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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.25 Rio de Janeiro nov. 2012

 

RESENHAS

 

Apresentação da coletânea A Lógica da Interpretação.

 

Presentation of the campo psicanalítico's collection: The logic of interpretation

 

 

Andréa Hortélio Fernandes

 

A Lógica da Interpretação, tema escolhido pelo Campo Psicanalítico de Salvador e de Ilhéus e Itabuna para seus estudos e pesquisas durante o ano de 2011, foi também o tema do XII Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL – Brasil) e da XI Jornada do Campo Psicanalítico – Fórum Salvador realizadas em Salvador, de 4 a 6 de novembro de 2011.

A presente coletânea traz, também, os trabalhos apresentados por membros e convidados do Campo Psicanalítico durante o Seminário do Campo Psicanalítico, que ocorreu durante os dois semestres de 2011. E, ainda, alguns trabalhos apresentados na Jornada de Cartéis pelos membros do Campo Psicanalítico Salvador, Ilhéus e Itabuna e de convidados durante o evento nacional sediado pelo Campo Psicanalítico/ Fórum Salvador.

O tema A Lógica da Interpretação despertou a discussão e o interesse de muitos, sendo que o XII Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL – Brasil)/XI Jornada do Campo Psicanalítico – Fórum Salvador teve a exposição de 87 trabalhos. A Jornada de Cartéis fez-se também presente no Encontro Nacional com 19 trabalhos apresentados. Em uma articulação com esta publicação, serão lançados, por meio digital, os anais, com todos os trabalhos apresentados no Encontro Nacional.

Optamos por fazer a abertura da apresentação desta coletânea referenciando a imagem da capa, intitulada Homenagem à cultura popular, tela gentilmente cedida pelo artista plástico baiano Leonel Mattos. A tela traz em si o equívoco tomado como princípio lógico da interpretação na psicanálise que, ao visar o objeto causa de desejo, pode atingir o real próprio à sonoridade da alíngua falada em análise e que se faz presente, também, em alguns poemas.

Assim, o poema Ode Marítima de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, foi escolhido na tentativa de enodar a sereia da imagem da tela (imaginário), com o dispositivo da interpretação na análise, evocada no poema pelo silêncio, pela "sereia chorando, chamando", com o que continua, em outra estrofe, "meu passado ressurge como se esse grito marítimo, fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção", que podem servir para ilustrar o tratamento do real pelo simbólico (real/simbólico). Lacan, no Seminário R.S.I., nos diz que seria essencial que a análise levasse o analisando a atar-se de outra forma. Para tanto, a interpretação, cuja estrutura é o saber no lugar da verdade, poderia vir a tratar do que resta de real no sintoma que traz o sujeito para análise

Um recorte do poema Ode Marítima nos mostra uma forma poética de enlaçar o real, o simbólico e o imaginário. Álvaro de Campos nos transmite algo nessa direção nas cinco últimas linhas do poema. Deixamos a cada leitor a tarefa de fazer a leitura do dito poema conforme a interpretação que lhe for passível, já que a interpretação é sempre singular.

Ode Marítima1
Fazei de mim qualquer coisa como se eu fosse
Arrastado – ó prazer, ó beijada dor!
Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós...
Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar isto no MA-A-A-AR!
Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! EH-EH-EH-EH-EH-EH-!
No MA-A-AR! Tudo canta a gritar!
[...]
Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.
Senti demais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim.
Decresce sensivelmente a velocidade do volante.
Tiraram-me aos poucos as mãos dos olhos os meus sonhos.
Dentro de mim a um só vácuo, um deserto, um mar noturno.
E logo que sinto que há um mar noturno dentro de mim,
Sobe dos longes dele, nasce do seu silêncio,
Outra vez, outra vez o vasto grito antiqüíssimo.
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho, mas ternura,
Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
Úmido e sombrio marulho humano noturno,
Voz de sereia longínqua chorando, chamando.
Vem do fundo do Longe, do fundo Mar, da alma dos Abismos
E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos
Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó---yy...
Schonner Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó---yy...
Ah, o orvalho sobre minha excitação!
Oh frescor noturno no meu oceano interior!
Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar
Cheia de enorme mistério humaníssimo das ondas noturnas.
A lua sobe no horizonte
E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim.
O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção
Que fosse chamar o meu passado
Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.

Desse poema, gostaríamos de dizer que, tal qual o canto das sereias, a interpretação na psicanálise aponta para o equívoco próprio ao dizer vão, dire vain, em francês, da análise, ou seja, a associação livre. Tal qual o ato analítico, a interpretação não é programável; trata-se, aí, de um savoir-y-être sustentado por savoir-y-faire. Analista e analisando são, portanto, convocados a saber fazer com alíngua onde começa tudo que diz respeito ao falasser, ou ao ser falante.

A conferência O Unívoco da Interpretação do psicanalista francês Marc Strauss abre esta coletânea. Trata-se da versão resumida das conferências proferidas por ele durante o Encontro Nacional. A começar pelo título, que é feito para provocar equívoco, o texto trata, de fato, do equívoco próprio da interpretação dita dos psicanalistas lacanianos. Marc Strauss desenvolve, ao longo do artigo, que a interpretação é certamente equívoca no nível das significações, mas seu sentido é unívoco e busca examinar se este sentido mudou no ensino de Lacan.

A primeira seção de artigos traz três textos dedicados ao tema A interpretação na psicanálise: precisão de conceitos. Sonia Magalhães, com o texto Psicanálise e Interpretação, retoma Freud, desde o momento em que este supunha ser a psicanálise uma arte de interpretação e avança com Lacan no que a interpretação interroga a relação do homem, do falasser, com a linguagem. Então, recorre a Júlia Kristeva e a Michel Foucault para precisar a atualidade do que fora dito sobre a interpretação por Freud e Lacan. Em A Interpretação: além do conceito psicanalítico, Carlos Pinto argumenta que o conceito de interpretação mostra que, debaixo de uma aparente universalização, existem lacunas e armadilhas que merecem revisão do conceito de interpretação na psicanálise. Com o texto intitulado Psicanálise: Interpretação?, Andréa H. Fernandes indaga-se sobre a máxima comumente proposta pelo senso comum de que Freud explica e atrela isso à tentativa de se transmitir a psicanálise, passando um tom tranquilizador do inconsciente, contrário aos fundamentos do inconsciente propostos por Freud desde "A Interpretação dos Sonhos". Do livro dos sonhos, a autora extrai os indícios de que a interpretação do analista na psicanálise deve ser apofântica, como propôs Lacan, pois na linguagem, tomada como condição do inconsciente, existe alguma coisa que não se esgota ao admitirmos que uma proposição seja verdadeira ou falsa.

A segunda seção A Interpretação em Freud traz três trabalhos. Em A arte interpretativa na psicanálise, Juliana Cunha retoma "A interpretação dos Sonhos" de Freud e declara que a questão da interpretação em psicanálise reabre todo o campo sobre o funcionamento do inconsciente, tendo a pulsão de morte um papel fundamental nisso, e também revela como o psicanalista pode operar numa psicanálise. Já Cristiane Oliveira, em Inscrição, Memória e Interpretação: a escrita psíquica em Freud, por meio do negativo da proposição de uma aporia entre inscrição-memória-interpretação, que seria apagamento-esquecimento-silêncio, problematiza em torno da ideia de uma escrita psíquica em Freud e seus desdobramentos na experiência psicanalítica, apontando para uma precariedade do simbólico na solução dos impasses subjetivos. Para Elaine Starosta Foguel, no artigo O sonho da interpretação: Ausflösung/Lösung, a interpretação não hermenêutica da psicanálise, desde 1900, se funda a partir do desenho do primeiro aparelho psíquico no Capítulo VII de "A Interpretação dos Sonhos" e ressalta que uma esfera importante da tradição científica é mantida por Freud, podendo ser descrita pelo par quase homofônico Auflösung/Lösung, no qual a decomposição seria a solução.

A seção seguinte – O dizer e a Interpretação – traz outros cinco textos. No primeiro deles, Desconstruções em psicanálise – Lógica e Topologia da Interpretação, Helson Ramos propõe que a tarefa do analista é mais de desconstrução do já construído que de produzir construções ou reconstruções, porque esta última é tarefa do analisando. E afirma que a lógica da interpretação é sua topologia tomada como uma lógica de lugares onde há uma forma lógica da prática do dizer. Angélia Teixeira, com o texto O dizer da interpretação, retoma a interpretação em Freud, que parecia ter um lugar secundário em relação à transferência, e mostra que os avanços na teoria de Freud e Lacan revelaram a importância deste conceito, uma vez que o dizer da interpretação presentifica o desejo do analista, pois o desejo do analista é sua interpretação. Para a autora, o desejo do analista é a fronteira que une e separa transferência e interpretação. Com No impossível de dizer, Jairo Gerbase, partindo de Lacan, que teria situado a sua prática no impossível de dizer, propõe que o analisando fala e o analista diz, onde dizer é corte. Jairo declara que o analisando, ao falar em análise, diz mais do que quer dizer, e o analista, ao ler esse mais, corta, e isso pode levar a uma nova forma de se atar nos nós borromeanos. José Antônio Pereira da Silva, com o texto Interpretação, Pontuação e Citação, faz um recorte do conceito de interpretação em Freud a partir do seu texto "Construções em Análise" (1937) e em Lacan no Seminário o Avesso da Psicanálise (1969/1970). Na visão de José Antônio, tendo Lacan situado a interpretação "entre enigma e citação", e também como pontuação, pretende esclarecer o tipo de enunciado que poderia responder pela estrutura da interpretação, na qual o saber está no lugar da verdade. Em Interpretação e Repetição, Maria de Fátima Alves Pereira propõe que aquilo que se escreve em uma análise é o efeito do dizer da fala e que o efeito terapêutico de uma análise implica remanejar o efeito de sentido, reorganizar-se em função do sentido próprio da insistência da repetição do gozo.

A interpretação e a transferência é o título da quarta seção, composta por três trabalhos. Olga Sá intitula seu texto com uma questão – Quem sabe? considerando logo de início que é da escuta do dito do analisando que a presença do psicanalista se impõe no inconsciente. Olga destaca que o inconsciente é estruturado como uma linguagem que não tem função de informação, mas de evocação, pois o que o analista busca na fala do analisando é fazer-se causa do desejo para que o analisando possa, a partir do desejo de saber do seu desejo, deslocar-se de uma posição de gozo para uma posição desejante movida pela transferência. No texto Quando há a interpretação?, Célia Fiamenghi discorre sobre a entrada em análise, a interpretação e o ato analítico. Propõe que a interpretação inclui a transferência e, consequentemente, o ato analítico, que dá partida, em uma análise, ao sujeito do inconsciente. Para tanto, Célia, através de um recorte clínico, mostra ser necessário trabalhar a demanda de análise, pois ela não deve ser aceita de imediato, necessitando ser interrogada, para assim introduzir a dimensão do desejo, da demanda do sujeito, da associação livre e, consequentemente, o surgimento de um sujeito sob o efeito da transferência. Clarice Gatto, no texto Retificação subjetiva, interpretação e transferência, discute o lugar da retificação subjetiva enquanto interpretação na direção do tratamento sob transferência. Ela examina esse aspecto no caso Dora e no Homem dos Ratos de Freud e questiona-se acerca das transmutações que as palavras do analista podem sofrer na operação analítica, que revelam o seu efeito de interpretação, e se elas podem mostrar que a primeira localização da posição do sujeito em relação ao real, na análise, seja in initio efeito de uma interpretação.

A sexta seção da coletânea é intitulada Interpretação e Discurso e contempla dois textos. Soraya Carvalho, em A interpretação no discurso melancólico, questiona de que lugar deve operar o analista na melancolia diante de um discurso destinado a mascarar a falta que não se abre ao equívoco do sentido e onde a enunciação se esgota no enunciado. Através de um recorte clínico, Soraya aponta para a distinção entre a clínica com melancólicos e com neuróticos. Em A interpretação nos discursos: efeitos em uma instituição de tratamento para o uso de drogas, Cynara Teixeira Ribeiro e Andréa Hortélio Fernandes apresentam, em coautoria, um texto no qual discutem as modalidades de laço social que circulam em uma instituição que oferece tratamento para usuários de drogas e o os efeitos subjetivos suscitados nos sujeitos que nesta são atendidos.

A seção A interpretação e o irredutível é composta por três textos. Marcus do Rio Teixeira, em Do significante irredutível, examina a mudança no conceito de interpretação no ensino de Freud e Lacan que, de início, incidiria sobre o sentido, para uma forma de intervenção que privilegia o significante e o non-sens. Já no texto O interpretável do sintoma, Madaleine Reis discute o que interpretar, uma vez que o sintoma mantém um sentido no real, que é o sentido sexual do sintoma, que faz limite à interpretação, apesar de o sintoma ter também uma dimensão de sentido. Em Percurso do concerto ao desconserto: um trabalho de interpretação, Ana Aparecida Martinelli Braga busca articular o conceito de interpretação na sua relação com o equívoco, que promove efeitos para o sujeito. Toma como premissa que a interpretação, na psicanálise, busca trabalhar o discurso do sujeito, apontando para o que nele há de indizível e, assim, produzir efeitos de des-razão no sujeito, desconsertando-o num percurso que vai do concerto, como arranjo, ao desconcerto, na medida em que o sintoma é o que há de mais singular em cada sujeito e com o que o sujeito, na análise, é convidado a lidar.

Na seção intitulada Interpretação, significante e poesia, três trabalhos enlaçam a interpretação na psicanálise ao trabalho da criação artística e da escrita poética. Raquel Prudente da Silva, no texto A psicanálise e a voz de Valdelice Pinheiro, toma o livro Expressão Poética de Valdelice Pinheiro2 para mostrar que a psicanálise, assim como a poesia, faz uso das figuras de linguagem: metáfora e metonímia. Já Ida Freitas, no texto Po(a)tar, toma Freud, Lacan e alguns poetas para mostrar algumas aproximações e distinções entre psicanálise e poesia, para daí examinar o que a psicanálise pode extrair desse cruzamento. Já Thaine Mendes Araújo Albuquerque, no texto Onde vivem os monstros, faz um comentário do filme com o mesmo título de Maurice Sendak, como forma de aproximar a psicanálise e a criação artística no que diz respeito a alguns pontos difíceis de serem transpostos em palavras, dada a fixação de gozo própria ao sujeito. Ela propõe que o personagem principal Marx tem um encontro traumático com um significante "monstro" vindo do Outro, no caso sua mãe. Este dizer vindo do Outro afetou de alguma forma Max, promovendo um efeito de interpretação, que fez com que ele recorresse à fantasia, levando o seu inconsciente a trabalhar, produzir significantes em torno do ponto do impossível de dizer marcado pelo encontro com o real.

A última seção da coletânea é intitulada Interpretação e o trabalho de cartel, e dois artigos dela fazem parte: Simey Soeiro, em O mais-um no cartel, discorre sobre o Mais-Um, interrogando, em paralelo, o que faz com que trabalhar em cartel gere tanta resistência. Para tanto, vai tratar da lógica dos discursos na psicanálise. Maria da Conceição Vita, no texto O amor que salva é o amor que não salva, apresenta uma produção de um cartel na qual ela discute a possibilidade da existência do amor fora do discurso da histérica e do discurso capitalista, para daí vislumbrar o amor como ponto de encontro que introduz a dimensão da verdade e não do engano. Verdade que revela que o desejo de um não é igual ao desejo do Outro, pois o amor em causa reintroduz a falta, a descontinuidade, e não a complementaridade, a salvação.

Os leitores desta coletânea poderão encontrar, aqui, uma série de textos sobre a lógica da interpretação na psicanálise desde Freud e com Lacan. Mesmo se tratando de um agrupamento de textos, é perceptível a singularidade da escrita de cada autor e da contribuição de cada um no que diz respeito ao tema em comum. Desejamos aos leitores que encontrem prazer e alento na leitura desta coletânea; que ela represente um livro a ser recomendado aos amigos e colegas que se interessam pela psicanálise e, em especial, pela lógica da interpretação na psicanálise.

 

 

1 PESSOA, Fernando. Obra Poética em um volume. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.328-329.
2 SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. Expressão Poética de Valdelice Pinheiro. Ilhéus: Editus, 2002.