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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.26 Rio de Janeiro jun. 2013

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

O conhecimento do sintoma e as opções no fim da análise

 

The awareness of the symptom and the options at the end of the analysis

 

 

Gabriel Lombardi

 

 


RESUMO

O autor parte de uma discussão da experiência do passe para se perguntar sobre o que possibilita ao analisando fazer uma escolha no final de análise. Em contraponto, apresenta o sintoma no início da análise como aquilo que denuncia no neurótico a impossibilidade de fazer escolha: o sintoma é o conflito que está no lugar de uma escolha. A experiência da análise vai consistir então em fazer o sintoma falar, denunciando sua verdade mentirosa, seu gozo dividido. A interpretação analítica é liberadora, pois opera sobre a divisão do sujeito, permitindo um outro estilo de satisfação que não a divisão. O sintoma, através da interpretação, é levado até o ponto de um impossível de decompor que vai restar para o sujeito a título de saber fazer. Para exemplificar esse saber fazer o autor retoma a experiência da criação artística e algumas coordenadas do final de análise extraídas do relato de um analista da escola.

Palavras-chave: Passe, Sintoma, Interpretação.


ABSTRACT

The author departs from a discussion about the experience of the pass to question what enables the analyzed to make a choice at the end of the analysis. In contrast, he presents the symptom at the beginning of the analysis as the aspect which shows in the neurotic the impossibility of making this choice: the symptom is the conflict that takes the place of a choice. The experience of the analysis will then consist in making the symptom talk, denouncing its lying truth, its divided jouissance. The analytical interpretation is liberating, once it operates on the division of the subject, permitting another style of satisfaction other than the division. The symptom, through interpretation, is taken to the point of an impossible ability to decompose, which will remain to the individual as a know how. To exemplify this know how, the author revisits the experience of an artistic creation and some coordinates of the end of the analysis that were extracted from the narrative of a school analyst.

Keywords: Pass, Symptom, Interpretation.


 

 

Quero compartilhar com os senhores algumas impressões de natureza histórica. Poderiam ser diferenciadas três etapas na história das instituições dedicadas à formação dos analistas. A primeira começa com a IPA e se caracteriza por uma total desconexão epistêmica entre os resultados das análises e o acesso à posição do analista. O que se avalia na IPA são os efeitos terapêuticos. Ainda que tenha havido intenção de estudar "o que se seguiu", o período que eles chamam "pós-analítico", isso não foi muito longe: estudos estatísticos sobre a estabilidade dos resultados terapêuticos, algumas generalidades sobre a função autoanalítica do eu no analisado.1

Com o dispositivo do passe, começa outra etapa, a que se chamaria didática, por haver acentuado as consequências didáticas do tratamento. O termo "consequências" é aqui apropriado, já que se reforçou uma concepção um pouco mecânica da psicanálise, sugerindo que uma análise concluída, levada até o fim, produziria necessariamente um analista. As outras análises, pelo contrário, terminam prematuramente, não tendo sido levadas as coisas até o final, e então os analisados se dedicam a outra coisa – e, talvez, fosse realmente melhor que se dedicassem a outra coisa. Neste segundo paradigma, a psicanálise, essencialmente didática, é concebida como uma máquina de transformar neuróticos em analistas. Isso, em minha opinião, mostra que o ato psicanalítico, ainda processado no dispositivo do passe, pode ser maciçamente desmentido: neste caso, reduzindo o passe à verificação de que a análise levou o passante a alcançar coordenadas já previstas, que figuram nos manuais da instituição, onde a máxima realização possível é converter-se em analista.

Creio que a partir de uma experiência mais séria, serial e também responsável do passe, com o apoio da leitura da Nota aos italianos (LACAN, 1973/2003) e do Prefácio de 1976, de Lacan (1976/2003), estamos começando uma terceira etapa, interrogando-nos não apenas sobre os limites estruturais das análises e suas consequências mecânicas, mas também sobre as escolhas (choix, choices, elecciones) que o final promove. Essas opções podem ser de índole muito diferente, inclusive se todas elas produzem a satisfação do término da obra desconstrutiva da verdade mentirosa. Porque esse satis (o termo francês assez deriva do latino ad satis) só é alcançado na decisão de terminar um processo que, por sua própria estrutura, tende a adiar a decisão para tomá-la com melhor conhecimento de causa, como bem explicou Freud. Mas, uma vez realizada, como toda decisão autêntica, basta-se a si mesma em sua autossuficiência de ato, e logo pode dar ou não explicações e, em geral, não as dá.

Os efeitos didáticos da análise, em muitos casos, outorgam a aptidão de analista, segundo dizia Freud; mas isso não quer dizer que esta seja uma escolha forçada, que a própria análise force a passagem da aptidão à atitude de analista, ao desejo do analista, realizado no encontro com outro sujeito. A escolha de analista não deve, não pode ser uma escolha forçada, mas separada, nas ressonâncias últimas deste término que fez vibrar Colette Soler.

Chamaria simplesmente a esta terceira fase de nossa experiência institucional de etapa analítica, diferenciada agora da didática, para evitar prejulgar os fins; é uma analítica sem psico-, psych-, psycho-, segundo propõe Lacan em 1976. Suficiente para ser heureux, que não é ser feliz, mas "achador", aproveitar a oportunidade do dado que não costuma se apresentar no tempo previsto. A análise faz prevalecer, sobre a rigidez defensiva do psíquico, as chances do tíquico, do que se encontra na junção do gozo com o desejo do Outro.

A distância (écart) entre consequências e sequências marca uma diferença conceitual decisiva, que permite uma interrogação de nossa experiência à altura da "Proposição" de Lacan (1967/2003), na qual o dispositivo do passe é proposto para lançar luz sobre esse momento eletivo, esse passe de analisante para analista, que não pode ser meramente efeito do ato de outro. Pode haver análise, mas, quanto a ser analista, não há qualquer possibilidade, ele escreveu na Nota aos italianos; não há uma consequência real, disse também em 8 de março de 1977 (LACAN, 1976-77). Ser analista não é uma consequência, é uma escolha: de desejo, de condição pulsional, de vida, também de emprego, não há por que negar esse fato.

A partir dessa perspectiva, quero debruçar-me sobre a curiosa natureza do sintoma, que resiste, que se nega à escolha, a qual denuncia como forçada, que se afirma na excisão como na escolha, e isso até terminar… com a análise.

 

O conhecimento do sintoma

O que é sintoma em psicanálise? É o conflito que está no lugar de uma escolha. É o sim e o não simultâneos da histérica, que sobe a saia com uma mão e desce com a outra. É o sim, não alternante do obsessivo, que joga a pedra e logo a recolhe, anulando seu ato lapidar. É a divisão angustiante do perverso, quando vive a urgência de um desejo que não se satisfaz com performances de fantasia. É também, embora muito diferente, a dissociação do psicótico, que testemunha suas vivências de passividade enquanto silencia sua participação ativa em uma realidade em que seu parceiro não é apenas seu perseguidor, mas também seu cúmplice – Lacan dedicava suas apresentações de doente a dialogar com o doente sobre este ponto, o de sua divisão subjetiva não delineada por dissociação.

O sintoma é o que o analista encontra como ser do sujeito: divisão, em vez de decisão; extravio moral, em vez de integridade. Daí que unicamente chamamos de sintoma a uma afecção do ser eticamente hábil. E, por isso, o sintoma é "o analisável", já que o método freudiano consiste em restituir as coordenadas, as referências, as alternativas de uma decisão pendente, que divide nossa existência em partes irreconciliáveis.

Além disso, em psicanálise, se admitirmos que esse ser eticamente hábil conhece de si no sintoma, aceitamos que ele o experimenta, enquanto nós, do lado de fora, não o percebemos senão por meio de seu precário testemunho. Nós nos abstemos de dizer sobre a histérica o que diz o médico: "não tem nada". E nos abstemos também de falar do louco com base na posição do psiquiatra, que busca automatismos, efeitos de alguma desordem orgânica, tóxica, neuroquímica, ou psíquica, efeitos de alguma causa ou de nenhuma causa, porém, em qualquer caso, tratável a partir do exterior. Se acreditarmos no que afirma Lacan (1950/1998) em seu texto sobre A causalidade psíquica, não é o automatismo senão "uma obscura decisão do ser", o que determina a posição do louco.

É nesse contexto de interrogação da causalidade no nível das escolhas do ser falante que vemos surgir, na pena de Lacan, uma definição de sintoma ao mesmo tempo precisa e elástica, válida para o sintoma em todos os seus estados e em todos os tipos clínicos: "é o que o sujeito conhece de si, sem se reconhecer nisso" (1950/1998, p, 166). Divisão subjetiva, então, como sempre que falarmos de sintoma no sentido analítico do termo. Se o sujeito não atenta para sua divisão, talvez devêssemos, então, falar de inibição e não de sintoma. Se o sujeito está na iminência de uma decisão, na certeza, pronto para a passagem da passividade à atividade, falamos de angústia, não de sintoma. Se o sujeito não está dividido, mas destituído, por estar inteiramente entregue a uma atividade satisfatória, isso tampouco é sintoma, é ato sem rodeios [ambages] – há mais formas de ser para o falasser do que o ser sujeito.

A conjugação dos termos sintoma e conhecimento, que Lacan (1976-77) reproduz no Seminário L'insu,2 não é novidade, já está em sua obra em 1950; e antes ainda, no capítulo III de Inibição, sintoma e angústia (FREUD, 1926/1996), onde a encontramos sob a metáfora do sintoma como corpo estranho, no qual o sujeito não reconhece algo de que, contudo, tem a certeza de que está nele. O termo "conhecimento" é um daqueles que Lacan tratou de evitar e até chegou a repudiar explicitamente. Quando, em 1975, define a clínica psicanalítica como o real impossível de suportar, acrescenta a cláusula: "tornando-se um dever repudiar tudo o que implica a ideia de conhecimento", com o argumento de que a psicanálise toma o sujeito do saber, não o do conhecimento bíblico nem o do conhecimento ancestral.

Entretanto, Lacan não pôde evitar de falar do conhecimento do sintoma, precisamente no ponto em que fracassa o conhecimento da mulher pelo homem, e também fracassa o saber, que fragmenta, que esquarteja, cartesianamente, os corpos, terminando com toda possibilidade de se aproximar da pergunta sobre a relação sexual entre os corpos falantes. Para seguir com a psicanálise, teve de se afastar da ciência e regressar ao nó de quatro, de cinco…

A relação entre sintoma e conhecimento costuma ser algo complicado, porque o sintoma, além disso, se satisfaz em ser desconhecido. Costuma enfeitar-se e manter-se camuflado mediante outras duas formas acessórias de "conhecimento", ambas mencionadas por Lacan (1976-77) na mesma aula de novembro de 1976: o narcisismo secundário, que extrai do sintoma um benefício ególatra; e a fantasia, que dá uma espécie de sentido ao sintoma, permitindo sentir que "vale a pena"; sentido econômico, educativo, sacrificial ou masoquista. Ambos os "conhecimentos" acessórios permitem eliminar a divisão, no primeiro caso, por integração do corpo estranho no eu; no segundo, por transformação da divisão subjetiva em desvanecimento, fading, corte do sujeito ($).

Esses acessórios estabilizam o aspecto satisfatório do sintoma. "O sintoma é gozo, não esqueçam", dizia Lacan (1962-63/2005, p. 140) em A angústia; é gozo que não pede interpretação, diferentemente do acting out. De todo modo, o sujeito-sintoma constitui o núcleo das opções pendentes do falasser, e no final da análise se revelará, sem os véus, que o narcisismo e a fantasia estendem sobre ele, como conhecimento da divisão. Um gozo partido.

 

O sintoma é o verdadeiramente real

Como é que o sintoma, que não pede interpretação, se engata no trabalho analítico? Como tentar o sintoma com a verdade? Como morder o anzol, até o ponto de fazer do sujeito realmente dividido um real "de verdade"? O ardil freudiano, bem explícito em seus históricos clínicos, consiste em tentar o sintoma com a verdade como causa material, animá-lo a mostrar sua estrutura, seu real dividido, seu gozo torturado, sua in-satisfação radical, falando de outra coisa, os pais etc.

A resposta é, então, a interpretação, o significante que diz outra coisa, a verdade operando como causa material com a qual o sintoma se identifica à sua maneira: mentindo, em perfeita (in)coerência com o que ele é, essa contradição vivente a que chamamos sujeito. A verdade do sintoma é que nele o real diz mentindo. Envolve o parceiro por meio da mentira, que é o realmente simbólico (LACAN, 1976-77, aula de 15 de março de 1977), o que vem no lugar da cópula que não há entre os corpos sexuados. O sintoma no sentido analítico do termo é o analisável nas neuroses, nas perversões e nas psicoses (LACAN, 1958/1998, p. 692), esses tipos de sintoma em que o real se inscreve mentindo ao parceiro, insiste Lacan (1974/2003, p. 515).

Pois bem, à interpretação oportuna de sua divisão, o sintoma responde lealmente, desprendendo-se, progressiva ou abruptamente, de cada uma de suas duas coberturas imaginárias, para ir assumindo essa forma paradoxal que toma durante a análise, o atuar dividido da transferência. O agieren [fazer] transferencial é paixão do que o sujeito conhece a seu pesar, mas é também re-petição que, ainda que se pareça automática, é com-pulsiva. O sintoma de transferência é resistência e, ao mesmo tempo, motor, é passividade e atividade simultâneas; é diátese partida, mas não voz média – que seria o caso do ato, de dizer, o loquor latino.

O ardil freudiano, bem explícito em seus históricos clínicos, consiste em tentar o sintoma com a verdade como causa, animá-lo a mostrar seu real dividido, seu gozo torturado, sua in-satisfação radical, cuja direção coincide com o fim lacaniano da análise (LACAN, 1976-77, aula de 16 de novembro de 1976).

Como a psicanálise é coisa séria, também nós podemos fazer um uso mentiroso da verdade; a estafa epistêmica é cômoda, é tentadora. Por isso, em uma Escola de psicanálise, não devemos esquecer que a diferença entre ciência e psicanálise reside em um emprego diferente da verdade. A ciência usa a verdade como causa e logo a forclui.3 A psicanálise toma a verdade como causa material, e, de fato, da queixa toma somente a verdade.4 Por isso, Lacan (1976/2003), no Prefácio de 1976, exige fazer o contrário do que faz a ciência, pede uma hystorização da verdade mentirosa que interveio na heurística, no tempo em que fez falta ao passante para chegar à oportunidade de sua autorização como analista. Foi graças aos espelhismos da verdade que pôde continuar o caminho da análise, até encontrar as coordenadas da decisão de saída.

 

O sintoma é real

Voltemos ao real do sintoma, ao sintoma que vem do real. Qual é, então, seu real? Lacan o explica apelando para o real etimológico depositado na lalangue francesa e também nas outras quatro línguas oficiais de nossa Escola: é o real do reus, do culpável, do que, para conhecer, deve escindir-se, porque o que ele conhece não é reconhecível nem por ele mesmo nem pelo Outro. Como opera uma interpretação propriamente analítica, isto é, liberadora? Quando incide no real mentiroso, quando faz alvo no ser eletivo; quando opera sobre esse real do reus que é sua divisão. A interpretação apaga um sintoma se permite decidir uma ação, outro estilo de satisfação que não a divisão. Embora o sintoma se desdobre na análise e resista, e particularmente sob o atuar contraditório da transferência, a interpretação, desde a origem dos tempos, aponta para alcançar uma integridade na ação, para dissolver o saber, para tornar viável o real sem regra do ser eletivo, um real tíquico, alheio ao psíquico.

O sintoma, o real do reus, é a divisão que assume o falasser ao se fazer sujeito dividido, culpável de ser eletivo e não estar à altura de sê-lo. A análise vai contra o sintoma, incitando o reus a escolher alguma opção castradora, que o separe de si, que se satisfaça na parte compartilhável da libido. Esse chamado é o desejo do analista, que, sem dúvida, se apoia em alguma satisfação sublimatória, talvez na satisfação do bem-dizer, no diálogo analítico entre o sintoma mentiroso e o intérprete sem manual.

De todo modo, incluindo os testemunhos de analisados que dizem eleger a atividade de analista, costumam mostrar que fica um resto sintomático, um leîmma entre parte e todo, ou em excesso a respeito do todo, que permite oportunamente conectar com o Outro, sintomaticamente… Por isso, a psicanálise, inclusive a lacaniana, que se propôs a fazer seu o sujeito da ciência e repudiar tudo que implique a ideia de conhecimento, para tratar o reus, deve admitir regressar, como ele, ao tempo anterior ao do saber, àquele momento, este momento, o que se repete entre paraíso e queda, quando o reus prefere a fruição sem sair do programa de Deus.

Daí deduzimos que nem tudo pode ser sublimado, nossos desejos e nossos gozos não terminam por se satisfazer em atos, o sintoma permanece. Admitir esse conhecimento é o fim da análise, assegura Lacan, desculpando-se, porque isso não leva muito longe, e por haver colocado seus seguidores nos apuros que isso implica, não se sabe bem com que resultados.

O ateísmo necessário para sair, deveras, talvez não seja realizável; o que fazer, então, com o saldo irresolvido de nossos Wunsch? Lacan (1976-77) nos lança uma corda em sua aula de 16 de novembro de 1976, perguntando em que consiste este rastreio, que é a análise, para responder, e radicalmente, por fora dos ideais: "identificar-se com o sintoma tomando suas precauções, suas garantias, uma espécie de distância". Ali está o fim da análise, nessa precaução, nessa espécie de distância, que faz do sintoma incurável uma garantia de separação, de não conformidade, de não coerência (total) com nenhum programa, inclusive se continuarmos trabalhando nele. De modo que o sintoma, o não eleger do ser eletivo, termina sendo a garantia pela qual sua eletividade essencial se afirma na existência, sua garantia real, a causa de sua responsabilidade e a de seu parceiro dialógico, que é o analista.

Daí a concepção lacaniana do ato analítico:

Nenhuma diferença, uma vez empreendido o processo entre o sujeito que se entrega à subversão até produzir o incurável onde o ato encontra seu fim próprio, e aquilo que do sintoma cobra um efeito revolucionário apenas por deixar de marchar ao som que lhe marca a batuta marxista. (LACAN, 1969/2003, p. 378).5

Podemos acrescentar à marxista, a batuta capitalista, ou a de qualquer instituição na qual esteja enrolado.

Esse conhecimento do sintoma já não analisável é impossível de descompor em elementos últimos; tomando-se um pouco de distância, permite um saber fazer. O saber fazer com o sintoma é o saber manobrar sem manual, justificado porque tal manual não existe. É conhecimento irredutível ao saber.

 

Um passeio pelo Centro Pompidou

Há homens de ação que não necessitaram de ajuda de um psicanalista em suas escolhas decisivas. Eu não busco, encontro – dizia Picasso, longe do neurótico, que busca e busca sem encontrar nada que valha a pena. Não é que sejam totalmente livres em suas escolhas de cada dia, porque se atêm a um estilo, tecem uma trajetória que só de vez em quando admite crise e rupturas, o período azul, logo o rosa, logo o cubista. De modo que não há tampouco neles a espontaneidade absoluta da decisão, mas também a autolegislação de uma vontade curtida.

Esses mesmos artistas, ademais, costumam comprazer-se em exibir alguns restos sintomáticos, versões da não relação sexual, que depositam em sua obra. Sabem fazer isso com tal maestria, que às vezes causam com seus restos o desejo de outros, que pagam dinheiro pelo que eles fizeram com seu sintoma. Passeando, semana passada pelo Centro Pompidou, encontrei versões chamativas do saber fazer com a não relação. Pareja, para seguir com o exemplo, é um quadro no qual Picasso pinta dois corpos recortados em quadrados e entalhados de outra maneira, uma espécie de quadratura de vínculo que satisfaz o olhar sexual tanto ou melhor que o encontro de um par cítrico. Vi outros exemplos em uma mostra temporária de Munch: alguma versão de O beijo, tão bem realizada, que a fusão dos rostos leva a relação até o horror da dissolução dos limites entre os corpos. E também Neve fresca na avenida, com duas figuras humanas no estilo característico do pintor, já saindo da paisagem desolada, cada uma em sua solidão fantasmagórica. Também visitei ali as instalações de Yayoi Kusama, nas quais se pode apreciar a fruição orgástica de uma mulher que coleciona quantidades exorbitantes de falos em um caldeirão gigante ou em um buraco no solo, que filma vídeos nos quais ela mesma tatua pênis de homens nus em alguma pracinha de Manhattan; e que instala, mediante um sistema de luzes e espelhos, bilhões de pontos luminosos em uma passarela escura que enfeitiça as mulheres e incomoda os homens. Fascinante, a angústia espreita o espectador.

Picasso, criador e destruidor, é conhecido também por maltratar suas mulheres. Munch levou um tiro de Tulla Larsen, seu grande amor, que lhe causou una pequena stéresis, e o privou de um dedo da mão; padeceu de alucinações e permaneceu internado durante vários meses em Copenhague. Yayoi Kusama, por sua vez, trabalha ainda, sozinha, internada em um hospital psiquiátrico de Tóquio. Nem tudo foi sublimação em suas vidas, essas telas e realizações destilam ainda o suor de uma tortura incurável.

Outro caso bem conhecido de saber fazer com o sintoma é o de Woody Allen; sua posição é irônica e nos incita a refletir sobre a distinção entre divisão e destituição subjetiva. Em Hollywood ending,6 a ex-mulher e atual mecenas de um diretor de cinema nova-iorquino pauperizado pergunta a ele se finalmente quer ou não fazer o filme, que poderia ser financiado por seu atual marido, um bem realizado produtor de Hollywood, e ele responde, já afetado pela cegueira histérica: "Uma parte minha quer fazer". E a outra? – pergunta pressurosa a ex. "Aí está o problema" – responde –, "é que minha outra parte também quer fazer." Se as duas partes do sujeito se põem de acordo, isto é para Allen um problema. Escutei, muitas vezes, apelidarem-no de neurótico; é cair em seu ardil. Um neurótico não roda um filme por ano, nem bom nem ruim, e muito menos Manhattan, Hollywood ending, Midnight in Paris. Há ali um saber fazer com seu sintoma que não responde às coordenadas da neurose. Segundo ele mesmo, padece de duas neuroses: claustrofobia e agorafobia.

 

O inconsciente real de Mario Brito

Concluirei recordando algumas coordenadas do final de análise relatadas por Mario Brito em Wunsch 10:

Um dia, indo ao consultório de minha analista e dirigindo em – piloto automático, encontrava-me exorto em minhas elaborações e, sem perceber, passei do prédio onde estava o consultório. Fiz o retorno enquanto ria do meu ato falho. A analista tinha ficado de fora e o momento oportuno, a ocasião para passar ao ato, estava por apresentar-se. Ao tomar o elevador, não se apresentou aquela dúvida que me tinha invadido em várias oportunidades: – o consultório está no primeiro ou no segundo andar? Apesar de tantos anos indo ao mesmo lugar, e que agora se apresentara essa dúvida. Esse dia me disse: – Está no andar um, não no andar dois, ela está no um, eu também. Tudo empurrava ao fim. (BRITO, 2011, pp. 8-9).

Leiam, pois é divertido, entusiasma esse relato de um saber fazer com o que apenas ele conhece em sua pele, mas que agora permite uma conexão entre conhecimento divisório e saber: o saber fazer. O dispositivo do passe lhe permitiu, não sem a intervenção do passador, tomar nota de seu ato, de sua satisfação no fracasso: eis aí o inconsciente real em ato, em ato sintomático.

 

Tradução de Solange Fonseca

Revisão de Angélia Teixeira

 

Referências

BRITO, M. Passe o que passa. Wunsch: Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, n. 10, pp. 6-12, jan. 2011. Disponível em: <http://www.champlacanien.net/public/docu/4/wunsch10.pdf >. Acesso em: 25 mai. 2013.         [ Links ]

FREUD, S. (1926). Inibições, sintomas e ansiedade. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Volume XX, pp. 81-174.         [ Links ]

LACAN, J. (1950). Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 152-196.         [ Links ]

__________. (1958). A significação do falo. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 692-703.         [ Links ]

__________. (1962-1963). O Seminário: livro 10 – A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

__________. (1966). A ciência e a verdade. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 869-892.         [ Links ]

__________. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 248-264.         [ Links ]

__________. (1969). O ato psicanalítico. In : Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 371-379.         [ Links ]

__________. (1973). Nota italiana. In : Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 311-315.         [ Links ]

__________. (1974). Televisão. In : Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 508-543.         [ Links ]

__________. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário XI. In: Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 567-569.         [ Links ]

__________. (1976-1977). Le Séminaire: Livre 24 – L'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre, inédito.

 

 

Recebido: 29/01/2013
Aprovado: 18/02/2013

 

 

1 Cf. meu Seminário nas Diagonales de la opción sobre o tema Résultat des analyses et formation analytique dans l'IPA, publicado pelos Forums du Champ Lacanien, em 2001.
2 Cf. aula de 16 de novembro de 1976: "Le symptôme pris dans ce sens cest, pour employer le terme de connaître, cest ce qu'on connaît, c'est même ce qu'on connaît le mieux".
3 É a tese bem conhecida de Lacan (1966/1998) em "Ciência e verdade", texto incluído nos Escritos. Em um texto publicado em L'en-jeu n. 7, comentei a surpresa de Solomon Feferman, lógico atual de primeira linha, ante o estranho emprego que faz Gödel da verdade em seus teoremas dos anos 30: a emprega e logo a retira sem dizer nada; como se esta nunca tivesse estado, ou, melhor dizendo, que poderia ser substituível mediante procedimentos transfinitos, o que é mentira, já que, naturalmente, não teríamos tempo para levar isso a cabo, nem nós nem o computador mais rápido que se possa inventar.
4 Lacan afirmou, em 1974, em sua Note adressé personnellement à ceux qui sont suceptibles de désigner les passeurs. Um passador não histérico deveria barrar sua verdade para localizar outros saberes, ainda se se serviu desta para chegar à sua posição atual.
5 "Pas de différence une fois le procès engagé entre el sujet qui se voue à la subversion jusqu'à produire l'incurable où l'acte trouve sa fin propre, et ce qui du symptôme prend effet révolutionnaire, seulement de ne plus marcher à la baguette dite marxiste."
6 Título no Brasil: Dirigindo no escuro (Nota da tradutora).