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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.26 Rio de Janeiro jun. 2013

 

CONFERÊNCIAS

 

A oferta, a demanda e... a resposta

 

The offer, demand and ... response

 

 

Colette Soler

 

 


RESUMO

A partir da pergunta: "O que responde o psicanalista?" - título do VII Encontro da Internacional dos Fóruns e da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - a autora situa o que é da ordem da oferta, da demanda e da resposta em uma psicanálise. A resposta do analista não é do registro da interlocução, a oferta, anterior a demanda e distinta da resposta, é o primeiro passo do ato analítico seu começo. Distinguindo a posição atual dos analistas, das de Freud e Lacan, se pergunta: Como se fazer passar ao ato, em cada caso, a oferta já ali na cultura? Responde a questão marcando a diferença entre o saber e o saber-fazer do analista, distinção fundamental que leva Lacan a dizer que o analista só é responsável no limite de seu saber – fazer. A autora retoma a discussão em torno da resposta, aquela a ser feita à demanda transferencial que tem por objetivo produzir análise, destaca a formulação de Lacan em Televisão, que diz que se trata de tirar a limpo o inconsciente de que cada um é sujeito, isto é produzir a queda da transferência, evidenciar seu impasse e seu engodo, assim como a miragem da verdade. Essa operação desdobra a resposta em duas, sendo que o que qualifica a resposta de fim é a interpretação. A autora ressalta no desenvolvimento de seu texto o alcance comum as diversas formulações que dá Lacan do termo interpretação, a que visa a um real, nunca é conciliadora, não há universal da interpretação. Com a ideia de que a interpretação é um dizer que não, a autora se utiliza da afirmação de Lacan, "o dizer é um ato", apontando para a dupla dimensão da fala, o dito e o dizer, que irá desdobrar apoiando-se em diversas referencias a Lacan sobre esse tema. Evoca dois efeitos de sentido reais que se escrevem pelo dizer analítico, o sentido real do sintoma e o sentido real do dizer da demanda analisante. Destaca o dizer apofântico da interpretação demonstrando ser uma via possível a trazer um novo olhar sobre o final da análise. A autora conclui sua elaboração com observações sobre o lugar possível da resposta analítica a civilização atual.

Palavras-chave: Transferência, Interpretação, Dizer, Dizer apofântico, Dito, Cultura.


ABSTRACT

Departing from the question: "What does the psychoanalyst answer?" – the title of the VII Meeting of the International Forums and the School of Psychoanalysis of the Forums of the Lacanian Field – the author situates what is from the order of the offer, demand, and the response in a psychoanalysis. The analyst's response is not from the recording of the interlocution, the offer, before the demand and distinct from the response, it is the first step of the analytical act, its beginning. Distinguishing the current position of the analysts from those by Freud and Lacan, it is asked: How to pass to the act, in each case, the offer already in the culture? She answers the question by calling attention to the difference between knowledge and the 'knowing how to do' of the analyst, a fundamental distinction that leads Lacan into saying that the analyst is responsible only at the limit of its 'knowing how to do'. The author returns to the discussion about the response, that one to be made to the transference demand that aims to produce analysis. She also highlights Lacan's formulation in Television, which says that it is about clearing up the unconscious of each one is subject, that is, to produce the transference fall, to highlight its impasse and its deception, as well was the mirage of truth. This operation unfolds the response in two, being interpretation what qualifies the final response. The author emphasizes in the development of her text the common reach of various formulations Lacan provides the term interpretation with, since the one which aims at a real, is never conciliatory, there is no universal of interpretation. With the idea that interpretation is a "saying no", the author utilizes Lacan's statement "saying is an act," pointing to the double dimension of speech, the said and the 'to be said', which will unfold itself relying on various references to Lacan on this topic. She also evokes two real effects in the sense that they are written by analytical saying, the real sense of the symptom and the real sense of the saying of the analyzing demand. Finally, she highlights the apofantic saying of interpretation, proving to be a possible way of bringing a new look over the end of the analysis. The author concludes her elaboration with observations about the possible place of an analytical response to the current civilization.

Keywords: Transfer, Interpretation, Saying, Apofantic saying, Said, Culture.


 

 

Nosso título – "O que responde o psicanalista?"*– é menos banal do que parece, pois ao dizer o psicanalista, no singular, e não os psicanalistas – isto é, aqueles que se dizem como tais – é-se obrigado a ler: O que responde o psicanalista, se ele é psicanalista? É, portanto, precisamente, uma questão ética sobre a natureza desta prática, sobre seus fins e sobre o ato que lhe convém. As "Preliminares",(NT) que reli com grande interesse, consideraram isso justamente desta forma.

O pressuposto implícito de nosso título é que uma psicanálise, do começo ao fim, sua entrada, seu processo e, claro, seu fim, estão a cargo do analista, pois ele opera aí em posição de causa. Mas, antes de desenvolver este ponto, quero primeiramente deter-me no termo "resposta". Diacronicamente, a resposta não é primeira, e o termo provoca mal-entendidos.

 

A oferta antes da demanda

A resposta do analista, contrariamente ao que o termo sugere, não é do registro da interlocução. Se procurarmos nesse nível da troca das réplicas, do "ele disse" ("ele" é o analisante) e "eu respondi", ou, de forma inversa, "eu disse e meu analista me respondeu", poderemos falar indefinidamente, mas não encontraremos a resposta do analista. Em uma análise, é claro, há muitos ditos de interlocução, trocas de enunciados entre analista e analisante que dão uma ideia de interlocução, isso é inegável. Eles têm aí, porém, uma outra função, diferente do que nos outros discursos. Esse é o bê-a-bá, eé por isso que Lacan insistiu tanto sobre a função das entrevistas preliminares, que é de marcar um limiar, de instaurar um corte com "ao que vier da demanda". É isso que falta a todas as ditas psicoterapias da fala, e sem o que o psicanalista permanece, na melhor das hipóteses, um psicoterapeuta. Essa virada de entrada, e até mesmo essa "retificação", como diz Lacan, só pode vir do analista; apenas ele pode ser a causa possível disso, não por sua resposta, mas por sua oferta antes da demanda. A oferta não responde, ela se coloca de antemão, ela é a condição primordial, inaugural, e deve ser bem distinguida da resposta. Ela é prévia à demanda que deve produzir. A oferta já estava ali, "anterior à solicitação", diz Lacan (1976/2003, p. 569). A oferta é, portanto, o primeiro passo do ato analítico: ela é o começo. Para marcar bem que essa oferta não é uma resposta, e isso não somente porque ela é anterior à demanda, utilizo a expressão de Lacan: ela é, já na entrada, um ato de "posição do inconsciente", do inconsciente suposto. Ela é assim desde a instrução da associação livre, aliás, já que ela, ao convidar a falar sem censura, é convite para que se emita significantes sem consideração pela coerência, a correção ou a validade dos significados produzidos. Daí decorre que quando se interroga sobre a resposta, o ato já está ali. Isso levanta a questão daquilo que o condiciona. Diz-se "um desejo", é verdade, mas o desejo em si mesmo é sempre condicionado, o que remete à mesma questão. Voltarei a isso no final.

É preciso distinguir nossa posição atual da dos fundadores – inicialmente Freud, que criou a primeira oferta, e para nós também Lacan, que a renovou. Nossa diferença com relação a eles é que nós podemos nos apoiar sobre a oferta deles, já presente no discurso, e enquanto se falar, bem ou mal, da psicanálise no discurso comum, a oferta implícita estará ali. O que não era o caso deles, embora o próprio Lacan já tenha podido se apoiar em parte sobre a oferta de Freud – o retorno a Freud era isso, mas não o que ele, em seguida, introduziu de novo.

Como fazer passar ao ato, em cada caso, a oferta já ali, na cultura? Isso é relançado a cada demanda. O efeito de entropia analítica produzido no pós-freudismo é conhecido pela falta no nível da colocação em funcionamento da oferta freudiana de origem. Mesmo problema para aqueles que hoje se dizem lacanianos, especialmente se não tiverem tido acesso a essa parte da prática de Lacan que não se depositou nos textos. Com este problema, está-se no terreno da diferença entre o saber e o saber-fazer do analista, que é outra coisa, bem difícil de circunscrever, e que é de um peso tal, que Lacan pôde dizer que o analista só é responsável no limite de seu saber-fazer.

Questão mais geral e que diz respeito aos debates contemporâneos sobre o futuro da psicanálise. São todos debates sobre a questão de se saber se sua oferta pode continuar a prevalecer, a "dar dividendos ao mercado", dizia Lacan (1974/2003, p. 314), na ideologia pseudocientífica do capitalista contemporâneo. É certo que não é toda oferta que chega a criar demanda. Isso poderia nos convidar a uma reflexão sobre as condições discursivas que permitem que uma oferta prevaleça.

Volto à oferta do analista, esse primeiro passo do ato analítico que engendra não a demanda, mas uma demanda que se pode dizer analítica. Com relação ao intuito dessa oferta, não há grandes debates, embora haja diversas fórmulas para dizê-la. Seu objetivo primeiro é, em resumo, a instauração da transferência, ou seja, a colocação em jogo da significação do Sujeito suposto Saber na interlocução entre o paciente e o analista. Essa significação é justamente aquilo que põe fim à dupla da interlocução, que é necessária no início.

Ressalto dois pontos sobre essa oferta. Primeiro, longe de ser uma oferta de diálogo, ela visa a uma ruptura de qualquer semblante de diálogo, pois instaura aquilo que Lacan chama de uma "disparidade" subjetiva na entrada. Digo semblante de diálogo para evocar a tese de Lacan: não há diálogo. O que dá a ilusão de diálogo – ilusão forte, consistente, aliás – é o fato de que a fala inclui a função da réplica. Assim, todos os diálogos de Platão são construídos apenas sobre o procedimento retórico, que consiste em repartir uma única tese – a de Platão – entre diversos parceiros, que se replicam. Mas não basta falar em réplicas para que haja diálogo. Nada melhor que os grandes duetos das óperas para presentificar o quanto cada um, a despeito dos acordes da música que levam a crer em uma harmonia, fala sozinho, ainda que em paralelo. Segundo ponto: não é uma oferta de cuidado, mesmo se, ao término, a análise cuide; é uma oferta que dirige para o saber inconsciente suposto, e que deve produzir esse amor inédito que é o amor que se dirige ao saber inconsciente, segundo a última definição da transferência em Lacan. Sua função é causal para a instauração e elaboração da transferência. Sem ela, não há nenhuma chance para que haja entrada em análise, qualquer que seja a confiança conferida ao clínico e às confidências que lhe serão feitas. O efeito dessa oferta é de fazer emergir, a partir da queixa e da demanda de reconforto e de cuidados, uma demanda outra, uma demanda de interpretação – a qual, aliás, gera uma nova queixa bem conhecida, endereçada ao analista: "você não diz nada".

 

Uma resposta que contradiz a oferta

Chego agora à resposta propriamente dita, a resposta a ser feita à demanda transferencial, uma vez que esta esteja assegurada. Seu objetivo é, evidentemente, produzir a análise. Lacan deu diversas fórmulas daquilo que é preciso obter, e a melhor, sem dúvida, é a de Televisão, que diz que se trata de elucidar o inconsciente de que cada um é sujeito. Mas a fórmula engana em sua simplicidade, pois não desdobra o que ela implica, a saber, que elucidar o inconsciente é produzir a queda da transferência, evidenciar seu impasse e seu engodo, assim como a miragem da verdade. A tal ponto, que podemos dizer que a diferença entre o propósito da oferta e o da resposta é maciça – é por isso que não se pode dizer que a oferta seria uma resposta antecipada: é preciso manter a distinção entre elas, embora oferta e resposta suponham um desejo, do qual toda a questão é saber se se trata do mesmo. Em todo caso, a oferta instaura a transferência e a resposta deve reduzir o engodo dela. A primeira promete, e Lacan dizia mesmo que é caridosa, já que se significa ao sujeito que, o que quer que ele diga – e, sobretudo se ele disser qualquer coisa –, isso valerá a pena, terá seu preço e efeitos curativos sobre aquilo de que ele está se queixando. A segunda, a resposta, não promete, ela fornece, mas invertendo as promessas da oferta, pois o que se revela de mais real não é tão encantador quanto a oferta levaria a pensar. É por isso que Lacan (1967/2003) se perguntou repetidas vezes de início, se o analista não era o servente de um deus enganador (A Equivocação do Sujeito Suposto Saber); em outras palavras, se ele não fazia uma promessa mentirosa instaurando, pelo ato de entrada, um engodo (Sujeito suposto Saber), que, para ele, "já não é sustentável" (LACAN, 1969/2003, P. 372), e, sobretudo: o que pode levar a ser analista se se obteve a resposta de fim?

De quais termos nós dispomos para qualificar essa resposta? Interpretação, disse Freud; interpretação, diz Lacan. Ele nunca renunciou a isso, nunca pôs fim ao uso da palavra. Pelo contrário, até o fim, ele não cessou de interrogar seus meios, e de remanejar sua definição em função de seus avanços sucessivos no que diz respeito ao conceito de inconsciente. Dela, ele deu, então, uma série de fórmulas sucessivas diversas. Não posso recenseá-las aqui, já fiz isso em outra ocasião; quero ressaltar hoje o que constitui o seu impacto interpretativo comum. Primeiramente, todas elas, do início ao fim do ensino de Lacan, visam a um real, mesmo no tempo da metáfora e da metonímia. Não digo o real, pois o real não é unificado, mas plural. Ou ele é o real das emergências do significante "sem nenhuma espécie de sentido", disse Lacan muito cedo; ou o real do impossível de se escrever da relação sexual; ou o real da contingência do dizer, sem esquecer a interpretação poética acentuada no final, que conjuga o jogo sobre o fora de sentido do significante e o dizer que enoda. Essa diversidade não deve ser pensada como uma hierarquia, aliás, a última que aparece, a poética, estava ali na origem de Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (LACAN, 1953/1998), basta reler o texto. Essa não hierarquização me parece capital no que diz respeito ao uso que fazemos de Lacan em nossa prática. Segundo traço, correlativo do primeiro, uma interpretação nunca é conciliadora, ela não corrige aquilo que falha, ela mostra algo do real que se coloca de forma atravessada. Lembrem-se do dedo erguido de São João Batista, quadro de Leonardo da Vinci, em A direção da cura: ela só pode desconcertar, "provocar ondas" como diz Lacan, cair ao lado, ao lado das homeostases do significado, e no fundo, ao lado das ficções da verdade das quais cada um se assegura, mesmo que elas sejam edípicas.

Ainda que seja preciso não confundir esse "provocar ondas" com o barulho e o furor dos amores de transferência, e imaginar que quanto mais esquenta aí, mais a análise avança; é o contrário, e o próprio Freud sabia disso. O que estou dizendo aí sobre a interpretação (na medida em que ela visa a um real) abriria, evidentemente, o capítulo daquilo que é interpretar a verdade, já que é por aí que Lacan começou. Não entro nesse capítulo, no fundo bem clássico, mas marco um pequeno traço distintivo. Constata-se que uma interpretação pela verdade, passado o primeiro sobressalto, pode encantar. Mas uma interpretação que encanta é algo suspeito, pois o real não é encantador. Deixo isso em suspenso. Enfim, o terceiro traço, que é bem conhecido, mas de que é preciso tirar as consequências: não há universal da interpretação. Estava aí o erro de Jung. Cada uma delas só vale para um, assim como o gozo é um. A consequência é que não há relato possível da interpretação. A experiência direta disso se faz cada vez que um analista expõe um caso, ou que um analisante, falando de sua análise, quer fazer valer uma interpretação recebida de seu analista. Ele poderá dizer que a fórmula de interpretação é memorável, inesquecível, inaudita, marcante, indelével etc., e isso será apenas uma banalidade derrisória na orelha do ouvinte, e até mesmo pior, se ele estiver fora do campo analítico. Para isso há diversas razões, que não têm a ver com as pessoas. A primeira é que o impacto de uma interpretação é relativo simultaneamente à verdade e ao real do inconsciente do sujeito; em outras palavras, aos efeitos de sua alíngua, insondáveis, mesmo quando seus efeitos são experimentados e manifestos. Em segundo lugar, razão mais importante, é que a resposta de interpretação não se confunde com nenhum dito de interpretação. Os ditos são restituíveis, mas eles não dizem nem o porquê de seus efeitos, nem a princípio de seus efeitos. Ora, o princípio operador principal de seu efeito está para além das ressonâncias do significante, no dizer, que é outra coisa.

 

A interpretação é dizer... que não

"O dizer é um ato", diz Lacan (1974-75) em 18 de maio de 1975. Ele é existencial, emergência, jaculação, acontecimento, escolha absoluta, eventualmente. No começo estava o dizer – de onde Lacan passa ao deuzer [dieure], o dizer faz deuzer, o criador. É preciso refazer o catecismo. O que é deus? Deus é dizer, e o verbo é somente segundo, pois ele supõe o dizer. O significante é ex-nihilo, claro, e ele coloca o problema da existência posto que se pode sempre falar daquilo que não existe, ainda que seja preciso que o significante seja emitido, pois é o dizer que dá testemunho da existência. Em outras palavras, no nó tríplice da fala, o dizer permanece esquecido. Vocês reconhecem a expressão. É o quarto que retém invisivelmente as três consistências carregadas pela fala, pois desde que se fala, as três dimensões estão ali. O dizer não é a fala, é seu ato de emissão, e sem o dizer, não há ditos. Donde o "nunca 3 sem 4" do nó. É possível dizer isso de outra forma? A dimensão da fala é dupla: há seu texto – instância da letra, disse Lacan – e há sua emissão. Pode-se calar um texto (recalque), mas um dizer pode também ser emitido sem texto. Sem dúvida, é por isso que há tantos borborigmos do lado do analista. E, no que diz respeito ao analisante, o que se fez ou não pelo dizer, pode ser desfeito ou refeito pelo dizer analítico. O falasser é filho do dizer familiar, ou, antes, da maneira pela qual ele recebe esse dizer. A função da alíngua materna em si é suspensa ao dizer. Lacan (1975) insiste fortemente nisso em 24 de novembro de 1975, nas conferências na Yale University. Só há linguagem estruturada porque há dizer, isto é, sujeitos que usam a alíngua. Pois bem, é isso que falta ao pequeno autista, essa passagem dos efeitos multiformes da alíngua à linguagem orientada.

A resposta pelo dizer é uma resposta, com certeza , mas uma não resposta pelos ditos. "Os ditos se colocam sempre em verdade, mesmo que seja para nunca ultrapassar um meio-dizer", diz Lacan (1972/2003, p. 451), em O aturdito, mas, citando ainda, "o dizer não é da diz-mensão da verdade". Entretanto, ele não deixa de ter relação com a verdade, e mesmo uma relação precisa; o dizer, eu cito, "diz que não" à verdade, ele está, portanto, em lugar de exceção com relação a todos os ditos de verdade. Essa expressão, "dizer que não", que se aplica ao Pai, é de longe bem mais geral. Ela situa a relação do dizer com os ditos. Mas, cuidado: "dizer que não" não é negar, é conter, conter todos os ditos de verdade colocando-se fora. Também não é contradizer. Responder assim, citando ainda, "suspende o que o dito tem de verdadeiro" (LACAN, 1972/2003, p. 453); é, portanto, uma resposta que relativiza a verdade, em benefício do dizer existencial que, por sua vez, não pode mentir – ele é ou não é. Vejam, aliás, o Posfácio ao Seminário XI, de 1973 ainda, e sua mensagem àqueles que têm o "dever de interpretar"; pois bem, o que deve ser lido na fala não é, cito, "o que ela diz" (LACAN, 1973/2003, p. 504). Donde sua ironia sobre aqueles que se impulsionam pela escuta, como ele dizia. O que é isso, então, senão o "que se diga" da demanda analisante, existencial, real?

Pois na análise há dois dizeres: o do analisante, que é o dizer de demanda, o que quer que ele formule; e o do analista, que é apofântico. É uma particularidade desse discurso, pois não diríamos que no Discurso do Mestre ou no Discurso Universitário há dois dizeres. O escravo ou o astudado(NT2) são, antes, servos do dizer magistral, eles baixam a cabeça. O dizer analisante é demanda, o que quer que ele diga. Esta tese foi antecipada em Lacan por sua distinção anterior entre a demanda transitiva e intransitiva. O dizer de interpretação do analista é apofântico, o que quer dizer oracular. Insisto, portanto, nisso: tanto um quanto o outro desses dizeres dizem que não a todos os ditos. O dizer da demanda analisante diz que não a todos os ditos analisantes. É por isso que a célebre frase de Lacan (1973-74, aula de 15/01/1974) "peço que recuses o que lhe ofereço porque isso não é isso" pode receber, entre outras, a seguinte leitura: peço que recuses meus ditos, sejam eles de demanda ou não, porque eles não são isso. Que isso? Meu dizer informulável, mas que deve ser interpretado. Quando, ao dizer da interpretação, ele também diz não a todos os ditos analisantes, é isso que se faz quando se responde a ele "você disse isso", mas ele também diz não a todas as fórmulas de interpretação. Então, é claro que um dizer, uma jaculação sem texto, parece bem inapreensível; e para se aproximar de seu silêncio de forma racional, Lacan não pôde fazer menos senão se aproximar dele pelas modalidades lógicas, modalidade da demanda ou modalidade oracular.

Quando Lacan diz apofântico, ele designa uma asserção, sem proposição ao sentido gramatical da palavra, contrariamente à definição de apofântico em Aristóteles.

É, portanto, uma asserção que posso dizer sem texto, que, assim como o oráculo – e aí estou citando Lacan (1973/2003a, p. 555) – "não revela nem oculta". Ocultar ou revelar, no fundo, procede de A instância da letra produtora de verdade via metáfora e metonímia. O oráculo é de outra ordem; ele não esconde nem revela: ele faz signo [fait signe]. Signo de quê? Daquilo que não poderia passar à instância da letra, à linguagem, signo, portanto, de um real. Com o apofântico da interpretação, ele faz signo do real ex-sistencial do dizer. Com relação a todos os dizeres, essa resposta coloca um "existe" que não é da ordem da verdade, mas da ordem do real. É um dizer que suscita, que é causal, mas que, em si mesmo, não diz nada; ele orienta o outro dizer, o da demanda analisante. Daí decorre que esta resposta não é a resposta do bem dizer; ela é somente uma condição de sua produção. Lacan (1972/2003a) atribuiu a si mesmo o bem dizer, mas enquanto pensador de sua prática e não enquanto agente de sua prática – isso está explícito em Televisão. Ao querer precisar aquilo que fez, ele diz – eu cito: "extrair de minha prática a ética do bem dizer" (p. 539). Na análise, o bem dizer não é nem o do analisante, nem o do analista, mas o resultado da conjugação de ambos. Ainda que seja preciso, que o efeito desta conjugação dos dizeres não se evapore, que ele deixe rastro, e é, na verdade, isso que se escreve em uma análise. O bem dizer é aquele que faz o suficiente, escrito suficiente para satis-fazer, e ele se produz quando a interpretação apofântica opera sobre o dizer da demanda analisante.

Traduzo o dizer apofântico ao falar de um dizer que não diz nada para fazer imagem; Lacan, por sua vez, em 1975, fala de um dizer silencioso. É melhor. A expressão foi justamente feita para marcar a diferença para com todos os ditos que dizem algo, todos os "ele me disse", restituíveis, é claro, mas derrisórios.

 

Três efeitos de sentido real

É preciso, portanto, se interessar – ao lado dos efeitos de significante – pelos efeitos que são próprios ao dizer. Lacan (1974-75) volta a esse ponto em 11 de fevereiro de 1975. Ele interroga a interpretação analítica a partir desta distinção dos ditos e do dizer. "Tratar-se-ia de saber como a interpretação impacta [porte] e que ela não implica forçosamente uma enunciação" (aula de 11/02/1975). É aí que ele fala de um dizer silencioso, que vai mais longe do que a fala, e ele precisa isso, pois muda a perspectiva sobre o efeito de sentido, visa a uma báscula no impacto do efeito de sentido para um efeito de sentido real.

Algumas observações sobre essa noção de um efeito de sentido real. Ela nos parece paradoxal. Por duas razões: primeiro, fomos habituados por Freud; e em seguida, por Lacan, a pensar o sentido como efeito de uma cadeia significante e, portanto, como procedente do simbólico. Em seguida, Lacan nos habituou a falar do real como fora de sentido. Com o inconveniente de que o real fora de sentido é inacessível à linguagem. Ele é como o deus da teologia negativa, do qual não se pode aproximar a não ser pela negação. É isso que Lacan faz no fim: ele não tem sentido, ele não é Um, ele não faz um todo etc.; em outras palavras, ele não tem nenhuma das propriedades circunscritíveis no simbólico. Seríamos nós, então, místicos do real? Nós não podemos sê-lo, e creio que com essa noção de sentido real, Lacan procura sair do que chamo, por imagem, do risco de uma teologia negativa do real. E para sair daí, é preciso poder dar uma fórmula apreensível, senão do real, ao menos do sentido real.

Pois bem, é isso o que Lacan fez antes de R.S.I., em A Terceira, com relação ao sintoma – já tive a oportunidade de desenvolver esse ponto. Ao lado do sentido do sintoma dado pela "instância da letra", que só o alimenta, ele postula que o sentido real do sintoma é o "não há relação sexual". Esse "não há", uma vez estabelecido, não alimenta o sintoma, mas mostra sua função necessária. Digo uma vez estabelecido, mas não nos livros – isso se estabelece em cada cura. Em outras palavras, o real fora de sentido do sintoma recebe um efeito de sentido real, deste outro real que é o impossível da relação. O efeito de sentido real é dado por um real, aqui o do impossível, e não pelo Simbólico.

No ano seguinte, em R.S.I., que acabo de citar, ele coloca a mesma questão, não mais para o sintoma, mas para o efeito de sentido real da interpretação. Ele pergunta: será que esse efeito de sentido real da interpretação deve-se ao significante ou à sua jaculação? Ele insiste – cito: "acreditava-se que são as palavras que impactam [portent], ao passo que se nos infligimos a pena de isolar a categoria do significante, vemos bem que a jaculação guarda um sentido isolável" (LACAN, 1974-75, aula de 11/02/1975).

Qual? Vê-se que Lacan procura saber como a jaculação do dizer que interpreta a demanda pode lhe dar um sentido real. E eis a resposta, que deduzi do texto: assim como para o sintoma, há um duplo sentido do dizer da demanda. Seu sentido simbólico é a falta do objeto que faz dela uma re-petitio transfinita. Seu sentido real, em contrapartida, é dado, como é o caso para o sintoma, por um real, um outro real que se diz Há Um [Y a d'l'Un], UM sozinho, e nada mais. A interpretação apofântica incide sobre aquilo que se esquece nos ditos analisantes, na re-petitio transfinita de sua demanda, e ela lhe dá, deve lhe dar, o sentido real do "há Um" [y a d'l'Un] que aí insiste. Assim, o dizer apofântico, por mais silencioso que seja, faz responder o real, faz signo [fait signe] da resposta do real, a resposta que estava lá antes da questão, por efeito de linguagem. Essa resposta não depende do analista, não é a sua resposta, mas o que depende dele é que ele chegue a fornecê-la ou não.

Recapitulo: evoquei dois efeitos de sentido que se pode dizer reais. Primeiro, o sentido real do sintoma, dado pelo real da ausência da relação, do ab-sexo. Em seguida, o sentido real do dizer da demanda analisante, sentido que não vem da metonímia do objeto, como ele postulava no Posfácio do Seminário XI, mas que é dado graças à interpretação pelo real do "há Um" [y a d'l'Un]. Dois reais, portanto, que se escrevem pelo dizer analítico.

Questiono agora o sentido real da jaculação interpretativa em si, independentemente de seus efeitos, sobre a demanda. Ela tem um sentido, o da presença de uma ex-sistência, ou seja, de um real que não se demonstra, nem resulta da estrutura de linguagem. Pode-se dizer novamente a respeito dele que o "não há diálogo" é que é a regra para o falante – eu cito: "tem seu limite na interpretação, através da qual se garante como no tocante ao número, o real" (LACAN, 1973/2003b, p. 548). Lacan havia postulado isso a propósito da interpretação que permite a passagem da impotência ao impossível da não relação. Pode-se estender isso à interpretação que produz o sentido real. Se daí tivéssemos que dar uma fórmula aproximada desse sentido real da jaculação seria a seguinte: "ex-siste Um", que, por exceção, pode responder. É claro que o analista acolhe os ditos de verdade do analisante, ele ouve o que eles todos comportam de paixão inevitável e diversa, de esperança e decepção, de dor e, às vezes, de terror diante do inelutável, mas seu dizer silencioso marca um mais além. Isso não faz dele um deu...zer [dieure], nem o deus do Sujeito suposto Saber, nem o deus dos profetas, já que sua jaculação não diz nada, só o coloca como aquele que responde do dizer do outro. Aqui aparece a vantagem de um dizer silencioso sobre o dizer que se veicula pelos enunciados do analista, pois a pressão do dizer silencioso dá lugar à emergência dos significantes próprios ao paciente. Digamos que ele preserva o espaço de liberdade da reação analisante.

Parece que até aqui minimizei os ditos de verdade, sem dúvida, mas é preciso também dizer o valor deles: sem esses ditos de verdade, não há acesso aos significantes do inconsciente, nem ao saber inconsciente que determina meu gozo, pois o saber está no lugar de verdade na análise, e é justamente nos ditos analisantes que o deciframos. Na análise, a efetuação do desejo do saber passa pela verdade. Então, a performance da interpretação é de se manter entre essas duas balizas: de um lado, orientar o dizer da demanda, fazer escrever seu sentido real, o "há Um" [y a d'l'Un] do real da estrutura que vale para qualquer falante em análise; mas... por outro lado, sem perder a singularidade própria ao saber inconsciente que, para cada um, não é similar a nenhum outro. Não bastaria apontar que o dizer analisante é, em todos os casos, demanda, dizer de solidão; é ainda necessário, para acertar na mosca, fazer ressoar os significantes singulares que o analista não sabe, mas que, em cada analisante, carrega o dizer do Um sozinho. Na sua falta, o dizer interpretativo bascularia em um derrisório "bem entendido!" – o "bem entendido" da solidão ordinária. Sustentar juntos esses dois extremos é o dever do analista. Pois bem, creio que o analista – um analista –, a menos que ele seja louco, só pode se sentir inadequado no lugar dessa performance. Era justamente esse o caso do próprio Lacan que, bem longe de ser fanfarrão, lamentava por não ser suficientemente pouâte,(NT3) por não ser suficientemente poeta (pouâte assez). Mas tivesse ele sido mais pouâte, tivesse ele manejado mais os equívocos do discurso, ele não teria mudado o outro impacto da interpretação, a saber, o sentido de sua jaculação, que, por sua presença em si só, faz limite ao "não há diálogo" ou, melhor dizendo, faz o não diálogo dar um pequeno passo de diálogo.(NT4)

 

O luto

Eis quem pode dar um novo vislumbre sobre a fase final da análise, especialmente sobre o fato de que ela se prolonga para bem além do espaço da transferência e das elaborações significantes de verdade que ela permite. Colocando a ênfase sobre o dizer apofântico da interpretação, acrescenta-se algo não à modalidade do fim, quer ela seja feita por uma conclusão de impossível (como postula O Aturdito e a Introdução à edição alemã dos Escritos), ou pela satisfação que conclui a báscula entre verdade e real (como propõe o Prefácio à edição inglesa do Seminário XI), mas acrescenta-se algo à função do analista no processo. Ela se desdobra entre função significante e função de dizer, que, sem dúvida, ficou bastante esquecida. Dá-se muita importância àquilo que se nomeia como a queda da transferência. Mas essa queda se situa no eixo da função significante, ela não é apenas uma queda do analista, mas, antes, uma queda das esperanças depositadas no dizer da verdade, no saber falado que habita a fala e que, essencialmente, escapa ao sujeito. O dizer apofântico, que suspende o que o dito tem de verdadeiro, contribui, é claro, amplamente para denunciar o engodo transferencial, ele intervém no nível da verdade e contribui para tornar sua mentira apreensível; esse efeito, porém, deve ser drasticamente distinguido da função existencial do analista. Acredito que é esta última que prende o analisante à sua análise – não estou dizendo a seu analista – para além das elaborações transferenciais, quando ele pensa que tudo foi dito daquilo que era possível dizer. Não esqueçamos que, de uma maneira geral, é o dizer que suscita os afetos mais violentos, quer seja de adoração ou de execração. É essa dimensão do dizer, creio eu, que faltou à teoria freudiana do chefe, aliás. Ele viu bem a função de ideal e de objeto dela, mas não sua função existencial. Na análise, que faz aparecer o Um-dizer [Un-dire] que se sabe só – o do analisante, portanto –, este Um dizer, ainda assim, não está tão só, já que há um dizer de resposta que existe, quaisquer que sejam as fórmulas de resposta e mesmo que esse dizer seja silencioso. Pois bem, no fim, é disso que o analisante também precisará abrir mão, dessa ex-sistência que tinha chance de resposta, e isso é algo bem diferente da dita queda do Sujeito suposto Saber.

 

Nossa conjuntura

Termino com algumas observações sobre o lugar possível dessa resposta analítica na civilização atual. Estou às voltas há muito tempo com esse tema, e não tenho tese sobre ele, mas alguns pontos de certeza, ainda assim.

Ressaltei a função causal da oferta de entrada que está a cargo do analista. Certo é que os psicanalistas de hoje, mesmo quando eles reclamam bem alto de Freud e de Lacan, não conseguem mais fazer prevalecer a radicalidade daquilo que foi a oferta em ato deles. Mas não seria justo encarregá-los excessivamente dessa entropia. Preferi me perguntar: em que condições uma oferta pode fabricar demanda? É claro que não é em todos os casos.

Cheguei à conclusão de que é preciso que o valor de troca da oferta prevaleça sobre o valor de uso. Quando é esse o caso, a oferta é, digamos... vendável. O valor de troca é aquilo que coloca o objeto de oferta em jogo em um laço social, o que faz funcionar este objeto como o índex da identificação ao semelhante (ter seu iPhone assim como os outros) e simultaneamente o índex da competição, da emulação imaginária (ter o modelo mais recente que nem todos ainda têm). Assim, o valor de troca supõe a colocação em jogo do Imaginário e do Simbólico.

É esse o paradoxo e o êxito da oferta capitalista: de um lado, com seu estímulo ao consumo de gadgets, ela pretende oferecer, e mesmo criar, valor de uso; em outras palavras, oferecer novos gozos e, de fato, ela cria, assim, novas necessidades, fazendo de nós seres ao mesmo tempo aparelhados e normatizados, mas só consegue isso porque faz primar o valor de troca sobre o valor de uso. Essa primazia do valor de troca tal como eu a defini é a própria astúcia de qualquer propaganda, e é também isso que perceberam e denunciaram todos os combatentes da dita sociedade do espetáculo. Não se deve ver aí somente a irrealização do valor de uso, mas seu veículo. Os psicanalistas têm hoje a tendência a denunciar as redes que chamamos "sociais", por meio das quais os sujeitos dispersos e precarizados do capitalismo tentam se conectar a outros. Não estou dizendo que eles estão errados, todas essas conexões são derrisórias com relação àquilo que é um verdadeiro laço social; mais do que denunciá-los, porém, não seria preciso reconhecer aí a busca daquilo que o capitalismo não oferece – a saber, um discurso que faça laço entre os indivíduos, ele, que só oferece o laço de cada um aos seus mais-de-gozar?

O que acontece, para a psicanálise, com relação a esse duplo valor de uso e de troca? Não há dúvida de que a psicanálise, ao fornecer o efeito de sentido real do sintoma e da demanda analisante, muda o valor de uso deles, isto é, o valor de gozo e de satisfação deles. É isso que implica a própria noção de identificação ao sintoma. Mas, evidentemente, ela só faz isso no um por um. O que é que pode, então, fazê-la passar ,fazer passar aquilo que produz a resposta analítica ao valor de troca, o valor de troca que é necessário para que a psicanálise tenha sucesso de mercado? A questão se coloca principalmente porque o saber inconsciente, contrariamente ao saber da ciência, não se presta à troca.

A Nota italiana – já com 40 anos – e a leitura que faço dela me inspiraram algumas observações válidas para nossa atualidade.

Lacan tem uma tese sobre o que permitiu à psicanálise se inscrever na civilização da ciência. É a seguinte: o modelo dado pelo saber no real da ciência conseguiu inspirar um desejo inédito do saber. Não do saber da ciência, mas deste outro saber alojado em outro lugar e do qual a psicanálise se ocupa, o saber inconsciente. A quem ele inspirou? Não foi a todos, Lacan (1973/2003c) postula isso explicitamente: a ciência, diz ele, é responsável "de ter transmitido", eu cito, "unicamente aos rebotalhos da douta ignorância" (p. 313) o desejo em questão. Isto equivale a dizer que a psicanálise não se recruta dentre aqueles que têm a fibra para se fazer de agentes da ciência, e isso é uma evidência, de fato. Com efeito, o que é o douto ignorante senão alguém que, embora sábio em seu tempo – douto, portanto – percebia e afirmava, por sua própria ignorância, aquilo que faltava ao saber da ciência, que chamamos, com Lacan, de a verdade, ou o sujeito ou objeto causa? A psicanálise terá marcado, portanto, segundo Lacan, o fim da figura histórica da douta ignorância. Ali onde estava sua ignorância quase didática, a psicanálise fez vir um outro desejo por um outro saber, que pode ir até o gay sçavoir e que é suposto poder ser transmitido. Assim, ele faz do desejo do saber a condição histórica da psicanálise, e esse desejo do saber é, com efeito, manifesto em Freud, e sem ele Freud não teria inventado sua técnica de deciframento. Acrescento que isso é também aquilo que é prévio de cada análise, e sem esse desejo, não há associação livre possível. A marca do desejo do saber está na entrada, e isso leva a precisar o que a operação da análise vai produzir sobre essa condição prévia. Que essa condição não esteja em todos, então, está aí já, primeiramente, algo que exclui a pretensão a uma psicanálise para todos. Isso permanece válido hoje. Ninguém está excluído da psicanálise a priori, mas só entra aí aquele ou aquela a quem esse desejo foi transmitido, aquele ou aquela que, por causa de suas próprias aventuras, está em afinidade com o desejo do saber que falta à ciência e que sustenta a psicanálise. Donde concluo que a psicanálise de massa não pode existir. Lacan distinguiu muito justamente em seu Ato de fundação a psicanálise pura e aquilo que ele chamou de "psicanálise aplicada", que também permanece atual; ela, porém, não é de massa e está subordinada à psicanálise pura em intensão, como se diz, e é dela que estou falando.

O desejo do saber não foi, mesmo assim, uma condição suficiente nem para a ciência – que, além disso, teve que seduzir o mestre, isto é, aquele que paga – nem para o psicanalista, diz Lacan, pois foi preciso que se acrescentasse o clamor da humanidade – que não quer o saber – e cujo "já por aí" o psicanalista é o rebotalho. "Já por aí", isto é, pelo desejo do saber que condiciona a análise. E, de fato, o desejo da felicidade e o desejo do saber são coisas bem distintas. Esse ponto poderia dar lugar a uma pesquisa metódica para qualquer entrada em análise. Ressalto a dissimetria com relação à ciência: a ciência pôde entrar como vencedora no campo do discurso do mestre, que ela infiltrou por toda parte. O psicanalista, pelo contrário, e é meu segundo ponto, já pelo desejo inédito que é a sua marca de origem, se instaurou por uma separação para com a humanidade – é, aliás, por isso que Freud acreditava que isso era uma peste, e é também essa sua homologia com o santo que também se instaura por uma separação com relação à via canônica da religião. Seria curioso que depois de uma análise, os analistas de hoje aspirem a retornar à massa prometendo a felicidade àqueles que sofrem. Nem o saber da ciência, nem o saber da psicanálise prometem isso, somente a transferência faz espelhar sua possibilidade, ao passo que a resposta da análise não promete nada a não ser em matéria de desejo e de mudança de gozo.

Em terceiro lugar, ponto capital, se o desejo do saber está na entrada, ainda é preciso dizer o que a análise faz dele. Lacan responde: ela deve verificá-lo. É seu o termo. Verificar aqui quer dizer, penso eu, duas coisas: ela se assegura dele, mas submetendo-o à prova do dizer da verdade e a seu meio-dizer, que faz fracassar o desejo de saber. É no término que se saberá se o desejo de origem sobreviveu à prova analítica, pois nesta prova as consequências do saber inconsciente se atestam, e são elas mesmas que geram o horror não do saber, mas de saber. É assim que Lacan postula essa tese inaudita, segundo a qual isso não foi verificado por Freud, que não passou além dos "amores com a verdade", segundo sua expressão. "Modelo (ele fala do modelo freudiano) do qual o analista, se tiver um, representa a queda" (LACAN, 1973/2003c, p. 313), diz ele. Em caso de queda do modelo freudiano, então, o analista sabe que ele é rebotalho. Mas, cuidado, "não qualquer um", diz Lacan; em outras palavras, não aquele que condicionou a psicanálise, mas aquele que ela produz. Não é o rebotalho da humanidade; ele já era isso. Mas é, além disso, o rebotalho dos amores com a verdade, o rebotalho, o sicut palea, as elaborações de transferência, eu poderia dizer o rebotalho da linguagem, por seu desejo não mais do saber, mas de saber, de saber as consequências reais do saber inconsciente.

Então, questão para hoje: pode-se fazer passar isso, essa promessa ali, com valor de troca? Esse é o desafio de nossa atualidade.

Alguns duvidam. Já na época da Escola Freudiana de Paris, algumas pessoas se alarmavam com o fato de que, ao prometer, à época, a destituição subjetiva de fim corria-se o risco de desencorajar os candidatos à análise. Preocupação mal fundada, segundo Lacan (1967/2003a), pois, diz ele, "nada jamais deterá o inocente, que não tem outra lei senão seu desejo" (p. 258). Mas quem é que diz que esse desejo o levaria para a psicanálise? O implícito desta resposta de Lacan é que: enquanto a oferta do analista sustentar e transmitir o desejo ad hoc, a psicanálise não está ameaçada. E, na verdade, sob a falácia da oferta do Sujeito suposto Saber, o que o analista coloca em posição de causa verídica é um desejo. O que é verdadeiro da oferta do Sujeito suposto Saber é a oferta de um desejo que, como desejo do Outro, se dirige para o saber. Ora, o desejo está do lado do valor de troca, ao passo que o gozo está do lado do valor de uso.

Noto, em todo caso, que todos os livros negros da psicanálise, todas as campanhas de ódio, falam do psicanalista como um rebotalho. Mas de quê? Da humanidade, justamente, de seu bom-senso em matéria de saber e de seus supostos valores morais. E isso porque eles se esforçam sempre para demonstrar que sua teoria é maluca, que está longe de ser científica, e que seu inventor, Freud, era animado por más tendências – e nem falemos de Lacan. Tudo isso é inexato, mas de uma certa forma, verdadeiro: o psicanalista não partilha em nada o desejo de alguns dos conformistas (bien pensants) da nova e antiga moda. É inútil, então, que ele apresente provas de honestidade nas mídias, e disfarce o Eros negro na pele de cordeiro do bom pastor, como diz Lacan.

O psicanalista tem hoje uma tarefa redobrada. Não se pode mais contar com o saber da ciência para suscitar um desejo inédito do saber, até mesmo porque não se pode mais falar do saber da ciência, cujo modelo principal era o da Física? Não somente a Física não é mais a ciência de ponta – ela foi suplantada pela Biologia –, mas os saberes são despedaçados em especialidades múltiplas, mas restritas. Ademais, apesar dos progressos impressionantes das ciências, acredito que daqui por diante, passadas as grandes esperanças, uma certa douta ignorância se aloje, doravante, do lado daqueles que realmente fazem a ciência, e que, por causa disso, cada um em sua área, está em condições de ver os limites, os furos que se multiplicam na medida dos saberes.

Daqui por diante só se pode contar com a psicanálise ela mesma para a transmissão desse desejo do saber, e é esse o objeto de sua oferta. Mas, além disso, o analista deve fazer prevalecer sua resposta depois de um século de uma experiência cujos efeitos são difundidos nos discursos. Ora, o que ela produz só pode seduzir aqueles ou aquelas que têm, eu não diria um desejo do real, não sei se isso existe, mas, ao menos, um desejo de saber algo dele. Sobre esse ponto, talvez o real da ciência e do capitalismo – bem pior do que o da psicanálise – poderia fornecer um repelente, que seria um complemento para o real da psicanálise.

 

Tradução de Cícero Alberto de Andrade Oliveira

Revisão de Dominique Fingermann

 

Referências

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__________. (1976-1977). Le Séminaire: Livre 24 – L'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre, inédito.

 

 

* Referência ao VII Encontro Internacional da IF-EPFCL – O que responde o psicanalista: Ética e Clínica, ocorrido no Rio de Janeiro, em julho de 2012.
NT Conjunto de textos preparatórios escritos por diversos psicanalistas para o VII Encontro Internacional da IF-EPFCL, difundidos via rede e que podem ser acessados no site <//www.rio2012if-epfcl.org.br/>.
NT2 No original, astudé. Referência ao termo criado por Lacan no Seminário 17 (O Avesso da Psicanálise), na aula de 11/03/1970 (na edição brasileira, p. 98). O termo joga foneticamente com o particípio passado do verbo étudier [estudar] – isto é, étudié [estudado] – substituindo o "e" inicial do verbo por "a" (do objeto a).
NT3 Jacques Lacan (1976-1977). Le Séminaire – Livre 24 – L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre, inédito (Aula de 10/05/1977). Neologismo criado por Lacan que articula as palavras poeta [poète] e ato [acte].
NT4 Em francês "fait faire au non dialogue un petit pas de dialogue".