesso, podendo ocorrer tanto em sonhos imediatamente após uma construção, "quanto em estados de vigília semelhantes a fantasias" (Ibid., loc. cit.), o que poderia ser descrito como alucinações. Interessante destacar o assombramento da analisante do caso acima citado quando se lembra dos detalhes do vestido que estava usando nas vezes em que ia à casa do homem que lhe fazia carícias quando criança, perguntando a analista: "Estou louca? Como pode alguém se lembrar assim, é como se eu pudesse vê-la ali!"

O interessante nessa passagem, a meu ver, é o destaque que Freud dá à ocorrência de alucinações em pacientes não psicóticos, afirmando ser esse "o mecanismo familiar dos sonhos, o qual, desde tempos imemoriais, a intuição igualou à loucura" (Ibid., p. 302). Freud afirma que "há não apenas método na loucura, como o poeta já percebera, mas também um fragmento de verdade histórica, sendo plausível supor que a crença compulsiva que se liga aos delírios derive sua força exatamente de fontes infantis desse tipo" (Ibid., loc. cit.). No caso de minha paciente, uma neurótica, observou-se que ao rememorar um fragmento de sua verdade histórica, remeteu-a a uma cena traumática vivida em sua infância.

A transposição de material do passado esquecido para o presente, ou para uma expectativa de futuro, é, na verdade, ocorrência habitual nos neuróticos, não menos do que nos psicóticos. Freud (Ibid., p. 303) vai equivaler os delírios às construções em análise, dizendo que "tal como nossa construção, (...) o delírio deve seu poder convincente ao elemento de verdade histórica que ele insere no lugar da realidade rejeitada".

Para concluir, em uma análise o que está em jogo são as recordações e a reescrita da história do sujeito, sempre singular. Desse modo, quando Freud se refere "às nossas construções", alguns analistas o tomaram ao pé da letra, no sentido de que seria o analista quem faz a construção da história do analisante. Entendo, por outro lado, que ao se referir à "nossa construção" é à direção do tratamento que ele parece querer enfatizar como aquilo que um analista deve promover para que uma análise possa ser realizada em sua real singularidade.

 

Referências

FREUD, S. (1937). Construções em análise. In: ______. Moisés e o monoteísmo, esboço de psicanálise e outros trabalhos. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1975. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 23, p. 289-304).         [ Links ]

LACAN, J. (1952). Seminário o Homem dos Lobos. Inédito.         [ Links ]

_________. (1953–54). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Versão brasileira de Betty Milan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1983. 336p.

 

 

Recebido: 17/02/2012
Aprovado: 27/02/2012

 

 

1 Tal assunto já vinha sendo elaborado desde "Psicopatologia da vida cotidiana (1901)" e investigado em "Mecanismos de defesa da neurose (1922)". Mais adiante em sua obra, Freud volta a trabalhar sobre o tema em "Moisés e o monoteísmo (1939 [1934-38])".