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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.25 Rio de Janeiro Nov. 2012

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Espaço da interpretação e inconsciente real

 

Interpretation space and unconscious real

 

 

Ângela Mucida

 

 


RESUMO

Foi a insistência do Real incrustado no sintoma que ofereceu a Freud as coordenadas à invenção do dispositivo analítico. É pela existência do Real fora do sentido que Lacan forjou a tese do inconsciente Real, abrindo novas maneiras de se pensar o campo da interpretação. Nessa direção, a partir da referência de Lacan sobre o "espaço do lapso", o artigo discute a hipótese de um espaço da interpretação como forma de contextualizar o estatuto da interpretação e o inconsciente real, tendo como suporte a questão: como operar com a interpretação com um Real fora do sentido?

Palavras-chave: Real, Inconsciente real, Espaço, Lapso, Interpretação.


ABSTRACT

It was the insistence of the Real embedded in symptom that offered Freud the coordinates to the invention of the analytical device. It is through the existence of the Real outside the sense of what Lacan coined the theory of the unconscious Real, creating new forms of thinking about the field of interpretation. In this direction, departing from Lacan's reference to «the space of the lapse», the article discusses the hypothesis of a space of interpretation as a way to contextualize the statute of the interpretation and the unconscious real, founded on the question – how to deal with the interpretation with a Real out of the sense?

Keywords: Real, Real unconscious, Space, Lapse, Interpretation.


 

 

Introdução

Qual é a atualidade da interpretação e em que sentido seu debate pode avançar em formalizações sobre a direção da cura? A primeira resposta, mais imediata e óbvia, é que não existe análise sem interpretação e que, portanto, há que interrogar e atualizar este conceito oferecendo-lhe nova força operacional.

Mas podemos supor outro motivo: as indicações de Lacan advindas do final de seu ensino, concernentes ao inconsciente real e sinthoma, com efeitos sobre as maneiras de se conceber os finais de análise e o passe, só puderam ter efeitos de transmissão no a posteriori da própria clínica, ou seja, na medida em que as análises avançaram e uma experiência significativa com o dispositivo do passe pudesse ser recolhida. É a insistência do Real que permitiu a invenção do dispositivo analítico e obriga os analistas a revisitarem sua prática e os conceitos com os quais operam.

Freud sustentou sua clínica e com ela forjou seus conceitos a partir do Real incrustado no sintoma, que se interpunha aos propósitos da hipnose de erradicá-lo. Mesmo que o Real não tenha os mesmos desdobramentos em Freud e Lacan, tomado como impossível e limite ao sentido, ele une a clínica freudiana e lacaniana aos dias atuais por meio de uma questão central: como operar com a interpretação tendo em vista o Real fora do sentido?

A partir dessa questão extrairemos algumas lições da prática freudiana da interpretação e o tratamento ao real, para retomar com Lacan o que nomeamos o espaço da interpretação e sua relação com o Real fora do sentido.

 

O real na interpretação freudiana

Apesar de Freud não ter articulado o conceito de Real, ele encontra-se em sua obra em diferentes momentos e com diferentes nomes, como limite e impossível de ser traduzido. Nessa direção podemos cunhar diferentes nomes que indicam seu encontro com esse conceito: barra ao sentido (1896/1977, p. 317-324), ponto nodal, núcleo patogênico, umbigo do sonho, ponto de fixação, fixação libidinal, resistência terapêutica negativa e rochedo da castração são alguns dos termos que definem na prática freudiana o real como impossível. Foi a partir disso que não se modifica e resiste que Freud fora obrigado a rever sua prática em cada momento, inventando maneiras de operar com o tratamento do mal-estar subjacente aos sintomas. O Real incrustado no sintoma ofereceu-lhe as coordenadas à invenção do dispositivo analítico. Ao tentar extrair o sintoma, Freud se deparou com algo resistente levando-o a abandonar a hipnose e a inventar estratégias de condução do tratamento com um uso inédito da interpretação dos sonhos. Aprende-se com ele que a interpretação, aliando-se ao inconsciente e ao sintoma, implica sempre o discurso do sujeito e, portanto, não opera sem considerar a noção de Real em jogo também na transferência.

É frequente igualar a interpretação freudiana à busca do sentido. Mesmo que isto toque a verdade, essa relação não nos parece tão simples, já que o próprio Freud alertou em diferentes momentos de sua obra para os riscos de intervenções que ofereçam sentido aos sonhos e aos sintomas. Já nos primórdios de sua clínica ao destacar a confluência de vários sintomas em um mesmo núcleo patogênico, Freud acentua:

Se tivermos que iniciar uma análise desse tipo, na qual temos razão em esperar uma organização de material patogênico como esse, seremos ajudados pelo que a experiência nos ensinou, ou seja, que é inteiramente irrealizável penetrar direto no núcleo da organização patogênica. Mesmos que nós próprios pudéssemos adivinhá-lo, o paciente não saberia o que fazer com a explicação oferecida a ele e ele não seria psicologicamente modificado por ela (1893-95/1974, p. 348-349).

Ao longo de sua experiência clínica ele não cessa de indicar inúmeras vezes os limites da interpretação e seus efeitos sobre a resistência ao tratamento e o acirramento do sintoma. Por exemplo, sua obra princeps sobre a interpretação, A interpretação dos sonhos (1900-1901/1972), nos dois volumes que a compõem encontramos inúmeros indicativos sobre sua maneira inédita de operar com a interpretação. A primeira lição foi de apreender o sonho como um texto que só toma sentido a partir das associações do sonhador. Nessa direção o inconsciente iguala-se à interpretação, e a função do analista é, a partir da associação livre, abrir novos sentidos, mas com o cuidado de não exceder na valorização e interpretação dos sonhos.

Em O manejo de sonhos na Psicanálise (FREUD, 1911/1969, p. 119-127) lemos que quando o analista se dedica demais à interpretação dos sonhos, o analisante traz cada vez mais sonhos enigmáticos, ofertando-os a ele à espera de mais sentido, o que leva à resistência e ao fechamento do inconsciente. Tentar esgotar rapidamente a análise de um sonho ou do sintoma, oferecendo-lhes sentido, é fechar o espaço à intervenção do analista. Dessa forma, se uma análise não se faz sem a interpretação, esta pode funcionar contra a própria análise. Freud nos deixa a lição de que os sonhos se constituem em sua própria interpretação. Dessa forma, ele se interessou muito mais do que verificar o conteúdo latente ou manifesto do sonho, escutar o funcionamento do inconsciente a partir do campo da linguagem.

Os sonhos, como produção do inconsciente, da mesma forma que os sintomas, contêm um núcleo resistente à interpretação. Essa fixidez, nomeada nos sintomas, de núcleo patogênico; e nos sonhos, de "umbigo do sonho", demonstra que nem tudo pode ser interpretado. Freud percebe que havia uma interpretação primeira oferecida pelo próprio inconsciente. Nessa direção, no caso Schreber é acentuado que:

Mesmo nos estádios posteriores da análise, tem-se de ter cuidado em não fornecer ao paciente a solução de um sintoma ou a tradução de um desejo até que ele esteja tão próximo delas que só tenha de dar mais um passo para conseguir a explicação por si próprio (FREUD, 1911/1969).

De modo similar ao que ele afirmara sobre os sintomas,1 ele acentua que a análise de um único sonho, levada ao seu limite, equivale à análise inteira. Aprende-se com ele que a via régia de acesso aos sonhos e as trilhas que formam os sintomas não são totalmente transitáveis pela interpretação. Seguindo esse ponto resistente à interpretação, ele acentua o valor clínico da resistência terapêutica negativa e aquilo que opera contra a interpretação e a cura; a força da repetição aliada ao recalque originário e a força da satisfação obtida pelo sintoma.

Na Conferência XVIII (1916-17/1976), ao associar a neurose a uma espécie de ignorância, e acentuando que não se trata de qualquer ignorância que possa ser suplantada pelo saber ou o conhecimento, Freud nos abre outra via ao estatuto da interpretação na direção do tratamento; algo no sujeito já sabe, mas não quer saber. Com efeito, esse não saber não pode ser tratado por uma interpretação que vise ao sentido, pois:

Saber nem sempre é a mesma coisa que saber: existem diferentes formas de saber, que estão longe de serem psicologicamente equivalentes. (...) Se o médico transferir seu conhecimento para o paciente, na forma de informação, não se produz nada. (...) o conhecimento deve basear-se numa modificação interna do paciente ( p. 332).

Tudo isso demonstra que, não apenas ele estivera atento aos usos da interpretação e seus limites, mas soubera indicar por meio da resistência terapêutica negativa, por exemplo, o real resistente à interpretação e ao sentido, interrogando o que resta ao analista quando o sintoma leva a melhor. Perseguindo essa via ele descobre que o sintoma constituía uma solução que o sujeito não queria, ou não podia se livrar facilmente e que, portanto, qualquer interpretação que incidisse diretamente nesse laço sintomático só levaria a análise ao pior.

 

O espaço do lapso

Partindo-se da frase de Lacan que se tornou um paradigma para se pensar a tese de inconsciente real: "Quando o espaço de um lapso não comporta mais nenhum sentido (ou interpretação), somente aí se pode estar seguro de estar no inconsciente" (LACAN, 1976/2001, p. 571), propomos discutir essa indicação com o que nomeamos espaço da interpretação. Antes de nos atermos a essa hipótese de leitura, torna-se necessário destacar alguns dos possíveis desdobramentos da noção do "espaço de um lapso".

Se o inconsciente apresenta-se apenas quando "o espaço de um lapso não encontra mais nenhum sentido (ou interpretação)", conclui-se de imediato um corte entre interpretação e inconsciente real; este está onde a interpretação não pode chegar; são avessos, já que o real aí em causa, fora do sentido, constitui-se corte à função interpretativa, pondo termo à satisfação atrelada à verdade. Mas, se o inconsciente real não é algo que surja apenas no fim de uma análise, mas faz irrupções em todo seu curso, isto impõe ao analista saber operar com essa barra ao sentido, bem como saber conduzir a análise a esses pontos fora do sentido. Por conseguinte, faz-se necessário entender melhor essa junção entre espaço e lapso.

Encontramos no ensino de Lacan diferentes usos desse conceito, sejam no sentido usual, físico, filosófico ou acoplado a diversos conceitos dentro da psicanálise, impedindo uma leitura unívoca do mesmo. Não procederemos a uma pesquisa exaustiva desse conceito, mas destacaremos apenas alguns indicativos, tomados em períodos diferentes, que possam nos auxiliar a análise da frase de Lacan supracitada.

No Seminário 1 (1953-1954/1986, p. 168-186), por exemplo, Lacan faz uso de diferentes noções de espaço, aliadas aos conceitos de real, imaginário e simbólico, bem como ligadas à noção de vazio, virtual e de história. Chama-nos à atenção a relação entre espaço e as categorias de real, imaginário e simbólico, já que estas se constituem os pilares que sustentam a realidade psíquica e tomam em seu ensino o caráter de Real; o nó como Real. Nesse sentido, é importante salientar que essas categorias percorrem o ensino de Lacan desde muito cedo, apresentando-se em vários seminários em meados dos anos 1950. Mesmo que nesse momento ele não tenha articulado a ideia de nó borromeano enlaçando-as, já é afirmado nessa época uma "interseção" necessária – termos utilizados por ele –, entre o real, imaginário e simbólico.2

Em As formações do inconsciente (LACAN, 1957-1958/1999), a noção de espaço conjuga-se à de campo da linguagem; o inconsciente estruturado como linguagem é definido também como espaço do insconsciente. Outro termo que surge nesse momento é o de "espaço psicológico" que se desdobra em espaço da metáfora e da metonímia (Ibid., p. 153), além da noção de espaço topológico. Alguns anos depois, no Seminário 11 (1964/1993), Lacan retoma a noção de espaço para nomear a outra cena do inconsciente, enquanto fenda, corte, algo de não realizado. Observa-se uma concepção de espaço atravessada também pelo Real.

Nessa direção, em Mais ainda (1972-1973/1982), temos o "espaço do gozo" – definido por ele como o campo lacaniano –, constituído por três dimensões (dit-mansions) determinadas pelo enodamento entre real, imaginário e simbólico. A ideia de um espaço constituído de três dimensões repete-se em todos os seminários subsequentes nos quais Lacan faz uso desse conceito. Em Les non-dupes errent (1973-1974), lição de 13 novembro, por exemplo, ao retomar essa ideia ele acrescenta que esse espaço habitado por seres falantes implica que as três categorias real, imaginário e simbólico estejam estritamente semelhantes. Lemos que "semelhantes" não implica ser iguais, mas como é definido posteriormente em R.S.I. (1974), uma dessas dimensões contém o buraco do simbólico, a consistência do imaginário, e é atravessada, podemos pensar, pelo espaço da ex-sistência.3 O espaço enquanto sensível, ao mínimo de três dimensões, é novamente discutido em R.S.I. (Lição 10, de dezembro).

Vale destacar, por fim, a referência ao seminário O sinthoma (1975-1976/2005), da mesma época do Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 (1976). Nesse momento, ao discutir a questão do verdadeiro e do real, e afirmando que este se encontra nos "emaranhados do verdadeiro" levando-o à ideia de nó, Lacan acentua que: "Não há nenhum espaço real. Trata-se de uma construção puramente verbal soletrada em três dimensões (...)" (p. 83).

Sobre a coabitação, vamos dizer assim, entre espaço e lapso, nos valemos mais uma vez de uma indicação de Mais ainda (op. cit.):

É a título de lapso que aquilo que significa alguma coisa, quer dizer, que aquilo pode ser lido de uma infinidade de maneiras diferentes. Mas é precisamente por isso que aquilo se lê mal, ou que se lê través, ou que não se lê (p. 51-52).

Dessa rápida retomada podemos extrair algumas consequências. Primeiro, a noção de espaço em três dimensões implica pensar não apenas o campo do sentido dado pelo par significante S1-S2, mas também os efeitos de consistência e o atravessamento do real sobre o espaço da interpretação. Por outro lado, o espaço do lapso comporta, no dizer de Lacan, uma infinidade de leituras diferentes que têm como efeito uma má leitura. Mas, lemos que não é o conceito de espaço em si que se atrela ao campo interminável do sentido e da historicidade, já que este contém as três dimensões e é atravessado pelo corte do Real, mas é a própria estrutura do lapso que demanda mais e mais sentido.

A escolha de Lacan, do paradigma do lapso, e não de outra formação do inconsciente, como os sonhos, e sobretudo do sintoma tomado no singular, ocorre porque neste, ao contrário de outras formações do inconsciente, persiste algo duradouro, primário ou fixado, efeito do recalque originário, que impõe limites precisos à interpretação. Os lapsos, ao contrário, são abertos ao sentido e a infinitas leituras, se prestando melhor, a nosso ver, para sinalizar o inconsciente verdade e colocar em causa isso que é da ordem do inconsciente real; o limite à interpretação e à cadeia de sentido.

Desse modo, enquanto o espaço do lapso é o espaço onde se veicula a abertura do inconsciente, necessária a uma análise, o inconsciente real apresenta-se nos pontos de fechamento do inconsciente. O espaço da interpretação deve trabalhar abrindo o inconsciente para levar o analisante aos pontos nos quais nenhuma interpretação seja possível. E mais, se a interpretação só é interpretação pelos efeitos que ela produz, podemos supor que ela só opera ao considerar as três dimensões imbricadas no espaço.

Supor que só se entra no inconsciente quando o espaço de um lapso "não comporta mais nenhum sentido (ou interpretação)" (1976, op. cit. p. 567) é afirmar ainda o tempo necessário de uma análise que vai dos infinitos sentidos ao fora do sentido. Isto só ocorre porque a interpretação, enquanto espaço, acentuamos novamente, opera pelas três dimensões. Na realidade, podemos ler com Lacan que o analista trabalha com as formações do inconsciente para chegar ao inconsciente e que não há outra maneira de operar com o Real.

Mas, "estar seguro de estar no inconsciente" não implica que ali seja o fim de uma análise, pois, além de muitas idas e vindas passando pelo inconsciente real, faz-se necessário que o ser falante possa extrair desse percurso um saber lidar com o Real fora de qualquer sentido e que isto tenha efeitos sobre o espaço de seu gozo e a satisfação obtida com seu sintoma.

Resta-nos pensar ainda como valer-se do espaço da interpretação para levar uma análise ao inconsciente real e a uma análise finita. Ensaiemos pequenos indicativos a essa questão tão complexa.

 

Espaço da interpretação e inconsciente real

Primeiro, vale acentuar que a tese do inconsciente real tem desdobramentos sobre o conceito de real, simbólico e imaginário bem como incide sobre todos os conceitos fundamentais com os quais operamos. No que tange à nossa reflexão, tomemos inicialmente a questão do sentido e do fora do sentido.

Pode-se ler com Lacan a existência de um simbólico aliado à representação, ao sentido ou à verdade no qual um significante chama por outro, como é disposto no discurso do mestre: S1à S2. Ou seja, são Uns que entram na cadeia significante demandando outros significantes. Todavia, temos outra indicação em Mais ainda que define a interpretação como o saber no lugar da verdade, tal como se lê no discurso do analista:

 

 

De que S2 (cadeia de saber): pode-se indagar sobre qual saber (S2) se trata nesse discurso, já que ele se encontra sob a barra do recalque e sem acesso ao sujeito? Para entender essa definição de interpretação, devemos cotejá-la com a tese desenvolvida nesse mesmo seminário, que nos leva a pensar a existência também de uma noção de simbólico acossada ao real da alíngua.4 Trata-se, nesse caso, da existência de S1s que não se associam a nada. Os Uns da alíngua – língua original, arcaica ou fundamental – são fora do sentido, em estado bruto, que não formam cadeia e são arredios ao campo da verdade e da historicidade.

Se do discurso do mestre pode-se extrair a concepção de um sujeito como efeito dos significantes, efeito dos discursos, representado por pelo menos dois significantes, S1 e S2, temos a partir das teses desenvolvidas no seminário supracitado, a concepção também de um ser que fala e que se encontra fora da representação e os dois não se anulam.

Nesse sentido, Soler (2009), tomando a estrutura do discurso do mestre, dispõe de maneira interessante essas duas maneiras dos S1s se apresentarem.

 

 

Verifica-se, pois, que o saber no lugar da verdade implica nesse momento um saber sem sujeito, diferentemente do S2 decifrável dispostos no discurso do mestre. "De onde a alíngua aparece como a grande reserva de onde a decifração extrai apenas alguns fragmentos" (SOLER, 2009, p. 24).

Isto exibe de maneira clara porque a interpretação encontra seus limites na alíngua ou no que Lacan denomina de inconsciente real. Entretanto, é pela existência da alíngua que alguns fragmentos são extraídos de uma análise e o ser falante pode se nomear identificando-se ao seu sinthoma.5 Isso esclarece porque o passe foi a solução lacaniana para demonstrar que o produto de uma análise é um saber sem sujeito e se trata sempre de uma transmissão não integral.

A noção de fora do sentido incide também sobre diferentes versões de Real. Este pode ser analisado como interno ao simbólico da linguagem na medida em que esta se liga a "alguma coisa que no real faz furo" (LACAN, 1975-1976/2005, op. cit., p. 3). Intrínseco à linguagem, esse real "(...) faz acordo" (Ibid., p. 40), podemos dizer faz nó ou é o próprio nó. Mas a noção de Real fora do sentido foraclui, termo de Lacan, a copulação entre o simbólico e o imaginário (campo do sentido), assim o "real é" (Ibid. p. 117). Esse real não se liga a nada, "(...) é sem Lei" (Ibid. p. 133) ou seja, ele é aquilo que "(...) parasita o gozo" (Ibid. p. 71) e apresenta-se sob forma de afetos enigmáticos.6

O Real fora do sentido, como sinaliza Badiou (2010), distingue-se do não sentido. Pressupor um não sentido implica colocar ainda em cena um sentido, enquanto o fora do sentido implica a inexistência de sentido que toca a inexistência da relação sexual, quer seja, o fora do sentido, ab-sens, traduzido por Lacan como ab-sexe.

Lembramos que depois de 1973 o sentido é abordado por ele como um nó que inclui o sentido, o não-sentido e o efeito de sentido. Há um saber como efeito de sentido e permite ser decifrado. O não-sentido é o que permite o equívoco e não apenas o que se contrapõe ao sentido, mas isso se difere ainda do fora do sentido. Tudo isto toca o espaço da interpretação.

Nessa lógica do sentido e do fora do sentido Lacan distingue diversas modalidades de interpretação: pontuação, semidizer, enigma, corte, apofântica dentre outras. Todas elas tocam, de alguma forma, o espaço da interpretação, mesmo que não exatamente o Real fora de sentido.

A propósito, ao discutir a questão de como seria uma sessão ajustada ao inconsciente real, Soler (2009) nos traz algumas reflexões a uma prática que pretenda ser sem (barvadage) verborreia; para além do blá-blá-blá. Ela acentua que a questão não é em si a durabilidade da sessão analítica ou mesmo se ela é curta ou variável, mas o seu fim. Com efeito, há interpretações conclusivas sinalizando um ponto de amarração da sessão bem como aquelas que questionam relançando o sentido, mas há também fins suspensivos que não concluem e nem questionam, mas cortam a cadeia associativa (SOLER, 2009, p.87-88). Enquanto as duas primeiras fazem parte da historicidade necessária de uma análise, somente as duas últimas tocam o Real e podem ser pensadas com Lacan como apofânticas no sentido do oráculo: "(...) não revela nem esconde, mas faz signo" (Ibid. p. 88).

Se o analista trabalha na tentativa de atingir o dizer, ou seja, isto que surge por detrás do dito ou da cadeia significante para chegar ao inconsciente real, isto implica a passagem pelo sentido e a historicidade, mas nessa passagem há irrupções do real fora do sentido e que pode levar, inclusive, o analisante a saídas da análise por tudo que isso monopoliza de horror ao saber ou horror ao que Freud nomeou como resistência terapêutica negativa.

Para finalizar e tendo em mira a questão de como trabalhar com o inconsciente real ou com afetos enigmáticos, arredios à interpretação, com uma prática que pressupõe também o sentido e a interpretação, nos valemos de uma indicação de Lacan ao distinguir orientação e sentido. O sentido inclui um real que copula com o simbólico e o imaginário, mas a orientação é outra coisa, ela é da ordem do real fora do sentido. Todavia, se a orientação de uma análise é o fora do sentido, ela não se processa sem o sentido, mas este é furado pelo real.

Nesse mesmo seminário, O sinthoma, a psicanálise é definida como "(...) um curto-circuito passando pelo sentido" (op. cit., p. 118), curto-circuito que passa, pois, pela linguagem. É interessante esse termo, pois o curto-circuito implica a passagem de corrente elétrica acima do normal e que, geralmente, causa alguns danos nos elementos envolvidos. O curto-circuito não deixa o sistema impune, e isto tange de perto o que sinalizamos sobre o espaço da interpretação ao cingir sentidos e consistências, ele abre também inúmeras dissonâncias que permitem à análise chegar a pedaços do Real.

Lacan acentua que os joycianos se ocupam dos enigmas, tentando decifrá-los. Sabemos que a obra de Joyce colocou enigmas, porque foi escrita como alíngua. Mas os analistas, diferentemente dos joycianos, não podem se ater à decifração dos enigmas, o que levaria a análises infinitas ou ao espaço infinito do lapso.

Com efeito, "Encontrar um sentido implica saber qual é o nó, e emendá-lo bem graças a um artifício" (Ibid. p. 71). O que supõe saber suportar o real fora do sentido. Contudo, Lacan nos alerta que "(...) corremos o risco de tartamudear, se não soubermos onde a corda termina, ou seja, no nó da não-relação sexual" (Ibid., p. 70), ou seja, no real fora do sentido.

A análise tem de suportar o espaço dos lapsos onde a historicização abre alguns sentidos para levar o sujeito aos efeitos da alíngua, ao real fora do sentido, promovendo, como proferiu Lacan em 1977, um "saber e fazer" algo com o real que parasita o gozo, com efeitos sobre a satisfação. Ou, de outra maneira, trata-se de ajudar o ser falante a se desembaraçar no mundo que "não é definitivamente um mundo de representação, mas um mundo de escroqueria" (LACAN, 26/02/1977).

 

Referências

BADIOU, A.; CASSIN, B. Il n'ya pas de rapport sexuel. Deux leçons sur L'Étourdit de Lacan. Paris, Fayard, 2010. 135p.         [ Links ]

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_________. (1916-1917). Conferência XVIII. Fixação em traumas. Tradução sob a direção de Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud, v. 16, p.323-333.         [ Links ] )

LACAN, J. (1953-1954). O seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud. Versão brasileira de Betty Milan. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. 336p.         [ Links ]

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_________. (1975-1976). O Seminário. Livro 23. O Sinthoma. Tradução Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 252p.         [ Links ]

_________. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 571-573        [ Links ]

_________. Lacan parle à Bruxelles, 26/02/1977. Transcrito por J. Cornet, Inédito.         [ Links ] SOLER, C. Lacan- L'inconscient réinventé. Paris, Puf, 2009. 244p        [ Links ]

 

 

Recebido: 16/02/2012
Aprovado: 27/03/2012

 

 

1 "(...) fazer um relato da resolução de um único sintoma equivaleria, de fato, à tarefa de relatar um caso clínico inteiro (FREUD, Etiologia da histeria [1896 a], 1976, p. 223).
2 A propósito, remetemos o leitor a Lacan, "Resposta a Jean Hyppolite sobre a Verneigung de Freud". In: Escritos, 1998, p. 385.
3 De forma simplificada, a ex-sistência, implica isto que gira ao redor da consistência fazendo intervalo, ou seja, delimita algo sem ordem e impossível de ser dito.
4 Conforme Lacan, "Alíngua serve para coisas inteiramente diferentes da comunicação. É o que a experiência do inconsciente mostrou, no que ele é feito de alíngua, essa alíngua que vocês sabem que eu escrevo numa só palavra, para designar (...) alíngua dita materna(...)" ( Mais ainda, op. cit., p. 188).
5 Esse conceito tem diversas leituras ao longo do seminário O sinthoma (1975-1976), mas em termos gerais ele implica o quarto nó que enoda R.S.I., possibilitando que eles fiquem juntos, enodados. Ele se define, sobretudo, por seu caráter de singularidade e foi isso que interessou a Lacan a escrita singular de Joyce.
6 A propósito, remetemos o leitor a Lacan. O seminário. Livro 20. Mais ainda (op. cit., p.188-197).