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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.26 Rio de Janeiro jun. 2013

 

ENSAIOS

 

Uma resposta com base em evidências

 

A response based on evidence

 

 

Leonardo Rodriguez

 

 


RESUMO

A ideologia da prática "baseada em evidências", produto derivado da aplicação tendenciosa e economicamente orientada do discurso da ciência e da tecnologia, conseguiu excluir a psicanálise dos programas e serviços públicos de saúde mental, além de minar o status cultural da psicanálise com o público em geral: isso tem acontecido em um grande número de países já por algum tempo. Não faria o menor sentido responder a esta profunda depreciação da psicanálise nos termos adotados por tal ideologia. É muito mais proveitoso oferecer aos nossos colegas cidadãos as evidências apresentadas sem motivos outros por meio de nossa experiência. Como Freud argumentou há mais de um século na sua definição da psicanálise, nossa experiência diz respeito a fenômenos e eventos humanos que nenhuma outra disciplina, científica ou não, é capaz de investigar devidamente, quanto mais lidar com tal questão em qualquer grau de eficácia. A resposta analítica, portanto, tem se tornado um bem cultural que pode ser empregado muito eficientemente para se compreender e tratar os efeitos institucionais e sociais do mal de nossa civilização, e não apenas como um método de tratamento para aqueles indivíduos que procuram por nossa ajuda. Além disso, é pela análise do sofrimento íntimo de seres falantes individuais que a experiência psicanalítica traz à tona os descontentamentos de nossas sociedades, tal qual uma norma mascarada por formas sedutoras de prazer facilitadas pelos avanços tecnológicos.

Palavras-chave: Discurso analítico, Eficácia clínica, Prática baseada em evidências, Criação de Freud, Psicanálise lacaniana.


ABSTRACT

The ideology of "evidence-based" practice, a derivative of an economically-driven, tendentious application of the discourse of science and technology, has managed to exclude psychoanalysis from publicly-funded mental health programs and services and to undermine the cultural status of psychoanalysis among the general public: this has been happening in a good number of countries for some time now. It would be futile to respond to this severe depreciation of psychoanalysis in the terms dictated by such ideology. It is more fertile to offer our fellow citizens the evidence provided without ulterior motives by our experience. As Freud indicated nearly a century ago in his definition of psychoanalysis, our experience concerns human phenomena and events that no other discipline, scientific or not, is capable of investigating properly, let alone dealing with it with any degree of efficacy. The analytic response has thus become a cultural asset that may well be employed to understand and treat the institutional and social effects of the malaise of our civilization, and not only a method of treatment for the individuals who come for our assistance. Yet it is through the analysis of the intimate suffering of individual speaking beings that the psychoanalytic experience throws light upon the discontents of our societies, as a rule masked by the seductive forms of jouissance that technological advances facilitate.

Keywords: Analytic discourse, Clinical efficacy, Evidence-based practice, Freud's creation, Lacanian psychoanalysis.


 

 

Por mais de um quarto de século, autoridades governamentais e acadêmicas têm exigido dos profissionais que trabalham no campo da chamada saúde mental que conduzam seu trabalho de acordo com um conhecimento baseado em evidências. O estudo de práticas baseadas em evidências na provisão de serviços de saúde tornou-se, por si só, uma disciplina; e esforços consideráveis têm sido perpetrados por entidades e instituições profissionais que administram a saúde pública (incluindo a Organização Mundial da Saúde) no sentido de estabelecer tal prática como "o" modelo a ser seguido. O debate sobre evidências em práticas clínicas está muito longe de ser algo puramente acadêmico. Há inúmeros e importantes interesses em jogo: a alocação de fundos está restrita a formas de tratamento fadadas a serem norteadas por princípios científicos e avaliadas de acordo com modelo baseado em evidências. Consequentemente, as oportunidades para treinamento e empregabilidade em instituições de saúde mental dependem da filiação a escolas que favorecem tal modelo. Não faz muito tempo que na Austrália e em outros países as instituições públicas responsáveis pela saúde mental ofereciam tratamento psicanalítico, mesmo em escala modesta. Desde que nossas autoridades decidiram que a psicanálise não preenche os pré-requisitos do modelo, a prática clínica psicanalítica em instituições públicas diminuiu sobremaneira, quase ao ponto de extinção, cedendo espaço para aquelas práticas tidas como mais eficientes. Como psicanalistas e membros de uma escola de psicanálise com responsabilidades sociais, temos o dever de discutir tal situação.

Seria inútil, mais uma vez, embarcar na defesa da psicanálise ou igualmente em outro ataque à criação de Freud ou à sua pessoa. É muito mais produtivo fazermos da necessidade uma virtude e assumir os problemas no tocante à evidência na psicanálise. Isto porque a evidência é um problema não apenas para a psicanálise, mas também para outras disciplinas e práticas. Não somos obrigados a lidar com o problema nos termos defendidos por aqueles que advogam a prática baseada em evidências – longe disso. Trata-se mais de uma questão de dignificar a noção específica de evidência, submetendo-a a uma crítica racional, e mais especificamente, as provas da evidência. Outros antes de nós, a começar pelo próprio Freud, tinham consciência do fato de que na experiência psicanalítica, por razões conceituais, clínicas e éticas, precisamos encarar a questão da evidência.

Alguns psicanalistas adeptos a orientações diferentes da nossa têm adotado a linguagem e os critérios da ideologia baseada em evidências. Refiro-me, especificamente, a um livro que se tornou referência nos países de língua inglesa, O que funciona para quem? (What Works for Whom?), de Anthony Roth e Peter Fonagy (2005). A questão não é de todo impertinente: muitos dos pacientes que chegam aos nossos consultórios, em especial aqueles que não têm qualquer familiaridade com a psicanálise, perguntam se o tratamento que eu ofereço irá servir para eles, ou quão eficiente é a psicanálise quando comparada com outros métodos. São questões razoáveis para as quais o psicanalista precisa ter as respostas.

O vocábulo evidência vem do latim videre, "ver"; literalmente, "enxergar". É preciso ver para crer: esta é a noção por trás da questão da evidência na ciência. De acordo com Willard Quine, esta é a regra da epistemologia empirista: não existe nada na mente que não possa passar pelos sentidos. Segundo Quine (1990, p. 19), "o ponto é normativo, nos prevenindo contra telepatas e videntes". Mas não somos obrigados a compreender o termo e usá-lo segundo a concepção de um empirismo ingênuo. A forma como a evidência é definida e a sua função na produção de conhecimento são problemas epistemológicos fundamentais que poderiam nos ocupar por algum tempo (que não dispomos no momento). É suficiente dizer que, desde que a razão mudou a partir de Freud, nós podemos legitimamente afirmar algumas coisas sobre evidência na experiência psicanalítica e – por que não? – sobre evidência em geral com base naquilo que a experiência tem demonstrado.

A avaliação dos tratamentos a partir do paradigma com base em evidências tem sido predominantemente orientada por critérios adotados pelo Instituto Americano de Medicina (American Institute of Medicine) e Associação Psicológica Americana (American Psychological Association), as quais definem a prática com base em evidências, como "a integração da melhor pesquisa disponível com a expertise clínica no contexto de características, cultura e preferências do paciente" (Australian Psychological Society, 2005). A forma de verificar se uma prática baseia- se em evidências válidas é o método experimental, e a modalidade preferida são as "tentativas de controle randomizadas" (randomised control trials), uma vez que estas oferecem a melhor garantia possível contra a intervenção no tratamento dos chamados "fatores comuns", isto é, os fatores que, dentro de uma perspectiva psicanalítica, estariam subordinados à relação de transferência (JACKSON, 2005). Qualquer traço de manifestações subjetivas, tomado como interferência indesejável, seria, portanto, descartado. Se alguém decidisse testar a psicanálise usando este modelo, teria que planejar um experimento muito particular no qual o paciente não pudesse saber que está sendo tratado psicanaliticamente; e o analista saberia apenas que o paciente sofre de um sintoma ou problema definido – como (a chamada) co-morbidade é considerada um sério problema metodológico que tende invalidar até mesmo as melhores situações experimentais. Trata-se apenas de encontrar voluntários para o experimento que sofrem de um problema, e um problema apenas. O fantástico é que as evidências recolhidas sob essas condições absurdas seriam consideradas sólidas pelos representantes da Ciência nos serviços de saúde mental.

O trabalho de Roth e Fonagy é uma revisão da pesquisa conduzida para avaliar essas formas de tratamento que podem se acomodar às provas requeridas pelo modelo baseado em evidências. Os autores estão plenamente conscientes dos problemas metodológicos envolvidos, das limitações do paradigma, e acatam a noção de que a forma de tratamento não deveria ser considerada não efetiva uma vez que ela não foi testada de acordo com o modelo. Entretanto, historicamente, isso parece ser um outro caso de o opcional e voluntário tornar-se obrigatório e mandatório: decisões políticas, acadêmicas e financeiras estão sendo gestadas com base nas "demonstradas" eficácia e eficiência do tratamento – as quais, simplesmente, excluem a psicanálise.

Roth e Fonagy intitularam o seu livro O que funciona para quem? (What Works for Whom?). Isto é baseado no princípio de que "cada caso é um caso" e os tratamentos deveriam ser específicos e corresponder estritamente às condições que estão sendo tratadas. Se temos uma dor de cabeça, tomamos uma aspirina: ninguém nos prescreve, nesse caso, uma terapia eletro-convulsiva, a qual, certamente, é indicada para outra condição. A medicina funciona assim, mas mesmo na medicina, reconhece-se que os efeitos terapêuticos de agentes farmacológicos são raramente específicos, e que a co-morbidade é mais a regra do que a exceção.

"O que funciona para quem?" não foi exatamente o questionamento de Freud, simplesmente porque ele não detinha um repertório de tratamentos dos quais poderia dispor: ele teve que inventar um tratamento que funcionasse. Para quem? Para os histéricos, inicialmente. Antes de Freud, os histéricos eram um mistério, uma vez que a ciência positivista, por meio da atividade da moderna medicina, empolgante e em rápido desenvolvimento, recusava-se (com algumas notáveis exceções) a reconhecê-los como verdadeiros objetos epistemológicos de pesquisa séria. Eles foram excluídos como objetos de investigação científica e como pacientes em práticas clínicas com base nas evidências disponíveis. Evidências são evidências apenas para aqueles que querem dar uma olhada nelas, e isso depende do desejo daqueles que olham e da metodologia por meio da qual implementam tal desejo no campo do questionamento e da prática. Sem o desejo – em nosso caso, o desejo do analista – as evidências desaparecem.

Há evidências que a psicanálise resgatou do ostracismo e das trevas do misterioso que um dia os histéricos encarnavam: evidência da existência do inconsciente e suas formações, evidência do real como sendo ao mesmo tempo sua condição e seus efeitos, e de um discurso psicanalítico eficaz em elucidá-los e neles atuar.

Freud estudou as evidências que estavam à sua disposição e de outros médicos que, naquele tempo, entravam em contato como os histéricos – como Charcot, que avançou bastante nos seus estudos, mas não inventou a psicanálise. Freud teve que superar nele mesmo os obstáculos epistemológicos que seus antecessores enfrentaram e não foram capazes de suplantar. Ele estudou o que os histéricos apresentavam como fatos clínicos, mas também, por meio da criação de um novo discurso, expandiu o campo destes fatos de uma maneira revolucionária. Freud, efetivamente, tornou possível obterem-se evidências novas e sem precedentes. A experiência na qual tais evidências emergiram não foi um experimento, mesmo que assim o parecesse – uma vez que havia hipóteses a serem testadas dentro de uma situação clínica relativamente bem controlada.

O que é evidente é evidente apenas para alguém: o sujeito da evidência. Bem, na psicanálise, o suposto sujeito da evidência é questionado: é isso que distingue nosso discurso e o fazer do analista por ele responsável. Isto quer dizer também que as evidências acumuladas em cento e vinte anos de psicanálise não serão suficientes como uma resposta para o ser humano que faz a seguinte questão: "Será que a psicanálise vai funcionar para mim?". A psicanálise dele irá produzir as evidências e nenhuma garantia pode ser dada de antemão de que vai funcionar para ele, se funcionar. Ninguém, até o momento, encontrou uma fórmula que garanta que uma psicanálise em particular será eficaz. Nossa ética nos separa do clínico, cuja prática baseia-se supostamente em evidências e que pensa que sabe quais serão os resultados da experiência.

Apesar disso, os cento e vinte anos de psicanálise não contam em nada na tarefa de fornecer as evidências que o cidadão honesto exige de nós. Graças àquela experiência, além do trabalho ali dedicado, cada um de nós deve ter acesso ao desejo do analista, o desejo que Jacques Lacan certa vez chamou de averti: um desejo informando, experimentado, alerta, o horror do administrador de saúde que prefere que ninguém mencione as evidências da existência de seres falantes desejosos.

O próprio Freud foi o primeiro a questionar as indicações e contraindicações da psicanálise. Ele estava convencido de que a análise não é para qualquer um, e que é desejável, positivamente, excluir certos sujeitos, enquanto para outros ela pode ser seguramente recomendada. Bem, apenas o risco e a beleza, ou seja, as evidências da experiência real podem convencer ambos, paciente e analista, da eficácia da psicanálise, um dos poucos discursos, como afirmou Lacan, que permanecem a nosso inteiro dispor (LACAN, 1974, p. 518).

 

Tradução: Sávio Siqueira

Revisão: Conrado Ramos e Ida Freitas

 

Referências

AUSTRALIAN PSYCHOLOGICAL SOCIETY. InPsych, 27: 6, p. 20, dez. 2005.         [ Links ]

JACKSON, H. A description and case for evidence-based praxis in psychology. InPsych, 27: 6, pp. 14-19, dez. 2005.         [ Links ]

LACAN, J. (1974). Télévision. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 518.         [ Links ]

QUINE, W. V. Pursuit of Truth. Cambridge, Massachusetts and London, England: Harvard University Press, p. 19, 1990.         [ Links ]

ROTH, A., FONAGY, P. What works for whom? A critical review of psychotherapy research. New York: Guilford Press, 2005.         [ Links ]

 

 

Recebido: 21/01/2013
Aprovado: 18/02/2013