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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.27 Rio de Janeiro out. 2013

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

O ato falho cifrado: que lugar para o ato analítico?

 

The parapraxis cipher: what place for the analytic act?

 

 

Lenita Pacheco Lemos Duarte*

Associação Fóruns do Campo Lacaniano - Rio de Janeiro - AFCL RJ
Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano - IF-EPFCL-Brasil
Formações Clínicas do Campo Lacaniano

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é mostrar como o ato analítico, por meio de cortes, pontuações e interpretações, a partir do desejo do analista, possibilita mudanças subjetivas em seus analisantes. A título de exemplo, apresento recortes de um caso clínico, destacando o ato falho cifrado, a "chupada", enunciado por Lila, que a levou à análise para tentar decifrar seu dito enigmático que expressava a condensação de um gozo que lhe suscitava questões. O dispositivo analítico possibilitou-lhe a emergência do sujeito do desejo.

Palavras-chave: Ato falho, Ato analítico, Transferência, Interpretação, Desejo.


ABSTRACT

The purpose of this work is to show how the analytic act, through cuts, punctuations and interpretations, beginning from the psychoanalyst's desire, makes possible subjective changes in his/her patients. As an example, I present fragments of a clinical case, emphasizing the codified flawed act, "the sucking", expressed by Lila, which has taken her to psychoanalysis in order to try to decipher her enigmatic saying that expressed the condensation of a jouissance that provoked many questions for her. The analytical experience made possible the emergence of the subject of the desire.

Keywords: Flawed act, Analytic act, Transference, Interpretation, Desire.


 

 

Para iniciar este trabalho, esclareço que tomei como ponto de partida o ato falho cifrado "a chupada", enunciado por uma analisante, Lila, que levou-o à análise para tentar decifrar seu dito enigmático que expressava a condensação de um gozo que lhe suscitava questões, manifestações de angústia e desejo de decifrá-lo. Embora sua demanda inicial tenha sido para sua filha de quatro anos, em suas associações percebi que a menina apresentava sintomas que visivelmente estavam associados à dinâmica conturbada do par parental, como poderá ser visto durante a apresentação de recortes do caso clínico.

Diante da riqueza de chistes, atos falhos e questionamentos apresentados durante a análise de Lila, interessei-me, inicialmente, por fazer uma breve pesquisa com a proposta de ilustrar como o ato analítico, por meio de cortes, pontuações e interpretações, a partir do desejo do analista, possibilita retificações subjetivas sobre o sujeito do inconsciente, do desejo e suas manifestações.

Este caso me levou a estudar e refletir sobre o retorno a Freud de Lacan, quando ele [Lacan] acrescenta outras abordagens sobre o ato analítico, como o corte, a pontuação e a interpretação, apresentadas ao longo de seu ensino. Busco mais subsídios teóricos sobre os efeitos do ato analítico articulando-os com a clínica.

O dispositivo analítico possibilita a emergência do sujeito do inconsciente, do desejo. Mas de que sujeito se trata?

 

O sujeito do inconsciente

A partir do conceito freudiano de inconsciente aparece uma nova concepção de sujeito, de um sujeito dividido, portador de um desejo do qual ele não sabe. A psicanálise subverte o cogito de Descartes, "penso, logo sou", apontando para "sou onde não penso, e penso onde não sou". E é desse lugar descentrado que o inconsciente vai se manifestar, onde o "eu da consciência", cartesiano, não se confunde com o sujeito do desejo. O processo de divisão (spaltung) do sujeito apreendido por Freud vai ser generalizado por Lacan (QUINET, 1998, pp. 17-18), que afirma que essa é a característica fundamental do sujeito do inconsciente, onde qualquer ideal de harmonia e a noção de inteiro é incompatível com o conceito de sujeito.

Lacan também se baseia no conceito freudiano da repetição, que não é pelo prazer, mas que vai acontecer também no nível do inconsciente, ou seja, tem sempre as mesmas cenas ou palavras voltando ao sujeito, determinando a sua vida. Retornam tanto nos pensamentos, nos atos, como nas falas, sinalizando que o inconsciente está amarrado na repetição, articulado numa pulsão de morte1 (QUINET, 2000, p. 74).

Para a psicanálise, segundo Lacan, o uso da palavra sujeito é algo pontual, quer dizer apenas o efeito de sentido da linguagem. O sujeito não corresponde ao indivíduo, à pessoa, mas ao que encontramos a partir de um enunciado, o que necessariamente o insere no campo do mal-entendido, que é uma decorrência necessária do desacoplamento entre significante e significado, sempre exigível, do ponto de vista lógico, para que exista o sujeito. No texto A Instância da letra no inconsciente (1955/1998, pp. 500-502), pode-se observar Lacan recorrendo ao signo linguístico de Ferdinand de Saussure. Para este autor, o signo linguístico decompõe-se em significado (s) – o conceito – e significante (S) – imagem acústica, o som da palavra: s/S, que são solidários. Lacan inverte essa relação, passando o significante a anteceder o significado, S/s, apontando que o significante corresponde à palavra esvaziada de seu significado, é o som da palavra. Ele diz que o inconsciente se instaura muito mais pelo significante do que pelo significado, tratando-se de duas ordens distintas separadas por uma barra resistente à significação que pode ser identificada ao próprio recalque,2 ou seja, o sujeito repele ou mantém no inconsciente certos pensamentos, imagens e recordações.

Onde Freud desvela as leis do inconsciente, sublinhando a proeminência do jogo das palavras, das falas e das associações livres, como pode ser visto nos seus artigos A Interpretação dos Sonhos, Psicopatologia da Vida Cotidiana e Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente, Lacan (1998) formula, em 1953, no texto Função e Campo da Fala e da Linguagem, o aforisma do "inconsciente estruturado como uma linguagem". O inconsciente é o discurso do Outro, onde encontramos a conjunção do simbólico com o inconsciente: inconsciente é linguagem. Linguagem que tem uma lógica e uma articulação própria que desconhece a contradição e é atemporal, como Freud caracterizou o inconsciente. Este é a soma dos efeitos da fala sobre o sujeito, no nível em que o sujeito se constitui dos efeitos do significante. O inconsciente estrutura-se na superfície que aflora em discursos.

O que Freud chama cadeia associativa, Lacan vai nomear de cadeia de significantes, um significante articulado a outro e a outro, e que só no final de uma frase teremos o sentido do primeiro significante, no a posteriori (Nachträglichkeit), que é o tempo da psicanálise.

Segundo Lacan, o inconsciente tem leis, as leis de linguagem, metáfora e metonímia, que Freud já havia apreendido como condensação e deslocamento, respectivamente. A metáfora é a substituição de uma palavra por outra. O sintoma é uma metáfora (LACAN, 1955/1968, p. 532), uma substituição de significantes, que permite confundir o lugar do sujeito; e a metonímia é a articulação de um significante ao outro, por deslizamento. A metonímia é característica do desejo (Ibid., p. 532), já que o desejo é sempre desejo de outra coisa. O sintoma é tecido de linguagem, portanto sensível à palavra. O ato analítico vem possibilitar a redução do gozo do analisante ao lhe ser oferecido o convite: "Fale... prossiga! Diga mais!".

Para dispor de mais fundamentos teóricos sobre o ponto que quero desenvolver neste trabalho – os efeitos do ato analítico sobre as manifestações do inconsciente na clínica –, recorro aos textos que abordam o referido tema, principalmente ao de Lacan, A direção do tratamento e os princípios do seu poder (1958/1998), entre outros.

 

A interpretação

A primeira interpretação que Freud realizou ao fundar a psicanálise é que quem interpreta o sonho não é o analista, quem interpreta o sonho é o sonhador. O sonho é um fenômeno, e só é uma formação do inconsciente na medida em que ele passa para o relato. É no relato do sonho que se encontra o sonho como formação do inconsciente. Freud diz que todo sonho tem uma realização do desejo. A partir do relato do sonho capta-se o desejo. Se formos associando o sonho, observa-se que ele pode ter múltiplas direções, como vemos na clínica. Pode-se chegar a determinadas cenas vivenciadas na infância, e se deixarmos, a associação livre vai continuar a associar outras coisas.

A interpretação em momentos diversos das obras de Lacan visa a coisas diferentes: visa ao desejo, depois à causa do desejo, e em seguida ao sintoma, quando ele vai definir a interpretação como equívoco, pela propriedade de equivocidade do significante. Nos anos 1974/75, no final do seu ensino, Lacan indica que a interpretação como equívoco é a única arma que o analista tem contra o sintoma.

A interpretação vai ser equivalente ao desejo, como Lacan nos apresenta no texto A direção do tratamento e os princípios do seu poder (1958/1998): "O desejo é sua interpretação", e a interpretação vai ser o modo que se apreende o que é o desejo, o efeito do desejo numa análise, como se capta o desejo como efeito. Não se trata da nomeação do desejo, já que este vai corresponder a uma das leis da linguagem, ou seja, à metonímia. No campo da linguagem a interpretação está vinculada diretamente ao desejo.

Lacan destaca a importância de preservar o lugar do desejo na direção do tratamento (1958/1998, p. 640). O analista tem o poder de decidir o local, quando e como fazer a interpretação, e seu poder também vai diminuindo à medida que ele vai ficando menos livre até para conduzir a análise.

O conceito de interpretação analítica se afasta do conceito de interpretação hermenêutica da significação fixa, da delirante e das interpretações dos sonhos descritos na Grécia Antiga e também na Bíblia. O que é propriamente a intervenção do analista enquanto interpretação é outra coisa, como diz Lacan (1958/1998, p. 640). Ele propõe que a interpretação é uma fala que vem suspender a marca que o sujeito recebeu do Outro, do seu dito; na medida em que fala, é o Outro que aparece, e o que vai aparecer são as marcas que recebeu do Outro que o alienam na série do tu és. Esse tu és que recebe dos pais, que vão alienando o sujeito, e vai se sentindo obrigado a obedecer à palavra do Outro, são as marcas de significantes. Ele propõe a interpretação como algo que venha suspender essa marca que o sujeito tem e que o mortifica. Há aqui a mortificação do Outro pelo significante e que podem ser os mais banais, como: bem educado, inteligente, bonzinho, mas podem ser significantes mortificadores.

A interpretação seria algo que suspenderia isso para que haja uma possibilidade de o sujeito deslizar na cadeia significante e não ficar preso a um que ele sempre resiste, pois que ao mesmo tempo é significante ideal que ele nunca consegue ser, mas se sente obrigado a ser. Aparece o supereu medindo-o o tempo todo com aquele significante ideal que veio do Outro e que o sujeito não suporta. Ele se sente completamente submetido à demanda do Outro.

No artigo citado (1958/1998), Lacan descreve a interpretação como uma tática do analista na direção da análise, principalmente na primeira, segunda e quinta partes do texto. Existe uma direção do tratamento na clínica dos discursos que colocamos na própria circulação dos discursos. Há uma direção no tratamento que o analista deve fazer, que vai do discurso do mestre, como equivalente ao discurso do inconsciente, ao discurso do analista, como o avesso do primeiro. Ele deve ir contra o próprio inconsciente.

A interpretação é a tática na direção do tratamento. Lacan diz que as armas do analista são a interpretação, a manobra da transferência (estratégia) baseada na política da falta-a-ser, onde não há imposição de um poder ou de uma sugestão. A manobra da transferência é para ir contra a transferência, a interpretação é para pescar o desejo e a falta-a-ser é para manter a falta no seu devido lugar (1958/1998, pp. 585-649).

Lacan vai equivaler a interpretação a um encontro, e aí já é a tática. Em uma sessão cabe uma só interpretação. Na medida em que há um corte na sessão, este momento, algo que ele chama de interpretação. Lacan mostra que a função da pressa precipita não só as formações do inconsciente, mas o momento de concluir, indo contra a hesitação natural do neurótico. Pode-se dizer, que indo contra a interpretação do inconsciente é que se desvelam as identificações do sujeito, as alienações do sujeito aos ditos do outro.

Segundo os ensinamentos de Lacan, na medida em que o inconsciente mostra essa alienação do sujeito ao significante, a sessão como interpretação vai contra o sentido da alienação (1958/1998, pp. 591-598). Como fazer isso se o tratamento é com o sujeito, é no sujeito? Lacan mostra que o analista deve abdicar do seu poder transferencial.

Em relação ao manejo da transferência, Lacan (1958/1998, p. 595) ressalta que "a psicanálise deva ser estudada como uma situação a dois", dizendo a si mesmo que tem que contemporizar com um fenômeno pelo qual não é responsável. Nesse sentido, lembra da insistência de Freud em enfatizar sua espontaneidade com o paciente. Lacan acrescenta que é impossível raciocinar com o que o analisado leva a pessoa do analista a suportar de suas fantasias como com o que um jogador ideal avalia das intenções de seu adversário, alertando para a existência de uma estratégia. E nos sugere que na análise, num jogo a dois, os sentimentos do analista só têm um lugar possível: o de morto. É a partir daí que Lacan afirma: "O analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática". Continuando, diz que "O analista é ainda menos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser" (Ibid., p. 596).

Sobre a interpretação, Lacan (Ibid., p. 594) observa:

Intérprete do que me é apresentado em colocações ou atos, decidido acerca de meu oráculo e o articulo a meu gosto, único mestre/senhor em meu barco, depois de Deus, e, claro, longe de poder avaliar todo efeito de minhas palavras, mas advertido e procurando prevenir-me contra isso, ou dito de outra maneira, sempre livre quanto ao momento, ao número e também à escolha de minhas intervenções, a tal ponto que a regra (associação livre) parece ter sido inteiramente ordenada para não atrapalhar em nada meu trabalho de executante.

Nesse sentido, entendemos que é preciso haver analista para fazer existir o inconsciente, o qual dirige o tratamento. Assim, o efeito da interpretação é sempre incalculável, uma vez que é sempre correlata aos ditos do analisante e deve corresponder a isso.

Quem interpreta é o sujeito da associação livre, que é o próprio inconsciente que o analista vai fazer existir, e mostrar qual é a interpretação que o analisante está dando àquele sonho, àquele sintoma.

 

O ato falho, o lapso como interpretação

A troca de uma palavra por outra é um lapso, é uma interpretação, como indica Lacan. Pode-se dizer que o próprio fundamento da interpretação diz que simplesmente há desejo. Não houve apenas lapso, e o sujeito vai associar a partir desse lapso para tentar dizer: eu troquei uma palavra por outra, e aí ele mesmo vai dar o sentido do que foi aquilo, relacionando com um determinado fato, e continua associando e dando novos sentidos. Pode-se afirmar que esse fato de estrutura mostra que um evento psíquico possa ter várias interpretações.

Lacan avança em relação à interpretação analítica no início do seu ensino, em dois pontos: a pontuação e a interrupção, o corte da sessão como algo interpretativo.

 

A pontuação como interpretação

Temos a indicação da pontuação como um corte. Corte na medida em que o sujeito enuncia aquilo, suspende-se a sessão naquele momento, aquilo pode esvaziar de sentido, pode fazê-lo interrogar-se sobre por que parar ali, e aí pode-se abrir uma hiância, ao se ouvir o corte como um significante.

Podemos pensar em vários tipos de pontuação. O que é uma pontuação? Pode ser equivalente a um ponto numa frase, uma vírgula, aspas, um ponto-e-vírgula, uma exclamação etc. A primeira proposta de Lacan na interpretação é uma pontuação sem texto. O hum, hum, pode ser um ponto. Um Ah! Pode ser outro. É ? um ponto de interrogação.

Essa é a primeira entrada de Lacan para falar de uma teoria da interpretação que saia da sugestão, porque o problema é que a palavra em si é sugestiva, hipnótica, as pessoas dormem, ou ficam fixadas nelas. A própria palavra tem um poder sugestivo, de hipnose, do que é próprio do significante, ainda mais vindo do analista que está no lugar do Outro, isso lhe confere um poder muito grande.

Um tipo de interpretação é a pontuação como forma de enunciação sem enunciado. Pode-se observar o corte da sessão como uma função interpretativa no sentido de uma pontuação. Devolver o sujeito ao seu desejo: é possível dizer que o desejo é justamente o que emerge no desenrolar da cadeia associativa, da cadeia significante. (S – S' – S'', S''', ...). Temos a demanda (D): D/d = enunciado/enunciação. Demanda, D, que é a própria fala que equivale a essa fração onde colocamos o enunciado sobre a enunciação.

Pode-se entender que a pontuação do texto é uma indicação ao leitor de como ele deve ler o texto. Tem uma vírgula, faz uma pausa um pouco suspensiva, um ponto, para etc. O leitor deve seguir a pontuação. É aquilo que tenta colocar na escrita a enunciação do escritor. Isso aparece no estilo. A pontuação é aquilo que no texto faz aparecer a enunciação que está na fala. Um texto qualquer, dado a vários atores, vai suscitar diversas enunciações do mesmo enunciado de formas diferentes. Por isso que tem efeito o analista recortar uma frase, uma palavra do texto do analisante e repetir com a sua enunciação, o que já vai trazer um algo que vai ser elevado ao dito interpretativo, a uma interpretação, sem o analista ter colocado nenhuma palavra dele. Isso é uma forma de aspar o texto, uma forma de interpretação. Lacan (1969-70/1996) fala disso em O Seminário, livro 17: o avesso da Psicanálise, onde fala do enigma e da citação. A citação entraria como um tipo de pontuação. Numa análise, é o analista quem pontua, como ensina Lacan.

 

Sobre a demanda

O que é a demanda? É o que ele faz equivaler à própria fala do sujeito. Essa personificação do Outro da demanda é constitutivo da própria fala, e é isso que confere o poder nos dois sentidos: poder no sentido de abuso de poder, mas também poder com a possibilidade de que um tratamento se desenrole a partir da fala. É a análise como o tratamento pela palavra.

Lacan mostra que a interpretação não visa à demanda, porque responder à demanda está na ordem da sugestão, e qualquer resposta à demanda significa que não se está atuando mais no âmbito da psicanálise, mas no da psicoterapia.

Lacan diz que o que aparece na fala são os significantes da demanda que sustentaram as frustrações em que o desejo se fixou. É isso que voltará à análise, é esse retorno, e isso não aparece só na análise, mas em outras situações. Por exemplo, em uma briga entre duas pessoas que tenham um relacionamento, começa com queixas e acusações pontuais que cada uma das partes faz. A partir daí, observa-se que há situações frustrantes em que algo do desejo se fixou, e isso voltará e será desfolhado na análise.

Realizada esta pesquisa, procuro mostrar como o ato analítico, por meio de cortes, pontuações e interpretações, a partir do desejo do analista, possibilita mudanças subjetivas. Um ato falho enigmático de uma paciente que lhe desencadeou intensa angústia, levou-a a demandar análise para tentar decifrá-lo e responder aos seus questionamentos acerca das constantes manifestações inconscientes que evidenciava. A seguir, apresento fragmentos do referido caso clínico para ilustrar o percurso teórico estudado.

 

A "chupada" de Lila: um ato falho enigmático

A demanda inicial de Lila visava à avaliação da filha, quatro anos de idade, a pedido da direção da escola, onde ela se mostrava regredida, angustiada, dependente, chorando por qualquer motivo, inquieta e agressiva, pedindo sempre colo e chupeta. A mãe compareceu sozinha à sessão alegando que me escolhera porque ouvira falar sobre minhas experiências com crianças. Mostrando-se preocupada, indagava-se sobre os sintomas da filha, os motivos pelos quais ela regredira, não conseguindo dispensar a chupeta quando, durante a entrevista, acabou relatando fatos de sua vida conjugal conturbada, em constantes conflitos com o marido. E antes de marcarmos a sessão para sua filha, Lila pediu orientações sobre seu casamento, como mudar de atitudes, mas ao não receber respostas da analista na posição de Outro, de sujeito suposto saber sobre sua verdade, suas queixas se transformaram em demanda de análise para ela.

Lila informou que ao voltar sozinha à residência, após longa jornada de trabalho como médica, no setor de emergência, seu carro enguiçou sem que ela pudesse solucionar o problema. Era noite, e ela que dava plantão de 24 horas, relatou que precisara trabalhar mais 12 horas por falta de profissional, sem poder descansar. Disse que acenou na rodovia pedindo ajuda, quando um carro parou e um jovem indagou o que ocorrera. Como Lila identificou a causa do defeito como "bateria fraca", pediu ansiosamente a ajuda dele, exclamando: "Meu carro precisa de uma "chupada!". Ao perceber o rapaz arredio, quieto, ela nervosa, repetia, de forma categórica: "É preciso uma ou mais chupadas!". Faça! Ela disse que o motorista ficava aturdido, vacilante e tenso a cada vez que ela insistia na "chupada". Quanto mais ela pedia, mais ele mostrava-se sem jeito, criando-se um clima de mal-estar. Ao notar a falta de iniciativa dele diante de sua fala, Lila conseguiu perceber que estava se expressando de forma incorreta, pois o que queria dizer era: "Meu carro precisa de "chupeta/". Essa fala, incompreensível para Lila, a levou a se questionar sobre seu ato falho: por que dissera "chupada" em vez de "chupeta", termo tão comumente utilizado no cotidiano da linguagem mecânica? Pontua a analista: "Você queria então a chupada do motorista... Era esse o remédio que precisava". Lila retrucou: "Não era isso, não". Estranhando, ela procurava negar, quando corto a sessão. Eu me espanto com o que havia pontuado e depois que ela sai, indago-me: "Quais seriam os efeitos do meu dizer? Será que ela voltaria?".

O ato analítico vem direto do inconsciente, revelando a dimensão do não saber do próprio analista. A expressão do ato falho "chupada" mostrava, ao mesmo tempo, a realidade e o desejo inconsciente. A clínica do ato é a clínica do real, que só tem consistência lógica, escapa do imaginário e do real, e está para além das palavras, como sinaliza Lacan. Em Freud é a clínica do simbólico, da palavra. O ato analítico marca um antes e um depois, marca uma virada no sujeito, na realidade dele com a sua própria realidade psíquica que não volta atrás, o que se percebe na cadeia significante. Lacan (1967-68/2003, p. 371) afirma que "o psicanalista, na psicanálise, não é sujeito, e que, por situar seu ato pela topologia ideal do objeto a, deduz-se que é ao não pensar que ele opera".

Segundo Lacan, a interpretação em psicanálise busca o caminho da decifração, não somente como técnica, mas também como tática específica do discurso do analista. No artigo A Direção do Tratamento (1958/1998, pp. 585-649), Lacan ressalta que as armas do analista são interpretação (tática) e a manobra da transferência (estratégia) baseadas na política da falta-a-ser, onde não há imposição de um poder ou de uma sugestão. A manobra da transferência é para ir contra a transferência, a interpretação é para pescar o desejo e a falta-a-ser é para manter a falta no seu devido lugar.

Lila retornou à sessão e falou da troca de palavras, acrescentando que ao notar a inércia do jovem motorista diante da situação, disse que, só depois, conseguira perceber seu dito, pois o que queria dizer era que seu carro precisava de uma "chupeta", pois a bateria estava fraca. Esse fato levou Lila a se lembrar e indagar sobre seus esquecimentos e atos falhos constantes, motivo de alguns equívocos em sua vida cotidiana, nas situações mais impróprias, causando risos, gargalhadas e, às vezes, mal-estar. Por exemplo, certa vez, quando ia à praia, pediu à empregada para apanhar na gaveta "remédio", quando queria falar "biquíni".

Freud percebe em suas pesquisas que tanto no ato falho como no chiste, a palavra falha. O que provoca o riso no chiste é quando a crença na palavra é abalada. Ela pode mudar de sentido quando menos se espera. Não crer na palavra nos faz pensar em meia-verdade e, como afirma Lacan (1969-70/1996, p. 49): "[...] nenhuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um semidizer, que ela não pode ser inteiramente dita porque, para além de sua metade, não há nada a dizer".

No Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1962-63/1996), Lacan observa o sujeito além da via da falta (do desejo), mas principalmente pela via do excesso (do gozo), o que traz consequências para a interpretação. Uma delas é que "não visa tanto ao sentido quanto reduzir os significantes a seu não-senso" (1962-63/1996, p. 236-237), mas buscar os significantes que marcaram e determinaram a vida do sujeito, nos quais este se encontra alienado. Outro efeito é que a "A interpretação não está aberta a todos os sentidos. Ela tem por efeito fazer surgir um significante irredutível (Ibid., pp. 236-237).

Na transferência com a analista dá-se o inconsciente, e é por meio da associação livre que Lila procura decifrar o seu enigma, ao fazer deslizar e desdobrar os significantes recalcados que a ele estão atrelados. Lacan ensina que a interpretação do analista deve jogar com o equívoco, porque o equívoco é a maneira de liberar o sintoma.

Lacan formaliza o matema da transferência (QUINET, 1993, pp. 30-36), onde um significante do analisante (S) se dirige a um significante qualquer (Sq), que vem representar o analista. É a partir dessa articulação significante, do que é simbólico da transferência, que a associação livre começa a se desenrolar na própria transferência, sinalizando a entrada em análise.

 

 

Nesse caso, Lila, "a menina carente" (S), com a bateria descarregada, que precisa de "remédio e chupeta", dirige-se à analista experiente para atender às demandas de "crianças dependentes e impacientes" (Sq).

Instalada no discurso histérico, Lila repetia: "Por que dissera 'chupada' em vez de 'chupeta'?" Esta questão passou a ser um dos enigmas a ser decifrados durante o tratamento analítico. Para a angústia sentida no episódio do carro enguiçado, Lila tentava dar variados sentidos. O significante "chupada", como ato falho cifrado, equivale a um nó de significações, tendo efeito equivocado e enigmático sobre ela, que procurava decifrá-lo: "Chupada, chupar, chupeta...". Chupada remete à preocupada, amada quando desmembramos nos significantes "chupa" mais "ada". Chupada também remete à questão da sexualidade, vindo no lugar do que está recalcado, tema geralmente proibido. Como justificar seu desejo, no pedido equivocado dirigido ao motorista desconhecido? Associando livremente, Lila dizia que havia três noites não dormia em casa, que estava com saudades da filha e do marido, mas vê-lo não seria possível, pois além de brigados, ele estava viajando e ela ainda suspeitava e temia que ele estivesse com outra mulher. Enfim, identificada com a filha dependente e carente, ela teria que se contentar com a "chupeta", no lugar do "biquíni", permanecendo insatisfeita em seu desejo. Os sintomas da filha sugerem o que diz Lacan na Carta à Jenny Aubry: "O sintoma da criança responde ao que há de sintomático no casal familiar" (2003[1969], p. 369).

No caso de Lila, observa-se que o significante enigmático "chupada", associado à "chupeta", vinculava-se ao desejo de ser amada pelo motorista/marido, indicando o "remédio" que precisava para o desejo inconsciente recalcado, que emergiu no ato falho decifrado a partir do ato analítico.

Os lapsos e chistes expressos por Lila ilustram o que nos ensina Quinet (1993/1998, p. 30): "Toda análise é uma experiência de significação, correlata ao inconsciente, que dá prevalência do significante sobre o significado", ao ressaltar que:

[...] para Freud, as formações do inconsciente, ou seja, os sonhos, os sintomas, os lapsos, os esquecimentos são todos da ordem de um chiste, de trocadilhos, porque eles funcionam muito mais na base do jogo de significantes do que na base dos significados, o que coloca em cena a tese lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem. Quando se define um significante por outro, ou seja, dando um significado temos, então, outro significante, e depois outro, e assim sucessivamente. Dessa forma é constituído o inconsciente.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: duartelenita@gmail.com

Recebido: 17/02/2013
Aprovado: 30/04/2013

 

 

* Psicóloga. Psicanalista. Membro da AFCL RJ e da IF-EPFCL-Brasil. Participante de Formações Clínicas do Campo Lacaniano. Pós-graduada em Psicanálise pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
1 "A noção de pulsão de morte foi introduzida por Freud em Além do princípio do prazer (1920) e constantemente reafirmada até o fim da sua obra. No quadro da última teoria das pulsões, Freud designa uma categoria fundamental de pulsões que se contrapõem às pulsões de vida e que tendem para a redução completa das tensões, isto é, tendem a reconduzir o ser vivo ao estado inorgânico. Voltadas inicialmente para o interior e tendendo à autodestruição, as pulsões de morte seriam secundariamente dirigidas para o exterior, manifestando-se então sob a forma da pulsão de agressão ou de destruição" (LAPLANCHE e PONTALIS, 1991, p. 407).
2 "Operação pela qual o sujeito procura repelir ou manter no inconsciente, representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão. O recalque produz-se nos casos em que a satisfação de uma pulsão – suscetível de proporcionar prazer por si mesma – ameaçaria provocar desprazer relativamente a outras exigências" (LAPLANCHE e PONTALIS, 1991, p. 430).