SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número26A interpretação como valor de verdade e como função poéticaA operância psicanalítica... ou pior índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Stylus (Rio de Janeiro)

versión impresa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.26 Rio de Janeiro jun. 2013

 

ENSAIOS

 

A moral mundana e os princípios da ética do desejo

 

The mundane morality and the principles of the ethics of desire

 

 

Bárbara Guatimosin

 

 


RESUMO

A partir de uma citação de Lacan em que se questiona a moralidade kantiana via leis e regras universais, e do conto de Kafka Diante da Lei, onde uma lei arbitrária incide apenas sobre uma pessoa, pretende-se deixar clara a diferença na qual se ajuíza a ética da psicanálise que, ao contar com a função do desejo, coloca em questão o lugar e a consistência do Outro, deixado intactos nos dois casos precedentes.

Palavras-chave: Moral, Lei/pai, Ética, Desejo, Outro.


ABSTRACT

From a Lacan's quote in which the Kantian morality via universal laws and rules is questioned, and from Kafka's short story Before the Law, where an arbitrary law falls upon a single individual, the purpose of the work is to make clear the difference in which the ethics of psychoanalysis founds itself, and as it counts on the function of the desire, it questions the Other's place and consistency, left intact in both precedent cases.

Keywords: Morality, Law/father, Ethics, Desire, Other.


 

 

 

 

A moral mundana e os princípios da ética do desejo

"Tinha sido impossível para ele entrar na casa, porque ele tinha ouvido uma voz que lhe dizia: 'Espere até eu te conduzir! assim ele ainda estava deitado na poeira nafrente da casa." Kafka, Diários, 21/10/1921.

A psicanálise é uma ética. Não é possível uma moral receber tratamento. Uma moral se obedece ou não. Na psicanálise trata-se de uma ética, porque trata-se de depurar a causa que orienta as ações do sujeito, guiá-lo para aquilo que pode conduzi-lo.

Será que não é possível que se conceba uma conduta na medida desse verdadeiro estatuto do desejo, e será mesmo possível não nos apercebermos de que nada, nem um passo de nossa conduta ética pode, apesar da aparência, apesar da ladainha secular do moralista, sustentar-se sem uma referência exata da função do desejo? Será possível que nós nos contentemos com exemplos tão derrisórios quanto os de Kant quando, para nos revelar a dimensão irredutível da razão prática, ele nos dá como exemplo, que o homem honesto, mesmo no cúmulo da felicidade, não deixará de ter pelo menos um instante em que ponha em balanço que ele renunciaria àquela felicidade para não lançar contra a inocência um falso testemunho em benefício do tirano? Exemplo absurdo, pois, na época em que vivemos, e também na de Kant, não está a questão em outro ponto? Pois o justo vai balançar, sim, para saber se, para preservar sua família, ele deve ou não lançar um falso testemunho. Mas o que quer isso dizer? Será que quer dizer que, se ele dá chance através disso ao ódio do tirano contra o inocente, ele poderia lançar um testemunho verdadeiro, denunciar seu companheiro como judeu, quando ele o é de fato? Não será aí que começa a dimensão moral, que não é saber qual o dever que temos de cumprir ou não em face da verdade, nem se nossa conduta cai ou não sob o golpe da regra universal, mas se nós devemos satisfazer ou não o desejo do tirano? Aí está a balança ética propriamente falando; e é nesse nível que, sem fazer intervir nenhum dramatismo externo – não precisamos disso – temos também de nos ocupar com aquilo que, no término da análise, fica suspenso ao Outro. É enquanto a medida do desejo inconsciente, no término da análise, fica ainda implicado nesse lugar do Outro que encarnamos como analistas, que Freud, no término de sua obra, pode marcar como irredutível o complexo de castração, como inassumível pelo sujeito (LACAN, 1961-62, lição de 21/03/1962).

Nesse ponto de seus seminários, vemos Lacan se deter em um claro prolongamento de suas críticas à moral kantiana, levantadas por ele anteriormente no Seminário 7 (1960/1988, p. 232), em contraponto com o que entende ser a direção do tratamento em psicanálise. Essas críticas se estenderão ao longo de seu ensino, principalmente em Kant com Sade (1963/1998, pp. 776-777) quando Lacan diz que a Filosofia da Alcova de Sade fornece a verdade da Crítica da Razão, e posteriormente, no final do Seminário 11, no qual, segundo Lacan (1964/1979), a Lei moral kantiana:

não é outra coisa senão o desejo em estado puro, aquele mesmo que termina em sacrifício, propriamente falando, de tudo que é objeto de amor em sua ternura humana. (...) Aí está o exemplo do efeito de abertura dos olhos que a análise permite a tantos esforços, mesmo os mais nobres da ética tradicional (p. 260).

Ao final da citação do Seminário 9, Freud nos é lembrado por nos deixar como testamento, em seu trabalho sobre Análise terminável e interminável, a referência a um ponto de resistência que vigoraria nas análises até então, ponto final suspeito – por ser neurótico – obstáculo feito limite pelo complexo de castração. Mas Lacan lança, nessa longa pergunta clínica, que se estende claramente até a política, um desafio aos analistas no sentido de responder de qual posição se confrontam com o Outro ao final de uma análise. Para Lacan é esse o ponto fundamental que distingue o moralismo, kantiano ou não, da possível ética do desejo. A atitude moral, ao se referenciar no dever para com uma dita verdade ou por se apoiar em "regras universais", pode ser agir "corretamente" ou de acordo com as últimas. Verdades e regras, quando sustentadas por um Outro, mesmo não encarnado, a quem se deve obedecer, desobrigam o sujeito a se ajuizar ante o desejo que lhe dá a medida de sua ação. A pergunta que se precipita ao final do Seminário da Ética, "Agiste conforme o desejo que te habita?", é uma pergunta que convoca a ação do juízo de cada um e desloca o topos de referência a que se deve consultar. Evidentemente, o desejo que habita o sujeito não pode se reduzir a uma vontade que deslizaria de um ponto, onde se satisfaz o Outro, para um segundo, que daria satisfação ao narcisismo do eu. Podemos dizer mais simplesmente que a ética do desejo não serve nem ao Outro nem ao eu, mas serve ao desejo, esse lugar terceiro que se engendra quando a lei da castração, a barra da perda de gozo atinge ambos, o eu e o Outro liberando o caminho. É por isso que a ética do desejo não está apensa nem ao tirano, nem ao súdito, nem à conveniência das regras que possam regê-los. A ética do desejo sustenta a conduta que mantém a "subsistência do sujeito" e a pergunta pelo desejo no ser falante.

Uma questão análoga também pode se extrair da leitura do conto Diante da lei de Franz Kafka (1915/2011, p. 105), que narra o seguinte:

Diante da Lei está um porteiro. Um camponês dele se aproxima e pede para entrar na Lei. Mas o porteiro diz que agora não pode autorizar-lhe a entrada. O camponês pergunta se pode entrar mais tarde. – É possível – diz o porteiro. – Mas agora não.

Uma vez que o homem se inclina a olhar da porta da lei que continua aberta, o porteiro ri e diz: – Se o atrai tanto, tente entrar, apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. E sou apenas o primeiro dos porteiros. De sala para sala, porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a simples visão do terceiro.

O camponês não esperava tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele. No entanto, ao examinar mais de perto o aspecto estrangeiro do porteiro, decide que é melhor aguardar a permissão de entrada. O porteiro lhe dá um banquinho e deixa-o sentar-se ao lado da porta. Ali fica por anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido, e às vezes o porteiro faz ao homem pequenos interrogatórios, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes senhores fazem, concluindo sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem emprega tudo o que tem de valioso para subornar o porteiro. Este sempre aceita tudo, mas dizendo: – Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa.

Durante longos anos o homem observa o porteiro. Esquece os outros e este primeiro guardião parece-lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Amaldiçoa, no início, em voz alta; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga. Torna-se infantil e, por estudar o porteiro anos a fio, conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a elas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião. Finalmente, sua vista enfraquece e em torno fica mais escuro. Reconhece agora no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Com o corpo enrijecido faz um aceno ao porteiro para que se aproxime. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele: – O que é que você ainda quer saber? – pergunta o porteiro. – Você é insaciável.

– Todos aspiram à lei – diz o homem. – Como se explica que em tantos anos ninguém, além de mim, pediu para entrar? O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda alcançar sua audição em declínio ele berra: – Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.1

Essa "história", segundo Modesto Carone (in KAFKA, 2011, p. 103), é o centro nervoso da obra de Kafka e do romance O processo, no qual a lenda surge também em seu penúltimo capítulo. Carone lembra que Walter Benjamin chega a afirmar que a parábola Diante da lei é uma das melhores narrativas curtas da língua alemã.2 Kafka, algo raro, ficou muito satisfeito com a história e desde que a escreveu, a parábola sofreu inúmeras leituras. Levantaremos algumas:

1. Estamos com Kafka, nessa parábola, diante de qual lei? Não parece ser aquela advinda do corte da castração que opera o pai simbólico; não é uma lei separadora, distinta do supereu, que libera o desejo do sujeito, mas está ligada a uma figura parental dominadora que ameaça qualquer desobediência com o pior. A lei com que o homem da história parece se confrontar é a desse pai contaminado pela obscenidade do Outro primitivo, que lhe chega como uma lei arbitrária, caprichosa, que não vale para todos, e o paralisa diante da porta. Como em Kafka a obra dita de ficção e os escritos íntimos estão imbricados, lemos também na Carta ao pai (1919/2004, p. 33) "Vivia sob leis que tinham sido inventadas só para mim". Kafka não conseguia levar adiante nada que não fosse autorizado pelo pai, o que comprometia todo e qualquer ato decisivo em sua vida. Voltando à lenda, o porteiro mantém o sujeito aprisionado na espera sem viabilizar, mas obstaculizando a entrada e, apesar de aceitar os subornos do homem, nada de valioso é suficiente, sendo ainda preciso que o camponês ouça: "Você é insaciável". Ficar diante dessa lei é ficar diante do porteiro, ou seja, submeter-se à lei absoluta do Outro. O homem responde aqui com a mais completa alienação.

2. Agamben (1995/2002) tem em Kafka um aliado para pensar o "estado de exceção" e as saídas possíveis. Agamben lerá a parábola3 Diante da lei, não como um fracasso do camponês em aí se fazer admitir, mas como uma bem-sucedida estratégia em fazer essa porta, sempre aberta e muito suspeita, se fechar ao final. Fica-se então diante da lei, até que por fim sua porta se feche, mesmo que isso custe toda uma vida. Este desfecho, fechar a porta que encarcera do lado de fora, que aprisiona no aberto do nada, recusar a Lei insensata, do primeiro porteiro fazer o último, pode ser uma resposta ao estado de exceção que é a pura vigência de uma lei sem significado. (Uma lei que vale só para um, se encontra com a voz que enuncia o que vale para todos em uma máxima da razão ou da vontade, como Lacan (1963/1998, pp. 777-778) lerá o imperativo categórico em Kant com Sade.) Essa resposta que emprega a vida para fechar a porta é o exercício do desejo puro de morte, desejo que também move Antígona diante da Lei de Creonte. Perante a ordem incondicional, temos aí a solução trágica.

O título Diante da lei por si só detona um processo, um julgamento. A "lenda do porteiro", tão cara a Kafka, é alegórica do que está no cerne de toda a sua vida escrita: um mundo sem saída. Da forma como a parábola é narrada, de imediato temos uma condição que força existir para a lei, que deveria estar aberta a todos, uma entrada, uma porta. Existe o camponês e um porteiro que determina a entrada na lei. São dois personagens em mundos diferentes. A lei não se aplica a ambos, que não estão igualmente sob sua égide. Um envelhece; o outro, não. É por isso que o camponês jamais poderá se autorizar na lei e ficará eternamente diante desse Outro, pedindo reconhecimento, barganhando por seus favores, para toda e qualquer autorização, até que a morte encerre a questão. É essa diferença de condições em relação à castração que faz com que o sujeito divinize o outro ou que o suponha como sabedor da boa hora. Fica-se assim diante da ameaça de castração ou da castração que ameaça: impasse freudiano. É por isso que Lacan (1969/2008), no Seminário 16, pode dizer que não há ateísmo, e nem castração efetiva que se sustente na suposição de saber. "Um verdadeiro ateísmo, o único que mereceria esse nome, é o que resultaria do questionamento do Sujeito suposto Saber." (p. 273).

Reconsiderando a questão que o conto nos traz, Agamben (2009, p. 56) curva seu pensamento para constatar mais recentemente que a lei, em si mesma, não é injusta; o problema não estaria na lei, mas em seu guardião. Por isso é preciso no conto entregar-se "ao longo estudo do porteiro", para viver até o fim de seus dias, como ocorre na lenda, e não morrer como Josef K. n'O processo.

Mas esse "estudo" pode se tornar apenas uma acomodação burocrática. Seguindo as trilhas de Benjamin (1934/1994), vemos que faz nesse "estudo" uma ressalva importante, comentando Bucéfalo, outro conto de Kafka: "A porta da justiça é o estudo. Mas Kafka não se atreve associar a esse estudo as promessas que a tradição associa no estudo da Torá (...) seus estudantes são discípulos que perderam a escrita" (p. 164).

Sabemos que, nesse "estudo do porteiro", pode-se filosofar até a morte. Já a análise do Outro, que o processo psicanalítico perfaz desde cada sujeito, acarreta a deflação de sua consistência, a queda dessa Lei soberana, pois quem se autoriza por si e por alguns outros já se encontra, nem dentro nem fora da lei, mas na ética do desejo em exercício, que permite em vida, o ato singular do sujeito. Diante dessa ética, a moralidade e a lenda (ou a moral da história) perdem o sentido ou não se aplicam. Delas só restam letras, ou resta o sentido literário.

 

 

Referências

AGAMBEN, Giorgio. (1995). Homo Sacer I – O poder soberano e a vida nua. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, 207p.

__________________. Nudités. Tradução Martin Rueff. Paris: Editions Payot & Rivages, 2009, 208p.         [ Links ]

BENJAMIN, Walter. (1934). Franz Kafka – A propósito do décimo aniversário de sua morte. In: Magia e Técnica, Arte e Política – Obras escolhidas v. 1 – Tradução Sérgio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 137-164.

_________________. (1938). Carta de Walter Benjamin a Gerschom Sholem. (tradução e nota: Modesto Carone). In: Novos Estudos, n. 35. São Paulo: Cebrap, março/1993, pp. 100-106.         [ Links ]

KAFKA, Franz. (1915). Diante da lei. In: Franz Kafka Essencial. Seleção, tradução e introdução: Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, pp. 101-107.         [ Links ]

_____________. (1919). Carta ao pai. Tradução e notas: Marcelo Backes. Porto Alegre, L&PM Editores, 2004, 108p.         [ Links ]

_____________. Diarios: (1910-1923). Tradução J. R. Wilcock. Buenos Aires: Emecé, 1953, 508p.         [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960). Versão Brasileira Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1988, 396p.         [ Links ]

_____________. O seminário, livro 9: A identificação (1961-1962). Inédito. Versões consultadas em francês e em português.         [ Links ]

_____________. (1963). Kant com Sade. In: Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 776-803.         [ Links ]

_____________. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964). Tradução M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, 269p.         [ Links ]

_____________. O seminário, livro 16: De um Outro a outro. (1968-1969). Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2008, 412p.         [ Links ]

 

 

Recebido: 07/02/2013
Aprovado: 28/02/2013

 

 

1 Resumo do Conto Diante da lei (KAFKA, 1915/2011, pp. 105-107).
2 Prólogo à Carta de Walter Benjamin a Gershom Scholem (BENJAMIN, 1993, p. 100).
3 Principalmente no cap. IV, Agamben discute algumas outras interpretações da lenda, fazendo todavia, a sua leitura.