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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.26 Rio de Janeiro jun. 2013

 

RESENHA

 

Resenha do livro O livro negro da Psicanálise

 

Review of the book The black book of psychoanalysis

 

 

Leandro Alves Rodrigues dos Santos

 

O livro negro da Psicanálise: viver e pensar melhor sem Freud

Criticar a Psicanálise não é tarefa fácil, especialmente quando se trata de críticas construtivas, que genuinamente visam colaborar para o aprimoramento do que está sendo objeto de um debate honesto. Porém, quando está em jogo certo tipo de crítica que se origina de outras intenções, mais questionáveis e que tem como objetivo central demolir a invenção freudiana, certamente merece um olhar menos ingênuo e mais atento. É com esse olhar que se deve ler O livro negro da Psicanálise: viver e pensar melhor sem Freud, panfleto pensado e estruturado por Catherine Meyer, com o apoio de alguns outros autores, já conhecidos na esfera do revisionismo e da crítica afetada a tudo que se refere à Psicanálise.

Sendo assim, o leitor mais desavisado não deve se surpreender com o tom que se descortina nas mais de 600 páginas da edição brasileira, ainda menos extensa que a edição francesa, de mais de 800 páginas, originalmente lançada em 2005, com grande repercussão na mídia como, aliás, é peculiar a qualquer outro tipo de ataque a Freud e sua obra. Até então, não temos nenhuma novidade, talvez apenas mais um capítulo do que nos Estados Unidos usualmente se chama de Freud Bashing, ou "bater em Freud", termo que condensa as múltiplas formas de espancamento midiático que sempre tem como última mirada desqualificar o inventor da Psicanálise e, principalmente, cobrir de desconfiança e descrédito tudo que envolve o campo psicanalítico.

Seriam necessárias muitas páginas nesta resenha para descrever a sucessão de artigos que, com raras exceções, merecem ser acolhidos com deferência neste livro; pois o que se delineia, na maioria deles, especialmente em termos de enunciado recorrente, nada mais é do que uma intensa saraivada de investidas, ataques, desaprovações e censuras a tudo que diga respeito ao universo psicanalítico, temperadas com uma implacável dose de criticismo impiedoso e exarcebado, beirando a obscenidade.

A estrutura central desse petardo gira em torno de um claro intuito latente, que surge nas entrelinhas e que pode ser captado pela linearidade dos capítulos, títulos e seções específicas: num primeiro momento desqualificar a Psicanálise, tirando-a de seu suposto domínio hegemônico de compreensão e tratamento dos males da subjetividade humana e, posteriormente, efetuar uma troca pelas terapias comportamentais cognitivas e medicações variadas, tão típicas dessa época de certezas e respostas rápidas.

Elegendo alguns recortes específicos, podemos notar que o livro se inicia com uma notável indignação: por que a Psicanálise continua viva e forte em algumas partes do mundo e, em outras, parece quase sumir, revestindo-se de notável diminuição de importância? Alguns números são apresentados, ainda que carentes de confirmações estatísticas e de fontes confiáveis, como espera a pesquisa científica séria. Um exemplo banal: um dos autores, no afã de demonstrar que a Psicanálise e os psicanalistas estão sumindo no mundo, afirma não existir mais de três mil psicanalistas em todo o planeta. Bem, basta debruçar sobre qualquer entrevista com psicanalistas que representam instituições psicanalíticas e notar que quando as descrevem, nos fazem notar que quase sempre dizem do número de associados, e comumente estes números ultrapassam centenas em cada uma delas, contabilizando todos que nelas gravitam. Uma conta rápida de multiplicação demonstrará que esse número é nitidamente subdimensionado, pois existem incontáveis instituições psicanalíticas mundo afora. Basta apenas conversar com colegas que participam de encontros mundiais de escolas de Psicanálise, e podemos notar que, ano após ano, milhares afluem a cada um desses congressos, e caso seja necessário, é sempre possível também efetuar visitas aos sites oficiais das respectivas instituições, que trazem a lista de afiliados, que parece sempre aumentar, ano após ano. Marque-se ainda ser plausível incluir também os psicanalistas que atuam de forma mais independente e que, portanto, não se filiam às escolas de Psicanálise e associações de psicanalistas mundo afora, talvez num número inapreensível.

Os casos paradigmáticos de Freud, desde o começo, ainda nos estudos sobre a histeria, junto a Breuer, como por exemplo, Anna O. e Katharina, passando pelo Homem dos Lobos, Schereber e outros, são cuidadosamente esmiuçados, mas de uma perspectiva nitidamente viesada, que objetiva apenas colher elementos para comprovar a desonestidade científica e intelectual de Freud, suas manipulações cínicas dos resultados, a consequente a-cientificidade de seu método, a pouca eficácia terapêutica do tratamento psicanalítico, além das táticas por ele engendradas e depois aperfeiçoadas pelos seguidores com o fito de blindar a Psicanálise das críticas e da suposta fragilidade de sua organicidade conceitual e clínica, visto que é tão somente fruto do delírio de seu criador.

Esse pressuposto básico não serve apenas como pano de fundo da obra; serve também como suporte para as estratégias de confronto endereçadas à Psicanálise e a seus grandes nomes. Começando com o próprio Sigmund Freud, passando por Jacques Lacan, Bruno Bettelheim, Françoise Dolto e outros, integrantes de um grande conjunto de mistificadores e responsáveis por inúmeros erros, distorções propositadas, generalizações apressadas e, principalmente, de influências nefastas no imaginário popular, que na concepção de alguns autores do livro, seria presa fácil desses grandes comunicadores, portadores das "verdades" que adivinham do que o livro qualifica como mitos psicanalíticos. O clima bélico que atravessa cada um dos capítulos é permanente, não há boa vontade ou mesmo compreensão razoável que pudesse levar em consideração a época, o período histórico ou o momento particular de cada um desses grandes nomes, inclusive a condição de seres humanos, passíveis de enganos e equívocos como quaisquer outros, humanos, demasiadamente humanos. Não, a nítida má vontade que salta aos olhos a cada parágrafo é a tônica vigente, com condenações que se sucedem, quer seja apontando a vilania de Freud em analisar incestuosamente a própria filha ou tiranizar sexualmente a cunhada que dele dependia economicamente, a cegueira egocêntrica de Lacan em se pretender o portador exclusivista da "verdadeira" Psicanálise após Freud com sua legião de seguidores fascinados e alienados à sua palavra e imagem pirotécnica, a dissimulada falta de caráter de Bettelheim, impostor que mistificava curas e culpabilizava irresponsavelmente as mães dos autistas que atendia em sua clínica ou ainda a postura arrogante de Dolto, responsável pela "psicanalização" da França, em especial na educação e nas relações familiares, que supostamente passariam a depender de um manual de sobrevivência freudiano ou mesmo em tratamentos com psicanalistas que tomavam avidamente a rede francesa de serviços públicos, monopolizando a oferta terapêutica e criando uma rede circular de oferta e demanda, inescapável para os que lá chegavam em busca de ajuda específica.

Por mais incrível que pareça, alguns capítulos se destacam pelo despropósito, beirando o non-sense. Num deles, é tratado o que foi chamado de "desconversão" de um jovem psiquiatra, influenciado pela Psicanálise desde o começo de sua formação acadêmica, mas que, ao tomar contato com um dos autores, é convidado a passar pela tal terapia de orientação cognitiva-comportamental, que pôs em xeque suas crenças sobre o inconsciente e outras terminologias psicanalíticas que o impediam de ajudar efetivamente seus pacientes. No final desse "tratamento", há o coroamento do processo, para satisfação do autor, com a matrícula do jovem psiquiatra em um curso breve de TCC, que servirá como referencial teórico a partir de então, salvando-o da influência nefasta da Psicanálise.

Outro capítulo traz em seu bojo algumas narrativas de pacientes que conseguiram escapar das garras dos psicanalistas, especialmente as mães de crianças autistas, ou ainda pacientes que só puderam compreender os malefícios dos quais foram vítimas após o encontro com terapeutas comportamentais e, que graças a essa técnica, alcançaram a compreensão da amplitude do perigo que corriam. Sim, essa é uma das tentativas que ultrapassam o desqualificar sistemático da Psicanálise, pois tem como intuito também apontar o perigo e os graves riscos de se entregar a uma experiência psicanalítica, empreitada que causa dependência, alienação, desfaz casamentos, envenena a vida familiar e, sobretudo, enriquece os bolsos dos analistas gananciosos, que aprenderam desde a origem, com o mestre fundador, em Viena, que adorava o dinheiro.

Após esse cenário de terra arrasada, chega então a parte que acaba revelando a verdade que subjazia a sucessão de ataques da artilharia pesada dos detratores da obra freudiana: o posicionamento de algo no lugar do que foi destruído, a saber, as descobertas da neurociência, os pretensos avanços das terapias comportamentais e cognitivo-comportamentais, além de um evidente destaque para os medicamentos que a psicofarmacologia, mancomunada com os interesses da indústria farmacêutica, oferta diuturnamente como solução mágica para a dureza da vida cotidiana, do mal-estar presente na divisão subjetiva do humano e do laço com o outro. Obviamente nada disso é levado em consideração, mas apenas e tão somente os aspectos funcionais do comportamento humano, bem como supostas desordens e transtornos de origem orgânica ou afins, numa questionável leitura empobrecida da condição humana.

Considerar meramente este livro como um absurdo pareceria ser razoável, mas com isso estaríamos incorrendo num erro, aceitar um pseudodebate que só interessa a um lado, pois o que está em questão não é a supremacia de uma abordagem terapêutica ou outra, nem mesmo uma hierarquização dos efeitos e resultados desse ou daquele tratamento psicoterapêutico, mas sim uma intenção mais ardilosa e que precisa ser explicitada em profundidade. A principal razão do lançamento deste livro no território francês foi um movimento engendrado pelos psicoterapeutas de orientação comportamental na França, pois se sentiam alijados dos serviços públicos de saúde, bem como na mídia, quando comparados aos psicanalistas, que segundo eles, detêm o controle hegemônico nesse campo da saúde pública e nos consultórios particulares. Tal movimento visou excluir o tratamento psicanalítico, inicialmente no campo do autismo, depois ampliando esse argumento para outras demandas terapêuticas, não apenas no serviço público, bem como na relação com os convênios e planos de saúde, com uma clara conexão entre essa estratégia mercadológica e o lançamento do livro. Aliás, o termo "livro negro" remete aos crimes perpetrados contra grupos, classes ou raças durante a história da Humanidade.

Coincidentemente, este livro é lançado no Brasil em 2012, e para assombro de muitos, tem início, ao menos no Estado de São Paulo, um movimento análogo ao francês, que tem como meta estipular como exclusividade a orientação comportamental-cognitiva no tratamento a autistas, em oposição ao tratamento psicanalítico, tido como pseudocientífico, considerado ineficaz terapeuticamente e pouco produtivo em termos de quantidade de atendimentos, especialmente quando comparado à díade adestramento-medicação, símbolo da avalanche adaptacionista que deu mostras de quão virulentos podem ser os ataques. Freud, na clássica entrevista que deu à BBC, pouco antes de morrer, deixou claro que a batalha ainda não havia terminado. Suas palavras mais uma vez demonstram impressionante capacidade de antevisão. Que este livro negro chacoalhe os psicanalistas e que as respostas venham vigorosamente, pois em vez de destruir a Psicanálise, como adorariam os autores, provavelmente estão tornando-a mais forte. Um efeito rebote admirável...