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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.27 Rio de Janeiro out. 2013

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Diztrinchar a interpretação

 

Unravelling the interpretation

 

 

Zilda Machado*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Belo Horizonte

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O que é a interpretação psicanalítica? Tentar responder esta questão é a tarefa a que me dediquei neste texto. Seria possível destrinchar esse conceito? Mas já no título mesmo, algo da interpretação analítica se revela: uma operação significante, a "intrusão significante" de que deve ser capaz o analista, nos aponta Lacan, para atingir o que está fora do sentido. Partindo de lalíngua e, portanto, da constituição do sujeito com a escrita do texto inconsciente, tentarei demonstrar que na lalíngua própria de cada um se enodam os significantes que marcaram aquele sujeito em particular com o gozo por ele experimentado: a palavra encarnada. São estes significantes que a escuta da associação livre deve colher. Por meio de alguns fragmentos clínicos tentarei demonstrar a operação do analista que aconteceu ali, provocando um corte no sentido e forçando, consequentemente, outra escrita.

Palavras-chave: Interpretação, Inconsciente real, Lalíngua, Clínica psicanalítica.


ABSTRACT

What is the psychoanalytic interpretation? An attempt to answer this question is the task I have set myself in this text. Would it be possible to unravel this concept? But in the very title, something about the analytical interpretation is revealed: this is a significant operation, the "intrusion of a signifier" the analyst should be capable of, Lacan points out, in order to reach what is out of the sense. Departing from lalangue, and therefore from the constitution of the subject with the writing of the unconscious text, I will try to demonstrate that in each subject's lalangue there are signifiers entwined, which mark that particular subject in relation to the jouissance experienced by him: the incarnate word. Those are the signifiers that the free association hearing shall pick up. Through some clinical fragments I will try to demonstrate how the analyst operates, causing a cut in the sense and consequently forcing another writing.

Keywords: Interpretation, Real unconscious, Lalangue, Psychoanalytical clinic.


 

 

"É da lalíngua que opera a interpretação", nos diz Lacan (1974/2002, p.52) em A Terceira. E a seguir acrescenta: "a interpretação deve tomar sempre o essencial que há no jogo de palavras, é a isso que nossa interpretação deve visar para que ela não alimente o sintoma de sentido".

Então, partamos de lalíngua, o simbólico que concerne ao inconsciente, o tempo inaugural do ser falante em sua aventura na linguagem, onde a voz do Outro se destaca dos barulhos do mundo, se constitui como presença pulsional e oferece ao infante o banho de língua que humaniza seu corpo e o convoca a entrar em um jogo cujas cartas já estão, a priori, distribuídas.

Estamos aí em um momento primário em que as palavras não têm ainda nenhuma significação, aliás, constituem-se inicialmente como somente sons, barulhos de voz. Sons que se confundem com outros barulhos do mundo. Ou seja, estamos falando do tempo inaugural do bebê humano, captando as palavras que ouve. Esses barulhos de voz são apenas percebidos sem, no entanto, deixar qualquer registro. São rastros que se apagam sem constituir memória. Aos poucos esses barulhos vão se dissipando e se tornam murmúrios da língua, ainda sonorizações sem sentido, a melodia das palavras que inscreve uma modulação, uma entonação. E assim, um registro começa a ser feito por forçar um tracejamento de memória, ou seja, assim inscreve-se um traço.1

As palavras são apreendidas, portanto, não em sua significação, mas em sua materialidade, ou seja, em sua potência material. Potência de quê? De causar o gozo, de provocar o gozo do corpo, embalado pela sonata materna. A forçagem da palavra solfejada termina por sulcar, decalcar na carne uma inscrição que a transmuta em corpo – o leito do Outro – o pergaminho onde se inscreverá o texto inconsciente. O corpo será afetado então pelo que nele, como um pergaminho, foi inscrito: um saber que comanda e que se estrutura em duas lógicas. Tanto como o que força a decodificação – o inconsciente linguagem – a elucubração pela via fálica, ou seja, um saber ao qual se pode ter acesso, quanto resta para sempre aí, no nascedouro, como um saber insabido: o inconsciente real. Ali onde só há sinal do ser, do vivo, o indivíduo, a parte não dividida do falasser: a parte que traz à luz sua singularidade ancorada no "broto da tendência ferida", tendência ferida pelo assujeitamento do sujeito à linguagem. Assujeitamento aos significantes de lalíngua.

Eis aí, nos diz Lacan, o mistério do corpo falante: o real da matriz onde restarão decalcados os S1s – denominados memorial de gozo – o selo que inaugura e força a constituição do sujeito. São os Um(s) encarnados de lalíngua, conotados como letras – letras de gozo. A matéria litoral entre o simbólico e o real, o litoral entre o gozo e a linguagem que inscreveu aquele ser falante em particular. Trata-se aí então de um saber, o saber que comanda sem que possa ser subjetivado e que por nenhum artifício poderá vir a ser sabido, mesmo na análise.

Tempo inaugural do ser falante, portanto, quando as palavras são apreendidas em sua materialidade sonora, em sua pluritonalidade, como marca da presença pulsional do grande Outro. Um tempo ainda sem o apoio do sentido que virá a seguir a nos lançar a todos à debilidade mental, nos dirá Lacan, ao sempre sermos compelidos a dar sentido a tudo. A esta linguagem primeira, de antes do sentido, portanto, Lacan denominou Lalangue (lalíngua) e nos diz que é a ela que concerne o inconsciente e, portanto, a psicanálise.

A questão é que lalíngua, sem o aprisionamento do sentido, se sustenta da homofonia das palavras e, portanto, da equivocidade, por estrutura. Daí provém o mal-entendido da linguagem, berço do falasser. Entrar na linguagem é cair nessa cilada. Aí se desenrola o drama do falasser, causado por um saber insabido, portador de um escrito que ele não é capaz de ler, e sempre compelido a encontrar um sentido para tudo.

Tudo isso concerne ao analista e à sua prática, pois a psicanálise é uma prática pela palavra. A ambiguidade e a homofonia da cadeia de lalíngua constituem também a matriz formadora das apresentações do inconsciente, e, portanto, a matéria de que são formados todos os sonhos, os sintomas, os chistes, as fantasias, ou seja, todo o aparelho psíquico. E é nesse "motérialisme" – ou seja, na materialidade da palavra, que reside a tomada do inconsciente, nos aponta Lacan (1975/1998) na Conferência de Genebra sobre o sintoma, demonstrando o enodamento do sujeito com o gozo, pois, na lalíngua própria de cada um se enodam os significantes que marcaram aquele sujeito em particular, com o gozo por ele experimentado: a palavra encarnada.

Como é então que a palavra do analista poderá ter efeito de cernir o real do gozo? O que se pode esperar do analista para que ele seja capaz de levar uma análise, depois de muito subjetivar, ao ponto da destituição subjetiva, da travessia da fantasia e ainda mais à arte de saber fazer com os restos de saber sem sujeito que continuarão no comando? Sabemos que não se fica fora do domínio do inconsciente. Caberá ao analista, parceiro do inconsciente, com sua escuta e com o ato psicanalítico, colher no discurso da associação livre, nos significantes que compõem a elucubração própria daquele sujeito, os significantes que se associam ao material das palavras encarnadas. Caberá ao analista, com suas intervenções, levar o sujeito ao ponto onde já não há mais parceiro algum, somente o sujeito e seu ser de gozo, pura solidão do falasser, ali de onde provém o ato pelo qual uma análise se conclui.

Lacan nos diz que o analista deve pagar com sua pessoa e pagar com palavras, ou seja, ele não pode se furtar. Dele é exigida uma "intrusão significante" (LACAN, 1970/2003) ou mesmo, uma "ingerência significante" (LACAN, 1967-68/inédito, lição de 17/01/68). Ou seja, concerne ao analista a interpretação.

No entanto, vemos muitas vezes que o analista confunde falar nada com nada falar. Falar nada é abster-se de seus próprios significantes, é abster-se de estar ali como sujeito e consentir com o lugar do analista, o de semblante de objeto a. Nada falar é deixar a análise sem direção. Mas deixemos claro. Não estou dizendo que o analista tem de falar. Não é isso, muitas vezes, o silêncio é sua interpretação. O que quero ressaltar aqui é a operação do analista. Ele opera quando interpreta, ou melhor, ele opera quando corta, quando "trincha". "Trinchar": cortar com certa arte. Ele interpreta quando sua operação é corte, com a perícia que Lacan, citando Aristóteles diz ser "comparável ao bom cozinheiro que sabe fazer passar a faca no ponto que é justo, de corte das articulações, sabe penetrar sem feri-las" (LACAN, 1958-59/inédito, lição de 27/05/59). O analista corta a articulação de sentido, o automaton da debilidade mental, o que engorda o sintoma. Ele corta a interpretação que o inconsciente já fez. Ele corta para atingir o que está fora do sentido, para cernir o real, e por questão lógica, isso força outra escrita. Ele corta para que outra escrita (ou outra costura) se faça. Ou podemos dizer com Lacan (1977-78/inédito) no seminário O momento de concluir:

[...] O analista, ele trincha. O que ele diz é corte, quer dizer, participa da escrita, só que para ele, ele equivoca na ortografia. Ele escreve diferentemente, de forma que por graça da ortografia, de uma forma diferente de escrever, ele toca outra coisa que não aquilo que é dito. (p. 23)

Então, tomemos uma pergunta de Lacan (1978/1995):

Como é que se sussurra ao sujeito que se tem em análise alguma coisa que tem como efeito curá-lo? Essa é uma questão de experiência. [...] Como isso é possível? Apesar de tudo o que eu disse na ocasião, não sei nada sobre isso. É uma questão de trucagem. (p. 66)

Ou seja, qual é o truque do analista para levar uma análise ao seu final? Até mesmo Lacan disse não saber nada sobre isso. No entanto, é esse assunto que nos interessa aqui. Sobre ele estamos debruçados para minimamente cernir o de que se trata na operação analítica. Trago alguns recortes clínicos numa tentativa de apresentar elementos para esta discussão.

A analisante diz: minha vida agora está difícil, fico só por conta de casa, marido e filhos, muito diferente do que eu era. Quando era criança eu era de parar o carrinho de rolimã com o tênis! A analista diz: "com o tênis? (mas ao pronunciar esta palavra o faz com certa flexão que esconde o p. Algo mais ou menos assim: "com o 'ênis', puxa, mas que potência, heim?" Ela ri e fala, "pois é, mas agora o buraco é mais embaixo". A analista diz: "é isso! Agora o buraco é mais embaixo", e interrompe a sessão. Ela ri muito e sai dizendo: "puxa vida, eu achava mais fácil ser homem, né?". Nada se falou ali às claras, tudo por alusão.

Ana é médica, tem trinta e quatro anos. Procura análise porque não pode mais suportar seu trabalho. Não gosta de atender os pacientes e pensa que se enganou de profissão, embora jamais tenha querido fazer outra coisa. Relata sua história. Nasceu fora do Brasil, devido ao doutorado dos pais. Quando ela tinha um ano, eles a entregam para uma tia, irmã do pai que vinha para o Brasil e ficam lá por mais alguns meses para fazer uma viagem. Quando retornam para o Brasil, Ana não os reconhece e se recusa a ir com eles. A tia também não quer entregá-la. Surge um problema entre as duas mulheres e a tia diz: Você a deu para mim, agora ela é minha. A mãe: Não, eu não dei, eu só a emprestei. Certo dia, falando sobre suas dificuldades no trabalho, a paciente diz: "Não consigo continuar mais, vou parar, e nem sei o que eu vou fazer, talvez eu não queira fazer nada, acho que talvez minha mãe tenha razão, sou mesmo uma 'imprestável'". A analista diz em alto e bom tom, interrompendo a sessão: "emprestável" não, "dável", quando quer! A consequência dessa intervenção foi determinante na vida do sujeito.

Bia tem o seguinte sonho: estava dirigindo um carro e a seu lado a analista. Para em um sinal, vem um homem e com uma arma, atira na analista. Chegam algumas pessoas e perguntam: o que aconteceu? "Queima de arquivo", ela diz. Relata o sonho rindo muito e diz que as pessoas para quem contou o sonho ajudaram a interpretá-lo: o analista ocupa mesmo o lugar do arquivo morto. A analista intervém: Quem ama [de] arque ivo? Destaca-se assim o amor, o nome de um homem, e uma pergunta pelo desejo. Surge na associação a divisão entre a mãe e a mulher, ou seja, a questão da feminilidade.

Outro sujeito, em uma análise conduzida até bem longe, começa a ter um cansaço na voz para o qual não consegue melhora mesmo com sessões de fono, aulas de canto etc. Já não consegue falar. Resta-lhe um fiapo de voz: "uma vozinha", como ele diz. Certo dia, por uma contingência, percebe que talvez aquilo tivesse a ver com seu processo analítico. Uma análise que teria ido muito longe, ao limite da interpretação. Já não havia mais nada a dizer, cansara de falar e não viera a operação que poderia ter permitido a continuação da análise em direção à sua conclusão. Nesse ponto só sobrou o sujeito ancorado no significante que marcou o corpo: "vozinha – avozinha", o significante que calou fundo nesse sujeito que foi criado até os sete anos pela avó doente. Portanto, indo ao limite da interpretação, o que se desvelou foi tanto o ponto de identificação do sujeito (como no sonho da injeção de Irma, sua casca de cebola), quanto a presença do objeto voz – presença pulsional. Mas desvela-se aí também o ponto acéfalo da pulsão, o pronome é o "vós", não o "eu", pois este, o lugar do sujeito, só é o da falta-a-ser, só se presentifica como objeto, ou enquanto gozo.

O que visa a psicanálise é que o sujeito se separe do objeto que sustenta a verdade mentirosa com a qual ele tampona sua falta, o que desvela em sua singularidade sua posição de gozo. A partir daí ele poderá vir a saber fazer com isso e desfrutar do milagre da existência. A questão então, que compete a nós, analistas, é: como operar, como trinchar, para que esse trabalho se faça e logicamente se conclua?

Lacan nos ajuda a responder. Nossa intervenção poderá tocar o real quando levar em conta, naquilo que é dito pelo analisante, a sonoridade, a melodia, aquilo que ressoa como equivocidade. Pois só a sonoridade das palavras pode ser consoante com o inconsciente (LACAN, 1975/1976, p. 50).

Esgarçando o sentido, usando-o até gastar, até chegar ao sem sentido, ou melhor, ao fora de sentido, ao ponto em que, como em um caso clínico: do sintoma de um cansaço como o de "subir o Everest", só sobre um "é ver Este" e uma mudança no gozo. "É ver o Este": poderíamos dizer que trata-se de um novo ponto de vista, o consentimento com a castração marcando a virada na posição do sujeito? Seria esse um significante novo, uma invenção com lalíngua?

Assim, em não sendo possível destrinchar a interpretação, o trinchar se diz, diz-trincha, uma operação com a palavra. E se enquanto psicanalistas não fazemos poesias por não sermos poatas o suficiente – muito menos poetas – que sejamos então poemas: o que pudermos, na nossa própria análise, escrever.

 

Referências

LACAN, J. (1958-59). O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Inédito. (Versão brasileira sem fins comerciais).         [ Links ]

__________. (1967-68). O Seminário, livro 15: o ato psicanalítico. Inédito. (Versão brasileira sem fins comerciais).         [ Links ]

__________. (1970). Radiofonia. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 400-447.         [ Links ]

__________. (1974). A Terceira. In: Cadernos Lacan. Volume 2. Publicação não comercial. Circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2002.         [ Links ]

__________. (1974). Entrevista do Dr. Lacan à imprensa. In: Cadernos Lacan. Volume 2. Publicação não comercial. Circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2002.         [ Links ]

__________. (1975). Conférences et entretiens dans des Universités Nord-Américaines. In: Scilicet 6/7, Paris, Seuil, 1976.         [ Links ]

__________. (1975). Conferência em Genebra sobre o Sintoma. Opção Lacaniana. São Paulo, no 23, pp. 6-16, dezembro de 1998.         [ Links ]

__________. (1977-78). O Seminário, livro 25: o momento de concluir. Trad. Heresia. Inédito. Publicação fora do comércio.         [ Links ]

__________. (1978). Conclusões – Congresso sobre a transmissão. Letra Freudiana – Escola, Psicanálise e Transmissão. Documentos para uma Escola II – Lacan e o Passe. Ano XIV, no 0, pp. 65-67, 1995.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: zildamachado11@gmail.com

Recebido: 10/02/2013
Aprovado: 30/03/2013

 

 

* Psicóloga. Especialista em Psicologia Clínica. Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Belo Horizonte.
1 Anotações pessoais da conferência A metapsicologia da voz e a interpretação, de Arlete Diniz Campolina, no Fórum do Campo Lacaniano de Belo Horizonte, em abril de 2011.