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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.25 Rio de Janeiro nov. 2012

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Corte e costura: a interpretação na neurose obsessiva

 

Tailoring and sewing: interpretation in obsessive neurosis

 

 

Roberta Luna da Costa Freire Russo

 

 


RESUMO

O presente trabalho trata da interpretação na neurose obsessiva, desenvolvendo a ideia de que, do lado do analista, o corte, como intervenção, encontra seu contraponto: um sujeito que busca incessantemente a costura como garantia. Isto, porque ele amarra os significantes de modo a deixar de fora o um a mais introduzido na interpretação. Aqui se desdobra a questão norteadora deste trabalho: como se interpreta na neurose obsessiva, uma vez que ela está mais do lado do corte do que do lado da costura? Nessa oposição, a que visa a interpretação na neurose obsessiva? O equívoco e o corte, entre outros, são exemplos de interpretação dados por Lacan. Privilegiei o corte, por operar no nível de S1 e S2, ou seja, por operar nos intervalos da cadeia significante; e o equívoco, por estar do lado da enunciação. E ambos, por serem, em minha experiência clínica com a neurose obsessiva, os operadores que têm provocado maiores efeitos de escansão e deslizamentos no discurso dos analisantes.

Palavras-chave: Interpretação, Neurose obsessiva, Corte, Equívoco.


ABSTRACT

This paper deals with the interpretation in the obsessive neurosis, developing the idea that on the analyst's side, tailoring as intervention, finds its counterpoint: a subject who incessantly seeks the sewing as warranty. This happens because he/she ties up the significant as to leave out the one too much introduced in the interpretation. Here the guiding question of the work unfolds: How is the obsessive neurosis interpreted once it sits closer to the tailoring than to the sewing? In such opposition, what does the interpretation of the obsessive neurosis aim at? Are the misunderstanding and the tailoring, among others, examples of interpretation provided by Lacan? I have privileged the tailoring, as it operates at the level of S1 and S2, that is, as it operates in the intervals of the significant chain; and the misunderstanding, for being on the side of the enunciation. And both, for being, in my clinical experience with obsessive neurosis, the operators which have provoked the biggest effects of scansion and slides in the discourse of the analyzed.

Keywords: Interpretation, Obsessive neurosis, Tailoring, Misunderstanding.


 

 

Inicialmente, preciso dizer que este não é um texto de estilista, embora seja de um estilo que ele trata. Um estilo inaugurado por Freud e formalizado por Lacan, de apelar para o equívoco, servindo-me dos efeitos do significante. É, precisamente, em torno do equívoco que tratarei da interpretação na neurose obsessiva, desenvolvendo a ideia de que, do lado do analista, o corte, como intervenção, encontra seu contraponto: um sujeito que busca incessantemente a costura como garantia.

O equívoco e o corte, entre outros, são exemplos de interpretação dados por Lacan e organizados por Soler (1991) nos Artigos Clínicos. Tanto o equívoco como o corte são designados em função da fala: trata-se de um dizer nada, na medida em que o analista responde com o equívoco, portanto não responde no nível do significado, da nomeação do objeto, para suturar a falta. O dizer nada provoca uma equivocidade no discurso do analisando e provoca também efeitos. Privilegiei o corte, por operar no nível de S1 e S2, ou seja, por operar nos intervalos da cadeia significante e, como diz Lacan (1953, p. 315) "interromper a conclusão para a qual se precipitava o discurso do analisante"; e o equívoco, por estar do lado da enunciação. E privilegiei ambos por serem, em minha experiência clínica com a neurose obsessiva, os operadores que têm provocado maiores efeitos de escansão e deslizamentos no discurso dos analisantes, no segundo caso, quando há inibição associativa.

Estudar a neurose obsessiva pôs-se para mim como um grande desafio, não só teórico, mas também clínico, pois enquanto tentamos nos aproximar do "texto" de um neurótico obsessivo, ele se esconde. Seu texto parece preso no significado, pois o significante tem um grande peso para a neurose obsessiva: texto-dicionário, sem poesia e sem vacilo. Suas palavras são expressas de maneira descritiva, precipitadas em engenhosos detalhes, ou, ao contrário, o obsessivo perde as conexões1 com algo que possa dissipar suas dúvidas ou, ainda, resolver alguma situação, restringindo, assim, seu discurso. Este é inibido, recuado, e é recusado pelo próprio sujeito, cuja censura anima a procrastinação, que lhe é tão peculiar. Eis minhas impressões sobre a clínica com neuróticos obsessivos. Como intervir ali onde ele não se mostra, onde insiste... resiste em permanecer morto, morto para o desejo?

Em sua posição politicamente correta, o obsessivo anda na linha, na borda, equilibrando-se para não cair e esvair-se no esgoto. Em seu funcionamento sacerdotal, ele faz votos de pobreza e de castidade. Sem objeto e sem prazer, ele se situa como aquele que só quer o bem dos outros, e em sacrifício se põe a obedecer, pagando por todos os pecados, o que não o livra do inferno – o inferno da dúvida, do dever e da dádiva.

Em sua persistente e árdua tarefa de estar a serviço do outro, o que o obsessivo busca é o testemunho do Outro, no qual, segundo Lacan (1957-1958, p. 431) "se registra a façanha, onde se inscreve sua história". Sua relação com o Outro consiste, segundo Lacan, em pedir permissão, colocando-se na mais extrema dependência dele para ter acesso ao desejo.

Assim, o obsessivo paga pedágio para ter acesso ao desejo. Ele se dispõe ao sacrifício para ganhar o perdão dos pecados e alcançar o reino dos céus. Mas, para sustentar essa promessa, sua relação com o desejo é de amortecimento, ao tentar aproximar-se dele (LACAN, 1957-1958). Daí decorre toda sorte de proibições e renúncias em nome do prometido, as quais se desdobram naquilo que Freud (1907) assinalou como uma religião particular.

No seminário A Angústia (1962-1963), Lacan fala da fantasia do Todo-Poderoso, esse Deus onipresente no qual o obsessivo

[...] procura e encontra o complemento do que lhe é necessário para se constituir como desejo, a saber, a fantasia ubiquista [...] sobre a qual saltita a multiplicidade de seus desejos, a serem empurrados cada vez mais longe. (p.335)

É nessa investidura que o obsessivo é aprisionado a um texto da ordem do dito, o qual, forjado pela intelectualização do que ele pronuncia, atesta seu caráter defensivo em relação àquilo que o próprio deslizamento significante denuncia: a falta no Outro. É disso que o obsessivo não quer saber, por não saber onde está pisando; afinal, sua pergunta seria: o que o Outro quer de mim? Do contrário, o significante, por si só, apreenderia o objeto, o que ele tenta fazer.

Contudo, é por não querer saber sobre a falta do Outro, e consequentemente sobre seu desejo, que o obsessivo fala para não dizer. Ele não quer deixar furos em seu texto: busca preenchê-lo a qualquer custo, inclusive à custa da própria morte. Ele procura servir-se do significante com toda a cerimônia. Em sua religião particular, o obsessivo não pode pecar: seu texto é impecável. Ele tenta descrever os fatos de modo literal. Comporta-se como a criança que não suporta que se mude uma palavra da historinha, a qual já conhece. Isso o faz, por vezes, um sujeito de poucas palavras, ou de palavras sob medida, e por não querer ficar em falta, ele busca a exatidão como garantia, ali, como diz Lacan (1998, p. 22) "onde o sujeito nada pode captar senão a própria subjetividade que constitui um Outro como absoluto".

Sabemos por Lacan que, ao nos servirmos da língua, há sempre palavras que caem; ou seja, não podemos dizer tudo: há sempre palavras que nos escapam. A propósito disso, na neurose obsessiva, testemunhamos o sujeito funcionar como um pesca-dor, o qual, com sua rede, captura as palavras obliterando o texto, para que não se revelem as falhas no dito, para que não se revele o dizer como um meio-dizer. Não se trata de uma fala desarticulada ao Outro, como na psicose; ao contrário, é para se poupar da emergência do desejo do Outro, tão mortal para o obsessivo, que ele assim se defende. Defende-se numa "certa articulação com o significante", como diz Lacan (1957-1958 p. 483). Nessa articulação, ele preserva o Outro, embora, por meio dela, aspire à destruição do Outro. Lacan deixa clara a diferença que existe entre o obsessivo e o psicótico: "O obsessivo é um homem que vive no significante. Está muito solidamente instalado nele. Não tem absolutamente nada a temer quanto à psicose" (LACAN, 1957-1958, p. 483).

Anulando o desejo do Outro, o obsessivo anula o próprio desejo, abrindo alas ao gozo do Outro. O obsessivo é aquele que identificamos como sendo "do contra". Ele diz não ao Outro, e é por causa dessa contraposição que terá que pagar sua dívida. Ele deve, por não se permitir desejar. O dever constitui-se como imperativo: ele deve fazer isso ou aquilo. Se não o fizer, seu saldo se tornará cada vez maior e sua dívida, mais volumosa. Isso se impõe recheando o pensamento do obsessivo como enunciado, como um dito – "está dito"–, e ele se põe a trabalhar para pagar seu tributo costurando, costurando qualquer rasgo que indique uma falha, um menos-um, uma exclusão.

Aqui se desdobra minha questão: como se interpreta na neurose obsessiva, uma vez que a interpretação está mais do lado do corte e o obsessivo do lado da costura? Nessa oposição, a que visa a interpretação na neurose obsessiva?

Ali, onde se constitui um im/passe, o obsessivo se oferece em transferência a uma interpretação. Seu texto está ali e não está ali: é nesse jogo de esconde-esconde que o analista se põe a escutar. Isto é, além e aquém do dito. Ali, onde ele escapa, derrapa sem o saber, onde ele não paga, como diz um analisante meu: "não quero pagar pra ver. Sempre paguei caro toda vez que quis ver".

Por mais camuflada que possa parecer a fala do obsessivo, é na miséria das vielas do dito dele que o analista encontra o esconderijo em que se aloja o dizer. Em sua posição de semblante de a, o analista serve-se dos significantes falados por seu analisante e aguarda sua indiscrição, em cuja máscara de inde/cisão o analista faz corte, faz uma cisão.

Na análise, o amor vela o desejo, desejo mandado à merda pelo obsessivo em sua fantasia. Lacan (1960-1961), no seminário A Transferência, afirma que, na neurose obsessiva, o que se tem a fazer é restituir a função do desejo. Em outras palavras, esvaziar o gozo. Situado no aquém e no além da demanda, o analista desvela o desejo com sua interpretação ali onde o obsessivo goza de ter que ter para dar. Recusando o encontro com a demanda, o analista, como diz Lacan (Ibid., p. 207), não deve "dar nenhum encorajamento, desculpabilização, até mesmo comentário interpretativo que avance um pouco demais".

O analista, no lugar de semblante de objeto a, comparece como aquele que convoca o analisante a des-fiar os fios do texto deste. Diante da renúncia do obsessivo, de sua oposição, expressa na análise por meio de variações diferentes – negação, fala-dicionário, entre outras –, o analista, com seu meio-dizer, se situa numa equivocidade produzida no dizer nada da interpretação, nada de saber, o que permite fazer aparecer e desaparecer o significante. Portanto, ele está lá e não está, o que é uma subversão da tradução. Isso o que permite dar ao obsessivo o que é do obsessivo, seu desejo, e o convoca a acatar esta proposta indecente: o desejo, por se opor ao Todo-Poderoso, é fonte de todos os pecados. É uma afronta ao pai.

Contudo, o obsessivo resiste e, diante do corte, do equívoco, que rasga o significante em diversas significações, ele se põe a restituí-lo costurando... costurando. É assim que ele trabalha: é um costureiro que não deixa um furo no pano, com o qual se veste sem escolher, anulando o desejo e a si próprio. Isto porque ele amarra os significantes de modo a deixar de fora o um a mais introduzido na interpretação.

Esse um a mais de produção constitui o um a menos de gozo do dito do analisando. Lacan (1972), em O Aturdito, diz que, nos ditos do analisante, há um dizer que ex-siste. Ou seja, enquanto o analisante fala, ele o faz para além de uma intersubjetividade imaginária, mesmo sem sabê-lo. Em outras palavras, falando, dizendo, o sujeito situa-se além e aquém daquilo que o determina, a estrutura da linguagem. Essa é a lógica do neurótico, e por mais que esteja o obsessivo em prontidão para suturar a falta no Outro, ele falha, por sua condição de afetado pelo significante, promoção franqueada pelo analista em sua intervenção. O que busca a interpretação, diz Soler (Artigos clínicos, op. cit.,), é justamente esse sujeito.

A análise do obsessivo é regida por toda a liberdade que o discurso analítico condiciona. Animado pela transferência, o dito, como valor de demanda, inscreve a ação do analista num pleito por ele coordenado, cuja eleição obedece ao voto de não dizer qualquer coisa. Isso nos lembra Lacan (1963-1964, p. 237), no Seminário 11: "a interpretação não está aberta a qualquer sentido". Dessa maneira, mesmo que o obsessivo coloque o analista no lugar de mestre à espera da morte deste, identificado a ele, como morto, o analista em sua falta-a-ser interpreta escutando e equivocando o dito para ter como efeito o dizer do analisante, para que ele se diga para além dos ditos, pois, do contrário, a análise irá para o esgoto.

 

Referências

FREUD, S. (1907). Atos obsessivos e práticas religiosas. Trad. Sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.9,p. 109-117).         [ Links ]

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LACAN, J. (1957-1958) O Seminário - livro 5: As Formações do Inconsciente . Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 532p.         [ Links ]

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______. (1963-1964) O Seminário - livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. 2ª ed. Versão brasileira M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 269p.         [ Links ]

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SOLER, C. Artigos Clínicos. Salvador: Fator, 1991.         [ Links ]

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Recebido: 07/02/2012
Aprovado: 28/03/2012

 

 

1 Freud refere-se a essa característica no obsessivo, no Homem dos Ratos (1909). Obras Completas, v. X, pp.172, 201 e 202.