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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.27 Rio de Janeiro out. 2013

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS

 

O juízo íntimo do analista

 

The intimate judgement of the analyst

 

 

Gabriel Lombardi*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires
Clínica psicanalítica da Universidade de Buenos Aires em Avellaneda
Pesquisador categoria I do Ministério da Educação da República Argentina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Diversos trabalhos sobre o "pagar com palavras" na interpretação do psicanalista e sobre o "pagar com sua pessoa" em sua manobra na transferência já foram apresentados. Propomo-nos, neste artigo, a interrogar o "pagar com seu juízo íntimo" do analista, no plano de sua ação em que se decidem a ética da psicanálise e sua política a respeito do ato próprio do parlêtre. Neste nível, "sua ação sobre o paciente escapa-lhe junto à ideia que se faz dela", escreve Lacan. Desenvolveremos duas linhas de perguntas. A primeira é o que quer dizer "pagar com seu juízo íntimo", que diversas leituras ou acepções admitem essa expressão na obra de Lacan. De que modo o analista acede ou não ao conhecimento ético – em termos de Kant ou Brentano – de sua práxis e de suas consequências? De que modo haverá de talhar a noção de destituição subjetiva, introduzida anos depois da "Direção do tratamento", junto à sua noção de ato analítico? A segunda atende a colocação à prova, por parte do analisante, das dificuldades do analista para realizar esse pagamento. De quais modos incide no processo analítico a dificuldade do analista para efetuar esse pagamento diante de distintos tipos clínicos do sintoma? Em parágrafos concisos, Lacan afirma que o psicanalista está sempre à mercê do analisante, que esse não pode poupar-lhe nada se ele tropeça como psicanalista, e, se não tropeça, menos ainda (Discurso pronunciado à EFP em 5 de dezembro de 1967).

Palavras-chave: Juízo íntimo, Ato, Supereu, Desejo, Destituição subjetiva.


ABSTRACT

Several studies have been presented concerning the "pay in words" inherent to the interpretation of the analyst, many others about the "pay with his person" in his transfer manoeuvre. We propose in this work to question the "pay with his intimate judgment" required to the analyst, in the level where ethics of psychoanalysis and its policy towards the act of the speaking being are decided. In that level, "his action on the patient escapes him along with the idea he conceived about him", writes Lacan. We develop two lines of questions. The first is what is meant by "to pay with the intimate judgment" in Lacan teaching? How the analyst can get his ethical knowledge – in terms of Kant and Brentano –, its praxis and its consequences? How will carve the notion of subjective destitution, introduced by Lacan at the same time that his notion of analytic act, years after "The direction of the cure"? The second line of questions focuses the testing by the analysant of the analyst’s difficulties to make that payment. In what diverse ways such difficulties affect the analytical process for different clinical types of symptoms? In concise paragraphs Lacan says that psychoanalyst is always at the mercy of the analysant, which can’t save him from nothing if he stumbles as a psychoanalyst, and if he does not stumble, even less (Discours prononcé le 5 décembre 1967 à l’EFP).

Keywords: Intimate judgment, Act, Superego, Desire, Subjective destitution.


 

 

Em seu texto, a Direção do tratamento e os princípios do seu poder, Jacques Lacan (1958/1966) discerne três níveis na ação do analista: sua tática da interpretação, sua estratégia no manejo da transferência e sua política do ser em uma ação sustentada no desejo. Parece-me oportuno voltar a essa clivagem no momento de considerar as diferentes arestas da resposta do analista a seu partenaire genuíno, que é a divisão subjetiva do analisante.1

A análise de Lacan apoia-se na diferença do que paga o analista em cada um desses níveis. Paga com palavras na interpretação, paga com sua pessoa na transferência e, mais radicalmente ainda, paga também no plano de ser. Aí, diz, "paga com seu juízo íntimo". Em uma enquete pessoal entre colegas e bibliografia de influência lacaniana, constatei que muitos trabalhos sobre o "pagar com palavras" na interpretação e sobre o "pagar com sua pessoa" na manobra da transferência já foram apresentados, enquanto muito pouco foi dito sobre "pagar com seu juízo íntimo" do analista, que Lacan introduz nesse texto sob o título: "Comment agir avec son être" (Ibid., p. 612). Colocam-se para mim duas perguntas que podem desenvolver-se como duas linhas de investigação.

A primeira é o que quer dizer "pagar com seu juízo íntimo", que acepções admite essa expressão que encontramos diversas vezes na obra de Lacan, como se entende esse pagamento nas experiências concretas de análise.

A segunda é de que modo incide no processo analítico a dificuldade do analista para efetuar esse pagamento. É obstáculo? É motor da cura? E de que modo incide essa dificuldade no fim da cura, por acaso como desencadeante de seu término?

 

O que quer dizer pagar com seu juízo íntimo

Quando li essa expressão de Lacan, pagar com seu juízo íntimo, imaginei inicialmente que se referia ao analista ter que silenciar seus preconceitos e preferências pessoais para responder analiticamente ao analisante. Isso equivaleria a dizer que o analista paga com seu juízo estético, fundado no gosto, a respeito do qual Kant (1790/2006) centra a primeira parte de sua Crítica do juízo. A ideia desse pagamento foi nitidamente introduzida já por Freud, e nenhum analista poderia desdenhá-la, ao menos em teoria.

Logo adverti com surpresa que Lacan refere-se a outra coisa: o analista tem que pagar com seu juízo teleológico sobre o ato que sustenta, por desconhecer o fim do processo que seu ato promove, nas diferentes acepções do termo fim: o sentido, o para onde, o até quando, o bem a obter. O ato do analista é essencialmente o de autorizar o desdobramento de um saber inconsciente ao qual ele não tem acesso, a não ser em segundo lugar, seguindo o discurso do analisante; sua missão consiste, então, em causar o trabalho analítico, mas sem saber bem para onde isso leva. Uma parte do sentido de sua ação escapa-lhe pela estrutura mesma de seu ato. O sentido de uma direção da cura muda totalmente a partir daí.

Para levar sua ação ao coração do ser, ao Kern unseres Wesens do qual falava Freud (1900/1993) em sua Traumdeutung, o analista deve suspender seu juízo íntimo, deve admitir desconhecer as consequências do processo que colocou em funcionamento e o que se segue a essas consequências, em que o juízo que realmente importa é o do analisado. Se corresponde ao analista promover e sustentar o processo, é o analisante quem escolhe os caminhos – regra fundamental da psicanálise – e quem tem a última palavra. A ideia de "alta" médica não tem sentido em psicanálise, o "acabou-se" do final, o satis final, o ponto final é do analisante, e não do analista.

Mesmo que a ideia pareça simples, implica o mais alto custo sustentá-la na prática. Por isso, a clínica lacaniana implica não deixar o analista tranquilo com suas titulações, com seu saber já consolidado, com sua experiência prévia, com seu saber já construído sobre o caso; porque a verdadeira direção da cura apoia-se em que todo esse saber que o analista acumula está destinado a ser descartado, a cura só se dá se tudo isso caduca, se o saber do analista cai como objeto a, mero dejeto do saber.

Opusemos a divisão subjetiva que caracteriza a posição do analisante à destituição subjetiva do analista. Contudo, essa divisão subjetiva na qual o analista sustenta seu ato e sua integridade ética não será jamais uma posição totalmente assegurada. A perspectiva a partir da qual Lacan funda sua Escola implica colocar o analista no banco, e colocar-se a si próprio no banco, o do acusado, o dos réus, para dar conta de seu trabalho específico que inclui sua ignorância a respeito das consequências de seu desejo de analista... realizado ou não realizado?

Assinalemos que já em Freud (1909/1996) encontramos indicações sobre esse pagar com o juízo íntimo, quando, por exemplo, em Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, explica a diferença entre a direção de consciência e a direção da análise:

O pai de Hans estava fazendo perguntas demais, e estava pressionando o inquérito através de suas próprias linhas, em vez de permitir ao garotinho que expressasse seus pensamentos. Por essa razão, a análise começou a ficar obscura e incerta. Hans tomou seu próprio caminho e não produziria nada se fossem feitas tentativas para tirá-lo deste (...) Só posso aconselhar àqueles dos meus leitores que até agora ainda não tenham conduzido uma análise, que não tentem compreender tudo de uma vez, mas que deem um tipo de atenção não tendenciosa para todo ponto que surgir e aguardem desenvolvimentos posteriores. (p. 63-4).

Isso ocorreu na sessão de 10 de abril. Na do dia seguinte, Hans continua sua brincadeira de exploração do inconsciente mediante suas próprias associações, nas quais ironiza as respostas do pai para explicar o vínculo do menino com o pai por meio de metáforas de boneca e canivete, de cegonha, de galinhas, ovo e galinha outra vez, o pai galinha que botou um ovo. Ele mesmo diz ter botado um ovo, e Freud comenta: "Com um golpe audaz, Hans apropriou-se da direção da análise" (Ibid., p. 82).

 

Variantes da Verleugnung do ato

A psicanálise, enquanto sustenta uma ética, implica um juízo sobre o ato do analista; esse ato, entretanto, em razão de sua própria estrutura, é uma resposta meramente inicial, de colocar em andamento e de incitação de um processo cujo destino se desconhece. Há, contudo, distintos modos de desconhecer.

Em primeiro lugar, situemos esse não saber para onde nem até quando pelo qual o analista paga com seu juízo teleológico; esse não saber remedia-se, conforme indicação de A direção do tratamento (LACAN, op. cit.), "seguindo do desejo à letra". É um não saber inerente ao ato de permitir que emirja um sujeito incalculável cujo ser apoia-se nesta margem de liberdade daquele que goza graças à estrutura, que é a estrutura de uma falha.

Outra coisa diferente é esquecer a existência desse ato em que se funda a psicanálise, esquecê-lo intitulando-se analista, vale dizer, desconhecendo que seu ser e sua presença são possíveis justamente porque esse ser não está representado no significante e, menos ainda, no significante "psicanalista", que seria o óbvio. Esse esquecimento, esse desconhecimento, essa Verleugnung é o que a Escola de Lacan busca remediar. O analista sustenta sua posição nessa destituição subjetiva que o devolve a uma forma peculiar de ser em ato, ser a coisa silenciosa que causa o dizer da análise. Se quando interpreta apela a seu saber inconsciente enquanto sujeito, bem-vindo ou nem tanto, depende do arbítrio do analisante; em qualquer caso, pagará com sua pessoa na transferência ou, mais radicalmente ainda, pagará com seu juízo íntimo nessa ultratransferência em que o desejo do analisante afirma-se como condição absoluta e como destino, como Wunsch indestrutível mantido em reserva.

 

O controle do ato pelo analisante, pelo supervisor, pela Escola

O analisante, paradoxo em ato que interroga as respostas do analista, é em si mesmo um primeiro controle, um primeiro guardião de que o desejo do analista renove-se em uma destituição atualizada, que o analista não se mantenha na posição fixa, na satisfação boba do saber já sabido, inaplicável ao ser. O analista pode o que quiser na interpretação, com a condição de pagar com sua pessoa na reação transferencial que suscite. Pode permitir-se ainda certas manobras na transferência, vacilações calculadas ou não calculadas na neutralidade, sob condição de submeter-se estritamente às posições subjetivas com que responde o analisante, abandonando todo juízo corretivo, seja de aprovação ou de reprovação, todo juízo religioso, seja de absolvição ou de condenação, todo juízo terapêutico, seja de melhoria ou o contrário. Não é que o analista não possa opinar, não falo de uma regra tática, mas dessa política do ser em que se joga sua resposta fundamental.

Por isso, o analista "está sempre à mercê do analisante, já que esse nada pode poupar-lhe se tropeça como psicanalista, e, se não tropeça, menos ainda", conforme se expressa Lacan (1967/2001) em seu Discurso de 5 de dezembro 1967.

Nesse mesmo discurso, sugere também que o dispositivo do controle ou supervisão indica-se naqueles casos em que o sujeito é superado por seu ato, e usualmente não tanto porque esse ato resulta ineficaz, mas porque não se adverte ou não se tolera sua eficácia. A força do dispositivo freudiano é tal, que praticamente quase qualquer intervenção do analista desperta reações associativas, sintomáticas e transferenciais cuja apreensão clínica escapa ao analista, talvez porque encontra ali algo que não consegue suportar enquanto sujeito. Essas associações, essas respostas transferenciais, essas reproduções do desgarramento subjetivo do analisante exigem dele esses pagamentos que custa efetuar e que tanto mais estritamente lhe serão exigidos quanto melhor analista for.

Se a Escola focaliza seu interesse nesse ato que situa no passe do analisante dividido a analista destituído é porque a ética da análise vai contra a canalhice normal do terapeuta, do curador, do padre, canalhice que consiste em saber manipular o inconsciente do sujeito, saber para onde dirigi-lo. A partir desta perspectiva, a sugestão é um caso de canalhice, e a transferência positiva, induzida e mantida pelo analista, como sugeriu Freud, também fica sob suspeita.

 

A política do neurótico em relação ao juízo do analista

Nossa segunda pergunta é de que modo incide no processo analítico a dificuldade do analista para efetuar esse pagamento, que espécie de obstáculo representa para a análise e de que modo incide essa dificuldade no fim da cura, e acaso em seu término.

Comecemos por assinalar que existem políticas típicas do analisante em relação ao juízo do analista. Também a esse respeito pode-se constatar a diferença entre os tipos clínicos lacanianos que são a neurose, a psicose e a perversão.

Conrad Stein (1968) escreveu um artigo sobre o juízo do analista no qual adverte que o neurótico quer ser reconhecido como culpado, da masturbação por exemplo. Esse reconhecimento talvez o aliviaria, argumenta, mas não corresponde ao analista outorgar-lhe tal reconhecimento. Tampouco lhe corresponde absolvê-lo, não é concebível que o paciente se cure porque aquilo que ele tinha como um pecado resulta ser, na verdade, um gesto benigno e natural: o analista que quer desculpabilizar ao analisado expõe-se ao reproche de falhar em sua missão, diz Stein, e diz bem. Acrescentemos como comentário que a masturbação culpabiliza não por satisfazer mais ou menos, mas pelo que sua descarga tem de curto-circuito, de renúncia, de satisfação que evita o encontro com o desejo do Outro – e com o que esse encontro implica de realização do desejo próprio, esse Wunsch radical e indestrutível que se frustra na realizações de mera fantasia.

A política neurótica de solicitude ou espera do juízo de aprovação ou de condenação do Outro define a posição e a armadilha fundamental da neurose, assim como sua duplicidade em matéria moral. No lugar do Outro do desejo, o neurótico atribui-se um Outro que o julga e resigna seu desejo e sua ética em posse desse juízo alheio. Inclusive, se permanece para ele profundamente reprimido, o juízo do analista é buscado, esperado, é solicitado. Como se materializa o supereu na neurose, senão por meio dessa cessão ao Outro do juízo sobre as próprias ações? O supereu, essa instância moral contrária à responsabilidade e à integridade ética, que alenta a culpabilidade e reforça a divisão subjetiva, na neurose toma a forma do juízo implícito, suposto ou esperado no Outro.

A política neurótica consiste, resumidamente, em sustentar o ser enquanto sujeito marcado por essa barra $ que se manifesta como divisão no sintoma e como fading do sujeito quando se "cura" pelo reconhecimento do Outro, entendido como ab-solução. Mistura de obediência e rebeldia interior, a neurose aporta a mais alta porcentagem ao rebanho daqueles que renunciam ao desejo. O neurótico foi o primeiro, o bom paciente, o que mais docilmente responde com "associações" quando a interpretação do analista convida-o a fazê-lo, mas não por isso é necessariamente o que chega mais longe na análise nem mais decididamente acede ao desejo do analista. Os psicanalistas – por uma espécie de hipnose ao contrário – costumam considerá-lo ainda o melhor analisante, em vez de permitir outros tipos clínicos entre seus analisantes.

 

O analisante perverso

A posição do perverso em análise é diferente e revela-se muito diferente da do neurótico nos momentos de auge do tratamento. É uma conjuntura cada vez mais frequente nos consultórios de analista, e faz-se importante saber reconhecê-la. Nesses momentos, o perverso escapa de sua divisão subjetiva, de seu sintoma, buscando, e muitas vezes logrando, produzir o efeito de divisão subjetiva $ no Outro, agora o psicanalista. Em suas realizações de fantasia e também em sua vida cotidiana costuma valer-se dessa manobra fundamental para se "curar" de seu sintoma.

Em seu texto Kant com Sade, Lacan (1962/1998) dá esta indicação preliminar a todo tratamento possível de um analisante perverso: "É que uma fantasia, com efeito, é bastante perturbadora, pois não se sabe onde situá-la, por ela estar ali, inteira, em sua natureza de fantasia que só tem realidade de discurso e que nada espera de seus poderes, mas que lhes pede, isto sim, que se ponham em dia com seus desejos" (p. 791). Serge André (1993) assinalou muito bem que, já no relato de sua fantasia, o perverso inicia a passagem ao ato, transformando o consultório analítico em cenário de uma fantasia que divide o partenaire que não está em conformidade com seus desejos. Dividir-se, angustiar-se, isso pode acontecer ao analista, e o perverso compraz-se em produzi-los. Mas, o analista deve saber que a divisão subjetiva e a angústia devem ser restituídas ao analisante, que seu desejo e seu ato de analista realizam-se na destituição.

Longe então de buscar a aprovação do Outro, o perverso no exercício de sua fantasia consegue, às vezes, perturbá-lo, o que não é de nenhuma utilidade aos fins analíticos... a não ser como oportunidade de uma manobra da transferência que permita relançar a análise. Em relação ao juízo de gosto, se esse relato excita ou angustia, satisfaz ou não satisfaz, não tem a menor importância, já que o decisivo é que a intervenção do analista apoie-se em um desejo exercido a partir da destituição que lhe é requerida para constituir-se em partenaire não da fantasia, mas do sintoma analisante. No que se refere ao juízo teleológico, se o analista propicia a regra fundamental, também nesse caso é porque tem certeza de que seu acionar vai no sentido de liberar também o analisante perverso das restrições da fantasia que limitam sua liberdade, que inibem suas possibilidades sociais e sublimatórias.

Isso explica retroativamente porque o perverso cada vez com mais frequência consulta ao analista, e particularmente ao analista que sabe diagnosticar sua peculiar posição como algo bem diferente da neurose. A consulta do perverso produz-se quando o sujeito foi atraído por um desejo mais forte que aquele que se satisfaz em suas performances de fantasia, quando se dividiu ou se angustiou. A sublimação, por exemplo, supõe sair do cenário da fantasia, exige um a mais que não se satisfaz nessa moldura rígida e restrita.

É claro que, para que isso seja possível, o analista não tem que condenar de antemão o perverso como um homem mau, tampouco deve tratá-lo como a um neurótico para evitar empregar esse diagnóstico como um juízo condenatório. O termo "perversão", que na linguagem comum é injuriante ou condenatório, interessa profundamente ao perverso já que recusou a "normalização" neurótica do desejo. Noventa e sete porcento dos analisantes preferem ser considerados "neuróticos", ditos bons pacientes. Mas boa parte do ensino de Lacan está destinada a liberar os analistas do pré-juízo de que o perverso é mau, de que o psicótico é louco e de que a psicanálise é só para os neuróticos bons pacientes. O uso do diagnóstico em psicanálise não é com finalidade de juízo moral nem de etiqueta que estigmatiza. Não se deve empregá-lo para segregar, mas para admitir, como instrumento para alojar melhor distintos tipos de analisantes, e não somente aos que respondem docilmente à interpretação.

 

O analisante psicótico

O psicótico, de sua parte, não pede para ser julgado, ele mesmo já o fez e julgou-se radicalmente inocente se é paranoico (a culpa é do Outro), radicalmente culpado se é melancólico e radicalmente ambas as coisas se é esquizofrênico. Neste último caso, não de modo dividido, duvidoso, mas dissociado, na certeza cada vez – uma certeza que não necessita de consistência lógica nem de constância para ser radicalmente certa, tão certa como a que induz o significante no real cada vez que prescinde de toda mediação imaginária.2 Inicialmente, o psicótico sustenta fora do laço social seu desejo de existir. Inclusive o esquizofrênico, que relata suas realidades contraditórias e inverossímeis, não é bobo, não é demente, não é cego em relação ao desejo e ao julgamento do Outro; é lógico, é irônico, sabe que o efeito que produz no Outro é de divisão. E, se em alguns casos insiste surpreendentemente em voltar à análise, é porque aposta que o Outro o escute, inclusive nas condições que propõe sua estranha posição no ser.

Pensar que na psicose não há estabelecimento da transferência é inadimissível depois da questão preliminar proposta por Lacan e das consequências que ela implica em termos da Escola de psicanálise.3 É mais conveniente dizer que o psicótico é abordável como sujeito quando somente há transferência, quando todas as posições subjetivas lhe estão reservadas nesse momento da entrevista em que a função da palavra bascula em direção à presença do ouvinte, quando fica claro que se há transferência não há intersubjetividade. O analisante psicótico, com frequência o mais constante e decidido dos analisantes, é o que exige mais radicalmente a deposição da pessoa do analista.

Mas também é o analisante que mais radicalmente exige ao analista pagar com seu juízo íntimo. Efetivamente, exige esse pagamento com absoluta veemência e somente aceita ao analista quando esse admite:

• testemunhos inverossímeis, que o próprio psicótico sabe inconcebíveis a partir de uma realidade compartilhada;

• usos neológicos da linguagem e outros procedimentos desestruturantes do laço social, nos quais um dizer afirma-se como passagem ao ato, como des-enlace por fora de todo o código social, semântico ou sintático compartilhado;

• propósitos delirantes de redenção, de glória, de morte, desígnios cuja nota de impossibilidade é exagerada até a caricatura por eles mesmos.

Convidar esse dizer fora de discurso à análise, sintomatizar o sujeito da psicose, exige previamente entrar numa cumplicidade no plano do ser que começa pelo pagamento de todo juízo de realidade, de gosto, de finalidade. Lacan assinalou que o melhor modo de entrar em um laço social é previamente sair pela tangente. Somente se o analista admite sair da realidade compartilhada do discurso comum poderá voltar ao discurso analítico acompanhado pelo louco, que é "o homem livre". Receber o homem liberado das ataduras sociais é angustiante para quem não tem defesas muito fortes como o psiquiatra experiente, e também para o psicanalista que não está em conformidade com essas margens de liberdade que felizmente lhe abre a estrutura falha em que assenta seu ser.

 

Para concluir...

Assinalemos que a dificuldade do analista em pagar com seu juízo íntimo costuma ser o desencadeante do término das análises. Uma vez que o analisante esgotou todas as variantes daquilo que na intimidade do analista "incomoda a sua defesa", conforme se expressa Lacan, a análise pode ser dada por terminada, se assim o decide o analisante.

A fisis, o que se manifesta, ama ocultar-se, dizia Heráclito; o que se cala, ama manifestar-se de outro modo, acrescenta Freud. O juízo íntimo, essa instância ética próxima ao núcleo do ser, não poderia ser totalmente ignorado nem sequer pelo neurótico, o mais exitosamente reprimido, o menos perceptivo de todos os analisantes possíveis. Seus gostos, seus prejuízos inconscientes, suas vacilações sintomáticas, suas expectativas terapêuticas ou didáticas a respeito do fim e das finalidades da cura, mesmo que o analista as reserve para si, de todo modo, podem ser advertidas e exploradas metodicamente pelo inconsciente analisante ao longo da cura. Em psicanálise, o íntimo costuma ser êxtimo, aquilo que se dissimula comunica-se entre linhas, o que se cala repete-se, que mais não seja, por omissão, o que aparentemente oculta-se, assinala-se sigilosamente, o inconsciente entende o oxímoro e o silêncio.

 

Buenos Aires, setembro de 2012.

 

Tradução: Maria Cláudia Formigoni

Revisão: Ida Freitas

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: gabriellombardi@fibertel.com.ar

Recebido: 22/01/2013
Aprovado: 25/03/2013

 

 

* Médico. Doutor em Psicologia pela Universidade de Buenos Aires. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Professor titular de Clínica de Adultos na Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires e integrante da Comissão de Doutorado. Diretor do Serviço de Clínica psicanalítica da Universidade de Buenos Aires em Avellaneda. Pesquisador categoria I do Ministério da Educação da República Argentina. Autor de Clínica e lógica da auto-referência.
1 Esse texto baseia-se no que foi apresentado no VII Encontro Internacional da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, Que responde o analista? Ética e técnica, no Rio de Janeiro, em julho de 2012.
2 Cf. Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a "Verneinung" de Freud, de Jacques Lacan (1956/1998), e Inocência paranoica e indignidade melancólica, de Colette Soler (1988).
3 Cf. não só a Proposição de 9 de outubro ao psicanalista da Escola (LACAN, 1967/2003), mas também o Pequeno discurso de Lacan dirigido aos psiquiatras (1967/inédito), pronunciado algumas semanas depois de dita Proposição.