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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.27 Rio de Janeiro out. 2013

 

ENSAIOS

 

Destinos do amor ao saber

 

Destinies from love to knowledge

 

 

Maria Vitória Bittencourt*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A transferência, pivô de uma análise, constitui o analista como parceiro de uma aventura em que é pela via do amor que opera. Como diz Lacan (1972-73/1975, p. 77), "Falar de amor, só fazemos isso no discurso analítico". Trata-se de questionar como responde o analista a essa demanda de amor transferencial. Embora Freud afirme que se trata de um verdadeiro amor, para Lacan é uma nova forma de amor, dirigido ao saber: "Aquele que suponho saber, eu o amo" (LACAN, 1972-73/1975, p. 64). Vamos interrogar o destino desse amor no final de uma análise, a partir dos testemunhos do passe que podem nos ensinar a propósito dos destinos do amor ao saber.

Palavras-chave: Amor, Transferência, Final de análise, Passe, Resposta do analista.


ABSTRACT

Transfer, pivot of an analysis, takes the analyst as a partner of an adventure which operates through love. As Lacan (1972-73/1975: 77) puts: "Talking about love, we just do this in the psychoanalytical discourse". It is about questioning the way the psychoanalyst responds to this demand of transferential love. Although Freud affirms that it's a matter of true love, to Lacan it is a new form of love, addressed to knowledge. "If I suppose I know someone, I love them" (Lacan, 1972-73/1975: 65). Let us interrogate the destiny of such a love at the end on an analysis, departing from the testimonies of the pass which can instruct us about the destiny from love to knowledge.

Keywords: Love, Transfer, End of analysis, Pass, Analyst's response.


 

 

Este artigo visa abordar o amor de transferência, retomado em uma pergunta que coloquei antes da fundação de nossa Escola, época em que não tínhamos ainda o dispositivo do passe e que discutíamos sua instauração: aquela do destino do amor de transferência no fim da análise e suas consequências para a Escola. Uma resposta havia surgido, a de que esse destino estaria definido pela noção de transferência de trabalho, introduzida por Lacan (1964/2001, p. 236) na fundação da sua Escola: "O ensino da psicanálise só pode se transmitir de um sujeito para o outro pelas vias de uma transferência de trabalho". Não creio que essa noção possa responder à questão, pois vimos como ela pôde ser usada na sua vertente militante de exaltação, desviando a ideia de Lacan que situa esta transferência precisamente no trabalho do cartel. Noção que pode conduzir à transferência de massa, fazendo consistir um Outro unário.

Essa resposta, um tanto simplista a meu ver, me levou à questão do destino do amor ao saber no final de uma análise. Assim, se no começo de uma análise o amor é aquele que se dirige ao saber, no final poderíamos falar de um saber sobre o amor? Um analista teria algo a saber sobre o amor?

Essas questões surgiram também na minha experiência com cartéis do passe, onde, apesar de me encontrar com diferentes colegas de trabalho (Cartel efêmero), sempre ficava a questão do amor para o passante. Talvez estivéssemos ainda sob a influência da ideia de Freud sobre o que se espera de um final de análise: poder trabalhar e amar. Proponho, então, desdobrar o conceito de amor em Lacan para retomar reflexões a partir de um testemunho do passe como demonstração a propósito desses destinos.

Pergunta que poderia ser formulada com as palavras de uma canção de Prevert: o que resta de nossos amores? Lacan (1981/1982, p. 93) não hesitou em evocar o amor em seu convite de fundar a Causa freudiana: "Essa é a Escola de meus alunos, aqueles que ainda me amam". Embora essa afirmação se situe em um contexto bem particular, não deixa de evocar o amor como laço social da Escola. Esse uso do amor de transferência, depois do passe, para constituir uma Escola, parece conforme com o que Lacan ensina nos seus seminários?

Falar de transferência é falar de amor, sendo a análise uma história de amor inédita, pois constitui o analista como parceiro de uma aventura que opera pela via amorosa. Como diz Lacan (1972-73/1975, p. 77): "Falar de amor, só fazemos isso no discurso analítico". Sem esquecer que Freud (1915[1914]/1969, p. 218) logo percebeu que "o estado amoroso" que aparece na análise tem o caráter de um amor "verdadeiro", cujas características ele considera como "anormais", que são: não ser razoável, não se preocupar com as consequências, bastante cego na apreciação do ser amado.

Lacan, por sua vez, durante todo seu ensino fala do amor introduzindo dimensões diferentes daquelas de Freud. Vou tentar resumir o que poderíamos chamar de "três dimensões do amor em Lacan".

Em seu primeiro seminário, Lacan (1953-54/1975, p. 298) aponta que a transferência existe implicitamente antes de todo início de análise, antes que "o concubinato, que é uma análise, a desencadeie". Pela primeira vez, evoca então as três paixões fundamentais – amor, ódio e ignorância – situadas na dimensão do ser, sendo cada uma aresta na qual o amor se situa na junção do imaginário com o simbólico; o ódio, junção do imaginário com o real; e a ignorância, a junção do real com o simbólico. Notemos que a junção simbólico com o real real será designada mais tarde como aquela do sintoma.

Essa primeira concepção estabelece o amor na sua essência narcísica, amor definido na dimensão imaginária. Mas desde 1954, Lacan, ao associar amor, ódio e ignorância dentro da dimensão transferencial, situa o sujeito analisante como aquele que ignora. Essa junção saber e amor inaugura o que Lacan estabeleceu mais tarde como sujeito suposto saber, pivô de uma análise, e introduz o registro simbólico no amor, "aquele que suponho saber, eu o amo" (LACAN, 1972-73/1975, p. 64). Nisso Lacan se distingue fundamentalmente de Freud, ao introduzir o amor no saber como efeito de transferência. Como resultado, temos então um paradoxo: o sujeito demanda o saber que supõe ao analista, instalando o amor justamente para não querer saber de nada.

Porém, essa dimensão do amor, sempre narcísico, tem essência de tapeação. Daí a indicação de Lacan que comporta uma ética da transferência, em um capítulo do Seminário XI, onde evoca a garantia de que não estamos na impostura: "A operação e a manobra da transferência devem ser regradas de maneira que se mantenha a distância entre o ponto desde onde o sujeito se vê amável e esse ponto em que o sujeito se vê causado como falta por a, e onde vem arrolhar a hiância que constitui a divisão inaugural do sujeito" (LACAN, 1964/1979, p. 255). Ética do desejo do analista.

Em um testemunho do passe que escutei, ficou claro como essa distância não foi mantida numa primeira experiência dita analítica. O analisante, como todo analisante, se faz objeto amável e tem como resposta ter sido "eleita" para ocupar um cargo junto ao analista. Exemplo de amor correspondido. Vemos assim como responde o dito-analista à demanda do amor transferencial, resposta que teve como resultado tamponar a falta e uma acentuação do sintoma (não poder falar nada). Daí a indicação de Lacan, em sua Proposição: "temos de ver o que habilita o psicanalista a responder a essa situação (da transferência) que percebemos não envolver a sua pessoa" (LACAN, 1967/2001, p. 249). Ética e clínica estão no fundamento dessa proposição – resposta do analista às emboscadas do amor transferencial. Numa segunda análise, vemos como a pertinência de uma interpretação do analista vem quebrar essa alienação, interpretação que faz surgir um saber sobre a que a demanda de amor visava, e animar um desejo lá onde a tapeação do amor, na sua dimensão de miragem narcísica, fazia existir o Outro. O que demonstra a dimensão ética da transferência.

Mas Lacan não se satisfez com essa dimensão simbólica do amor e sua impotência para responder aos impasses clínicos encontrados no tratamento do real pelo simbólico, pois nem tudo é linguagem. Com o seminário Mais, ainda, Lacan (1972-73/1975) retoma a questão do amor para extrair sua dimensão ilusória e pensá-lo como tocando o real. Lacan funda assim uma teoria do gozo na sua relação complexa com o amor, que será concebido como suplência à ausência da relação sexual, fazendo dos dois parcerios o Um. "Narcísico em sua essência, ele é impotente, embora recíproco porque ignora seu desejo. Ele ignora que é um desejo de ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação entre os dois sexos (deux = d'eux)" (LACAN, 1972-73/1975, p. 12).

Essa definição do amor em relação ao real vai ter suas consequências na transferência com a introdução do gozo no significante, um gozo na transferência, gozo do blablablá, gozo esse que se manifesta pelo amor ao significante que se eterniza no amor de transferência. Daí, como cessar de gozar na transferência?

Podemos tomar nesse mesmo testemunho de passe, como o manejo da transferência incidiu nesse ponto. Esse momento pode ser situado na designação de passador, um ato do analista que teve como efeito uma virada da análise no sentido de ser "eleita" para se virar sozinha, ou seja, se descolar do que tinha de gozo do sentido (joui-sens). Convite a partilhar algo do bem dizer da causa analítica, ou seja, falar/testemunhar de como se descolou de um significante mestre fixado em seu sintoma: criada muda. 1 A angústia provocada pela designação não afetou sua decisão de aceitar essa aposta, o que denota uma certa coragem que abriu o caminho para o entusiasmo. Esse ato do analista de se recusar a corresponder ao amor permitiu ao sujeito se desfazer de suas condições de amor até então ligadas ao modo de gozo mais íntimo, o gozo do sintoma.

Pois se o amor é suplência da relação sexual, o sintoma vem ocupar esse mesmo lugar. No registro do real, não somente o amor se dirige ao saber, mas trata-se de um saber investido no gozo, tal como o sintoma. Finalmente, amamos o sintoma do outro, ou somos o sintoma do outro. Existe uma relação entre o parceiro e o sintoma, a ponto de Lacan dizer que o homem encontra na mulher seu sintoma e a mulher encontra no homem sua devastação. Assim, a pergunta do cartel quanto à vida amorosa do passante teve toda sua pertinência no sentido em que interrogou o real do sintoma, pois indica um saber fazer uma conduta com seu parceiro sintoma ou devastação. Vários testemunhos nos indicaram essa mudança na posição do passante: o ser transformado do analista em sua prática e em sua vida amorosa, uma complicação na vida do falasser.

Voltamos assim à formula freudiana – poder amar e trabalhar. Christian Desmoulin chamou a atenção para o termo que Freud utiliza quando se refere a trabalhar: trata-se de Leisten que evoca antes uma realização e implica uma dose de criatividade e invenção, e não um trabalho alienado do proletário.

Fica a questão do destino do amor ao saber, destino da transferência. Para Lacan não há liquidação, mas resolução da transferência que deixa um resto. Um analista é o produto, o dejeto da operação analítica, encontro entre o amor do saber e o desejo do analista.

Não pretendo esgotar essa questão, mas podemos dizer que a decisão do analisante de fazer o passe, de se arriscar a essa aposta de Lacan, é um dos destinos do amor ao saber, fora da transferência. Embora o passe seja uma das modalidades de transferência, o saber está situado do lado do passante, via passador, e o Cartel só tem que verificar se houve transmissão do saber novo inventado pelo passante, desvinculado do amor à verdade. Pois, como diz um poeta brasileiro – "Tudo que não invento é falso" (BARROS, 2004, p. 67.)

Outros destinos podem surgir, como aquele que Pierre Rey (1989) testemunhou no seu livro Une saison chez Lacan. Destino de escritor.

Quanto à transferência de trabalho que não deixa de se referir a um amor à Escola, deixemos esse amor onde Lacan o situa – em sua função de remediar um defeito que é sempre de ordem estrutural. E cada um deve inventar sua solução enquanto agente desse destino particular que seu inconsciente determina.

 

Referências

BARROS, M. de. Livro sobre nada. 11ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.         [ Links ]

FREUD, S. (1915[1914]). Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III). Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 12, pp. 207-221).         [ Links ]

LACAN, J. (1953-54). Le Seminaire, livre I: Les écrits techniques de Freud. Paris: Seuil, 1975.         [ Links ]

__________. (1964). Acte de fondation. In: LACAN, J. Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, pp. 229-241.         [ Links ]

__________. (1964). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.         [ Links ]

__________. (1967). Proposition du 9 octobre 1967 sur le psycanalyste de l'Ecole. In: LACAN, J. Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, pp. 243-259.         [ Links ]

__________. (1972-73). Le Seminaire, livre XX: Encore. Paris: Seuil, 1975.         [ Links ]

__________. (1981). Lettre du 26 Janvier 1981. Annuaire de l'Ecole de la Cause Freudienne. Paris: ECF, 1982.         [ Links ]

REY, P. Une saison chez Lacan. Paris: Robert Laffont, 1989.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: mariavitoriabittencourt@gmail.com

Recebido: 06/02/13
Aprovado: 30/04/13

 

 

* AME da Escola de Psicanalise dos Fóruns do Campo lacaniano; Mestre em Psicanálise da Universidade de Paris VIII; Docente de Formações Clínicas do Campo Lacaniano - Rio de Janeiro.
1 Mudança da posição do gozo do sintoma: em vez de perder o sentido, se descolar da busca do sentido a qualquer preço. Não sem satisfação, que só se atinge no uso de um particular, aquele do seu sintoma.