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Stylus (Rio de Janeiro)

versión impresa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.26 Rio de Janeiro jun. 2013

 

ENSAIOS

 

A interpretação como valor de verdade e como função poética

 

Interpretation as a value of truth and poetic function

 

 

Conrado Ramos

 

 


RESUMO

O artigo desenvolve as implicações, para a interpretação, decorrentes dos dois horizontes do significante apontados por Lacan em O saber do psicanalista, quais sejam, um matemático e um materno/material. Pretende-se considerar, de um lado, a dimensão lógica da interpretação como a tradução em palavras do valor de verdade que o sintoma é, enquanto função. Nesta perspectiva, o sintoma pode ser entendido como uma fixação inconsciente de gozo pelo aparelhamento de uma linguagem cujo código e funcionamento constituem o trabalho da interpretação. De outro lado, porém, encontramos nos últimos anos do ensino de Lacan a interpretação pensada a partir da função poética, na qual o destaque é dado à mensagem por ela própria, enquanto os outros elementos da comunicação tornam-se secundários. Propõe-se ao final que, se por um lado não se pode esperar de uma análise o sentido último, tampouco, por outro lado, deve-se levá-la ao ponto da exclusão do sentido. É aí que entra o sintoma, não como significação cristalizada, mas como o tonel necessário para o escoamento do sentido, efeito do sentido, pelo qual uma economia de gozo possível produz uma fixação mínima necessária (uma função) para se gozar do inconsciente.

Palavras-chave: Interpretação, Sintoma, Sentido, Função poética.


ABSTRACT

The article sets to develop the implications for interpretation deriving from the two horizons of the signifier pointed out by Lacan in The Knowledge of the Psychoanalyst, namely, a mathematician and a maternal/material. The goal then is, on the one hand, to consider the logical dimension of interpretation as the translation into words of the value of truth which the symptom is while working as a function. Under such a perspective, the symptom can be understood as an unconscious fixation of jouissance through the equipping of a language whose code and functioning comprise the work of interpretation. On the other hand, in the last years of Lacan's teaching, we find the interpretation articulated from the poetic function, in which the emphasis is given by itself to the message, while other elements of communication become secondary. It is proposed at the end that if, one the one hand, one cannot expect the ultimate meaning from an analysis, on the other hand, one should not take it to the exclusion point of the meaning. This is where the symptom comes in, not as crystallized significance, but as the necessary barrel for the flow of meaning, effect of meaning, through which a possible economy of jouissance produces a minimum necessary fixation (a function) for enjoyment from the unconscious.

Keywords: Interpretation, Symptom, Meaning, Poetic function.


 

 

Decidi tomar a questão provocativa de nosso Encontro Internacional (O que responde o psicanalista) pela via da lógica da interpretação: que bases poderíamos propor para uma lógica da interpretação? Podemos pensar que há um cálculo da interpretação? Em certa medida, o analista calcula, faz um cálculo proposicional do que escuta, cálculo do qual extrai suas intervenções, sem saber, obviamente, os efeitos que elas vão ter. Seus cálculos são feitos com base em suas hipóteses clínicas e diagnósticas, que podem não se verificar. Os efeitos são incalculáveis, mas não as intervenções do analista.

Para dar um exemplo, é porque estava amparado no modus tollens, isto é, no modo que nega e faz a prova indireta de uma implicação, que um analista pôde ouvir na proposição "só não me caso porque não arrumei um emprego", a premissa "se arrumar o emprego vai ter que casar", da qual pôde subentender e interpretar que não era do emprego que se fugia. Assim, se considerarmos Emprego (E) e Casamento (C) como conjuntos, podemos dizer que, para este sujeito valia o argumento E ⊆ C, logo, se x ∉ E, é possível que x ∉ C. O que importava era escrever uma variável x como um lugar fora do conjunto C. Foi a lógica das articulações inconscientes deste sujeito que se pôde ouvir para interrogá-lo em seu "não conseguir arrumar um emprego".

Em outro exemplo, podemos entender que foi por tomar como um argumento lógico a proposição "um dia meu pai me confessou que, na verdade, ele não gosta da minha mãe", que um analista pôde ouvir e fazer desdobrar-se a função edípica do gostar, presente nesta frase. O "na verdade", da frase, é mais uma denúncia do que uma confissão, pois, se "na verdade" ele não gosta da mãe, cumpre perguntar: de quem, na verdade, ele gosta? O gostar aí é uma propriedade, da qual podemos dizer ∃(x)Φ(x), ou seja, que para o argumento (x) vale a função Φ, na qual podemos ler o endereçamento do gostar deste pai: Φ(x) = gostar de alguém. Assim, se na verdade ele não gosta da mãe, isto quer dizer que não é a mãe que entra em x. Quem, então, ali se aprisiona? Esta é a questão que faz vir à tona a proposição que se oculta na verdade. É a analisante, pois, que se sustenta ali, no x que recebe o gostar do pai, x no qual se suporia estar a mãe. O que se pode ler logicamente na proposição, então, é a função edípica atribuída ao gostar.

Não se trata, nos casos destes dois exemplos, que seja verdade que haverá casamento depois do emprego, nem tampouco que seja a analisante aquela de quem o pai efetivamente gosta. O que conta, em suma, é o valor de verdade que estas formulações trazem e, como decorrência, que a interpretação é a tradução em palavras do valor de verdade que o sintoma é, enquanto função, conforme Lacan (1971-72/2011) propõe em O saber do psicanalista (aula de 2 de dezembro de 1971). Aquilo que traduz em palavras um valor de verdade é uma escrita, uma cifra. A significação produzida pelo cálculo da interpretação vale mais pelo que ela escreve logicamente como valor de verdade do que pelo significado que ela fixa e que é, em si mesmo, absurdo, muitas vezes. Afinal, todos sabem que é possível casar sem arrumar emprego ou mesmo arrumar emprego sem ter que casar, mas um saber inconsciente, de um sujeito singular, cifrou emprego e casamento numa relação que não existe e a tomou como verdade. É por isso que a decifração se resume ao que faz a cifra, conforme Lacan (1974/2007) disse em A terceira.

Assim, ainda que no primeiro exemplo o sujeito fuja do emprego como quem foge do casamento, o que entrou em jogo não foi a revelação de sua condição de celibatário, como se esta fosse o conteúdo oculto do seu sintoma e a essência de seu ser, mas sim sua construção de uma resposta sintomática ao enigma do feminino, modo pelo qual fazia S1 representar um $ para S2.

Pois bem, temos aqui o sintoma, entendido como uma fixação inconsciente de gozo pelo aparelhamento de uma linguagem cujo código e funcionamento constituem o trabalho da interpretação. Podemos achar na essência deste processo uma significação congelada, cuja referência à sexualidade e à fantasia deve ser considerada.

Nestes dois exemplos, seja porque o sujeito não quer entrar no lugar lógico que seu discurso sustenta, como no primeiro caso; ou porque ele ali se aprisiona, como no segundo, as respostas do analista, pensadas como suas intervenções em cada caso, foram orientadas logicamente. O que ele ouviu – ou leu –, podemos assim dizer, foi a função matemática dos elementos da fala. Mas aqui devemos tentar ir além e nos perguntarmos: é esta a única função presente no horizonte do significante? É aqui que devemos trazer a necessidade de Lacan de buscar na poesia ou, mais especificamente, na função poética, um outro suporte teórico para a interpretação. Não à toa Lacan (1971-72/2012) escreve, na aula de 4 de maio de 1972 do seminário O saber do psicanalista, que o significante tem dois horizontes: um matemático e um maternal/material.

Trago, então, o exemplo de um sujeito que passou suas entrevistas iniciais se queixando de não conseguir fazer nada. O máximo desta posição ele situou no fato de nunca ter se preocupado em levar a mãe doente a um médico. Obviamente, ela havia morrido e ele sentiu-se ainda mais culpado e inútil. Num dado momento, disse, indignado: "vivo numa tamanha inutilidade". O analista ouviu e repetiu: "não mata a mãe, inutilidade". O efeito foi a lembrança súbita de um sonho – o primeiro desta análise –, que esse sujeito disse não saber por que se lembrou, tendo em vista que "a mãe não aparece" (sic): está num parque de diversões com a família, "menos a mãe" (sic). De repente, saem com os carrinhos bate-bate por uma estrada de terra. Encontram um bezerro grande mamando numa vaca morta. Ele sai do carrinho para tentar salvar o bezerro. Pergunta-se, desesperado, no sonho, quem poderá ajudá-lo. Aqui, durante um tempo considerável, vira-se e fica imóvel, olhando em silêncio para o analista que, pela primeira vez, é convocado à cena: deu-se aí um corte de sessão e a entrada em análise.

O que este exemplo tem de diferente dos outros dois é que a intervenção não operou logicamente, mas pela equivocação do significante. Não houve cálculo proposicional, mas sim algo mais próximo da construção de um chiste. Não houve uma articulação lógica de lugares e funções, mas apenas um rearranjo das relações entre som e sentido. Vale notar, entretanto, que ainda assim esta interpretação não é um "vale-tudo", pois o analista deve ter em jogo a transferência e, além disso, o campo de significantes, de relações e de investimentos pulsionais de seu analisante. Assim, é improvável que a lembrança do sonho – no qual a mãe aparece pela via da denegação – e a função que ele assume nesta análise – de convocação do analista – não sejam respostas ao efeito de sentido provocado pela intervenção do analista.

Lembremos que na função poética o destaque é dado à mensagem por ela própria, enquanto os outros elementos da comunicação tornam-se secundários (JAKOBSON, 1960/2008). Com a redução ao mínimo das funções comunicativas em favor da mensagem, o que temos é a entrada em jogo das combinações de sons, fonemas e escansões para a produção de efeitos de sentido que, no tocante à interpretação, se aproximam mais do chiste que do belo, tendo em vista que o que entra em jogo na função da interpretação é a economia, o gozo que o equívoco significante produz. Neste caso o que temos não está do lado da lógica, embora deva ser abordado pela via da função – função poética –, não está mais articulado ao valor de verdade, mas sim ao valor econômico existente no efeito de sentido. O que uma interpretação pelo equívoco significante gera, o que um chiste produz e que se manifesta pelo riso, é um efeito de sentido. Este efeito de sentido, no que diz respeito ao sintoma, só vale pelo que ele aponta de produção de gozo, na medida em que sua economia funda um valor, valor de uso. Neste horizonte do significante, portanto, o que a interpretação visa não é tanto ao valor de verdade como valor lógico, mas sim ao valor de uso como valor econômico do sintoma. Mas podemos, de todo modo, tomar o valor econômico gerado pelo efeito do sentido como valor de verdade, desde que consideremos que, nesta via, a verdade se especifica em ser poética, e não lógica (LACAN, 1976-77).

Daqui eu tiro, enfim, minha questão: será que devemos tomar a produção do efeito de sentido, considerado por essa via econômica do equívoco, na mesma linha da significação cristalizada que encontramos naquilo que se institui pelo valor de verdade? Estou de acordo com Nominé (2011) quando ele diz que "o campo do sentido e da significação é um campo fundamentalmente instável, em que se pode chapinhar como em areia movediça" (p. 66).

Entendo que ainda temos que articular as relações entre o valor de verdade da significação congelada e o valor de uso do efeito de sentido.

É aí que entra o sintoma como cifra – F(x) –, não como significação cristalizada, mas como o tonel furado – um corpo – necessário para o escoamento do sentido, efeito do sentido, pelo qual uma economia de gozo possível produz uma fixação mínima necessária para se gozar do inconsciente. Em RSI, Lacan (1974-75) articula diretamente o dizer o sintoma à função do sintoma, a se entender pela formulação matemática F(X).

O X aí em questão, como letra, é o meio pelo qual o inconsciente se escreve numa função para fazê-la operar como sintoma. Isso que se traduz por uma letra, precisa, então, da função, do sintoma para que o sentido se capte (Begriff) por escapar (LACAN, 1975/2003). Não se pode gozar do inconsciente senão por meio disso que faz laço: um corpo.

A poesia e o chiste são efeitos de sentido, mas também efeitos de furo. Que os efeitos de sentido se fechem rapidamente, aí está o problema. Não seria, então, a interpretação que equivoca o significante, um ato de abrir o tonel? O que uma análise transmite, assim, articula a inscrição de uma função de gozo com o consentimento da fuga do sentido – os dois horizontes do significante.

 

Referências

JAKOBSON, R. (1960). Linguística e poética. In: Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 2008, pp. 118-162.         [ Links ]

LACAN, J. (1971-72). Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011.         [ Links ]

__________. (1971-72). O Seminário, livro 19: ... ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012.         [ Links ]

__________. (1974). La tercera. In: LACAN, J. Intervenciones y textos 2. Buenos Aires: Manantial, 2007, pp. 73-108.         [ Links ]

__________. O Seminário: RSI. (1974-75): aula de 25 de janeiro de 1975. Inédito.         [ Links ]

__________. (1975). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 550-556.         [ Links ]

__________. O Seminário: L'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre. (1976-77): aula de 18 de abril de 1977. Edição heReSIa (para circulação interna). Inédito.         [ Links ]

NOMINÉ, B. (2011). Luto do sentido? In: Wunsch 11. Boletim Internacional da EPFCL. Outubro de 2011. Disponível em: <http://www.champlacanien.net/public/docu/4/wunsch11.pdf>. Acesso em 28 de janeiro de 2013.         [ Links ]

 

 

Recebido: 30/01/2013
Aprovado: 15/02/2013