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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.27 Rio de Janeiro out. 2013

 

RESENHA

 

Resenha do livro Da Fantasia de Infância ao Infantil na Fantasia

 

Review of the book From childhood fantasy to the childish in fantasy

 

 

Lia Silveira*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Fórum Fortaleza

Endereço para correspondência

 

 

Desde o início do século XX, quando Hebert Graaf, então com cinco anos de idade, endereçou ao "professor Freud" seu medo de cavalos, que a prática psicanalítica com crianças tem colocado questões aos analistas. De lá para cá, elas proliferaram e compuseram campos distintos marcados em suas especificidades pela forma de perceber e situar a criança, o lugar dos pais no tratamento e as intervenções do analista. O livro de Ana Laura se propõe a traçar um fio condutor dessas questões, tomando como ponto de partida a distinção princeps entre o lugar da criança – enquanto efeito de discurso no social; e o do sujeito do inconsciente, único a ser considerado em qualquer encontro que se diga psicanalítico.

A partir dessa demarcação inicial a autora coloca perguntas, extremamente pertinentes, que irá desenvolver ao longo da obra: se, o de que se trata numa análise, é do sujeito do inconsciente, haveria então uma especificidade do que se chama "psicanálise com crianças"? Se, desde Freud, o inconsciente é caracterizado por sua dimensão infantil – essa "outra cena" que não conhece temporalidade e, portanto, não se torna adulto, não se desenvolve, não envelhece – estaríamos lidando com algo diferente quando se trata da análise de alguém com cinco ou quarenta e cinco anos? Por outro lado, como pensar o lugar de alguém que, geralmente, chega ao consultório trazido pelas mãos de adultos e deles dependendo para poder sustentar fisicamente sua presença?

Do lado do analista, a questão que se coloca passa pela delimitação de seu campo de atuação. Afinada com a hipótese freudiana de que este é composto pelo terreno da realidade psíquica e, portanto, elaborada a partir da fantasia fundamental, a autora nos leva a indagar as filigranas da construção desse conceito: haveria uma distinção entre a fantasia enquanto resposta lógica do sujeito diante do encontro sexual traumático (saída contingencial, mas aberta para todo aquele que faz a escolha neurótica) e a fantasia enquanto construção em análise (tarefa para a qual se faz necessária a presença do analista)? Qual a relação entre o tempo cronológico com que se define o período considerado "infância" e o tempo lógico que está em jogo quando se trata da constituição das respostas do sujeito diante do encontro com o real, a saber, fantasia e sintoma?

Para responder a essas questões, Ana Laura escolhe percorrer um caminho louvável. Poderíamos até dizer, com Lacan (1975/2003, p. 555), o único que situa o analista em seu lugar, como "parceiro com alguma chance de responder", que é a via clínica. Assim, ela inicia trazendo um caso de sua prática. Na verdade, não um caso de sucesso da clínica, mas um em que, em determinado momento, alguma coisa fracassou. Nessa escolha, a autora mais uma vez mostra sua afinidade com o estilo freudiano: o caso não se presta a ilustrar conceitos ou comprovar a veracidade da teoria. Pelo contrário, é ali onde algo do saber vacila, é em torno do furo que se presentifica na experiência, que o analista vai ter a chance de desenvolver um trabalho que faça a teoria avançar.

É assim que ficamos sabendo da "partida" que se estabelece entre o pequeno goleiro Zeti e a analista, e do seu desfecho, abreviado por uma "bola fora". É esse excerto de caso clínico que vai permitir à autora retomar das questões citadas acima, e tentar respondê-las por meio de um rigoroso exercício teórico.

Inicia-se aqui o primeiro capítulo, Construção de uma Fantasia de Infância, onde obtemos uma minuciosa cartografia da construção histórica que leva ao conceito contemporâneo de "infância", como efeito de discurso. Trata-se de uma compilação que interessa a todos que se propõem a abordar o tema, psicanalistas ou não.

No segundo capítulo, O tratamento Psicanalítico com Crianças: direções, inicia-se uma discussão mais específica da psicanálise, que distingue e correlaciona as principais ideias surgidas nesse campo acerca da direção do tratamento psicanalítico com crianças. A autora traça um panorama que permite interrogar cada um dos autores que se detiveram no tema, a partir das questões que norteiam a hipótese do livro: a distinção criança x sujeito, o lugar dos pais na direção do tratamento e o estatuto da fantasia.

Ana Laura atravessa nesse capítulo, desde a famosa querela entre Anna Freud e Melanie Klein – apontando que a questão da fantasia é o ponto fundamental da divergência entre ambas: enquanto a primeira se ateve a uma postura pedagogizante, a segunda percebeu que era no terreno da fantasia que a análise se dava – até uma exploração da contribuição de autores como Winnicott, Maud Manoni, Françoise Dolto e o casal Rosine e Robert Lefort.

Nos capítulos seguintes – 3. A Bolsa ou a Vida? a escolha forçada e o sujeito e, 4. A Insondável decisão do ser e o Tempo –, a autora percorre a trajetória dos conceitos lacanianos que permitem cingir o advento do sujeito a partir da lógica temporal da construção da fantasia, como resposta deste diante do encontro com a falta no Outro. Este percurso culmina no capítulo seguinte – 5. A construção da fantasia: o lugar do infantil –, com uma distinção entre a infância, enquanto recorte cronológico; e o infantil, enquanto lugar em que o sujeito deve construir uma ficção sobre a causa de seu desejo. Nesse ponto, a autora traz sua contribuição original, ao propor a hipótese de que pode-se fazer uma distinção entre a "montagem da fantasia", como resposta que o sujeito elabora no lugar do infantil, estabelecendo a topologia própria ao neurótico e permitindo a montagem da realidade (independentemente da intervenção ou não de uma analista), e a "construção da fantasia", como operação própria da análise, permitida pela transferência.

No sexto capítulo – Momento de Concluir, Direção do Tratamento Psicanalítico: da fantasia de infância ao infantil da fantasia –, a autora retoma o caso clínico apresentado na introdução para fazer uma leitura dos problemas encontrados no manejo do caso Zeti a partir dos operadores conceituais descritos nos capítulos anteriores e da hipótese apresentada no capítulo 5, qual seja, a distinção entre a fantasia como montagem e a fantasia como construção em análise. Propõe-se ainda a responder como essas articulações permitem pensar a questão acerca de se haveria ou não uma especificidade na clínica com crianças.

Para responder, a autora começa explicitando uma formulação que já atravessa todo o texto:

Operar sobre a fantasia; esta é, no meu entender, a política da direção do tratamento sustentada pelo desejo do psicanalista, qualquer que seja a idade cronológica do sujeito, não obstante as possíveis especificidades estratégias e táticas que se imponham na direção do tratamento com crianças, no mundo contemporâneo (PACHECO, 2012, p. 259).

Retoma-se aqui a proposta lacaniana de A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder (LACAN, 1958/1998), que aborda a liberdade do analista, distinguindo- a, a partir de uma metáfora bélica, em três níveis: o da política, o da estratégia e o da tática. Lacan afirma que onde o analista é menos livre é no nível da política, cernido que está pela sua localização na falta-a-ser. Aponta, ainda, que no nível da estratégia, há uma liberdade relativa, já que o analista está preso ao que se passa no plano da transferência. Sendo assim, onde o analista está mais livre é no nível da tática: "sempre livre quanto ao momento, ao número e também à escolha de minhas intervenções, a tal ponto que a regra parece ter sido inteiramente ordenada para não atrapalhar em nada meu trabalho de executante". (Ibid., p. 594)

Na distinção desses três níveis, Ana Laura vai examinar os impasses no manejo transferência no caso Zeti, destacando aí três aspectos fundamentais: a) a fantasia de infância: sobrepor criança e sujeito; b) a posição da analista sustentada no Pai: sublinhar a castração; e c) construção da fantasia: a bola como versão de objeto a.

Quanto ao primeiro ponto, a analista supõe que, devido ao momento específico em que esta se encontrava em relação às suas próprias questões, manifesta-se uma resistência do analista com a sobreposição entre criança e sujeito, promovendo também uma oscilação entre as posições de Mestre e de Psicanalista. Essa instabilidade da posição de analista se sustentaria num Ideal de criança "bem cuidada". No entanto, como a própria analista ressalta, apesar desse núcleo de resistência, foi possível sustentar uma escuta que provocou a emergência do sujeito do inconsciente. As elaborações de Zeti, desde as entrevistas, preliminares, apontam para uma localização do analista como sujeito suposto saber, ao demandar-lhe ajuda diante da sua dificuldade. Dificuldade esta que vai se metaforizar ao longo do tratamento, desde o sintoma "prender/soltar o cocô", até o "jogo" de bola que lhe permitiu "jogar" com a castração no nível do simbólico.

A partir do que identifica como momento de entrada em análise de Zeti (a construção do significante que aponta para sua questão perante o desejo da mãe/mulher) abre-se uma via que permite um endereçamento ao Pai. A analista, que se utilizou da tática de propor ao analisante escreverem juntos uma "carta ao pai", percebe que aí se passou algo relevante para a compreensão das dificuldades que se seguiram. Destaca que o fato de chamar o pai, em si, não foi exatamente a questão, mas sim o que motivou essa decisão por parte da analista (a esperança de que o pai pudesse dar conta do que estava "faltando" na estrutura: o pai seria o que faltava para que o menino pudesse ser "bem cuidado). Trata-se, portanto, de um problema relativo à política do analista, que deveria estar orientada pela falta-a-ser constitutiva do sujeito, e não devido à tática utilizada (escrever uma carta ao pai).

Apesar de apontar esse problema, a analista reconhece que a passagem pelo pai permitiu a transmutação do objeto pulsional envolvido no sintoma (cocô) em objeto constitutivo da fantasia (olhar). Zeti situa-se no jogo de bola como goleiro, na esperança de poder defender "todas as bolas". Nesse jogo se produz um ato falho que, segundo a analista, "é revelador da articulação entre sintoma e fantasia, via castração" (PACHECO, op. cit., p. 266). Ao perder uma bola, o analisante troca o significante e diz: "essa bosta não sai mais daqui". A analista pontua o lapso, e a interpretação é produzida do lado do analisante como ferida narcísica. Trata-se, como ela afirma, de um erro tático que provocou uma passagem ao ato com a saída da análise: "Sem fantasia para defendê-lo, só restou a Zeti, enquanto neurótico, agarrar-se ao Eu. E a bola teve que esperar alguns anos para ser relançada" (Ibid., p. 267). Ficamos sabendo, pela autora, que Zeti retomou a análise algum tempo depois, momento em que foi possível para a analista conduzir a análise de outro lugar.

Para finalizar, a autora se detém, mais ainda, acerca da questão da especificidade na clínica com crianças, perguntando-se se haveria distinção entre as relações que adulto e criança estabelecem com sua fantasia fundamental. Segundo ela, trata- se de questionarmos a possibilidade de a criança ter acesso à questão do gozo feminino. A resposta da autora vai se situar na retomada da distinção apresentada no capítulo 5 entre montagem (como momento lógico constitutivo do sujeito) e construção da fantasia (como trabalho de análise). Além disso, ela pontua como operador clínico importante o acompanhamento, sob transferência, do momento que o sujeito se encontra na organização do catálogo das pulsões, ou seja, como ele está respondendo, com sua fantasia, ao que ele supõe ser a demanda do outro (Ibid., p. 273).

A partir dessas elaborações, a resposta que a autora propõe para a pergunta sobre a existência de uma especificidade na clínica com crianças passa por uma formulação no nível da lógica, aquela específica da psicanálise. Em vez de uma universal negativa (para toda criança não há especificidade) que contrariasse uma universal afirmativa (para toda criança há especificidade), seria preciso pensar uma resposta que incluísse a lógica do não-todo (não existe criança para a qual não haja especificidade). Em vez de tomar a criança como "Um" do universal, seria preciso pensar cada sujeito na lógica da singularidade do "um a um".

Finalizo com as palavras da autora, quando ela afirma que "no nível da política, a psicanálise é sempre a mesma, e é por isso que Lacan insiste no fato de que, em relação à política não há liberdade para o psicanalista" (Ibid., p. 282). Fiquemos, portanto, com a expectativa de que outros analistas possam fazer uso da experiência gentilmente compartilhada conosco por Ana Laura, para inventar possibilidades táticas em sua clínica.

 

Referências

LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 591-652.

__________. (1975). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 550-556.

PACHECO, A. L. P. Da fantasia de infância ao infantil na fantasia. São Paulo, Anna Blume, 2012.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: silveiralia@gmail.com

 

 

* Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Fórum Fortaleza.