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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.28 Rio de Janeiro June 2014

 

CONFERÊNCIAS

 

Desejo no singular, desejos no plural

 

Desire in the singular, desires in the plural

 

 

Colette Soler*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora intitula sua fala "Desejo no singular, desejos no plural", uma vez que defende existirem duas formas de desejo: os sem objeto (desejos que erram) e aqueles com objeto (desejos de algo). Dentre estes, situa o desejo de outra coisa como destrutivo. Questiona se o capitalismo conduziria a uma exacerbação do gozo, lembrando os sinais de insatisfação. Segundo Soler, para a Psicanálise, o problema central é saber o que fixa o desejo em cada caso particular, o que leva à relação de corpo a corpo sexual, ao fato de existir um desejo sexual. Coloca em seguida as respostas de Freud e Lacan – o Édipo, para o primeiro, e a Metáfora Paterna, para o segundo – apontando para a impossibilidade de localizar o casal homossexual nessa lógica. Propõe outra resposta de Lacan: é o sintoma que leva à cama. Desse modo, a Metáfora Paterna e o Édipo são modalidades de desejo e de gozo, entre outras possíveis. Soler finaliza com o questionamento: quem ousará dizer que um tipo de sintoma vale mais do que outro? Existe um Outro do Outro para dizer qual é o melhor?

Palavras-chave: Desejo, Gozo, Metáfora paterna, Sintoma.


ABSTRACT

The author entitles her speech "Desire in the singular, desires in the plural" as she argues there are two ways of desiring: those without an object (desires which commit mistakes) and those with an object (desire for something). She places these last ones as destructive, approximating them to the Capitalist Discourse. According to Soler, for psychoanalysis, the main challenge is to establish what fixes the desire in each particular case, what takes to the sexual body to body relationship, to the fact of an existing sexual desire. In the sequence, she places Freud's and Lacan's answers – the Oedipus for the first, and the Paternal Metaphor for the latter – highlighting the impossibility of localizing in this logic the homosexual couple. The author also proposes another of Lacan's answer: it is the symptom which directs it to bed. Thus, the Paternal Metaphor and the Oedipus are modalities of desire and jouissance, among other possible ones. Soler concludes with the questioning: Who will dare to say that a type of symptom is worth more than another? Is there an Other of the Other to tell who is best?

Keywords: Desire, Jouissance, Paternal methaphor, Symptom.


 

 

Vou falar, hoje, aqui, em Belo Horizonte, sobre o tema "Desejo no singular, Desejos no plural". É o título que escolhi. Farei primeiro um pequeno panorama para chegar ao que estou desenvolvendo mais, atualmente.

Os paradoxos do desejo foram percebidos na Filosofia e na Literatura antes da Psicanálise. Mas, é ela, a Psicanálise, que permite dar conta do desejo. Esses paradoxos já estão presentes nas duas expressões de Freud que falam de um único desejo no singular, inconsciente, desconhecido, portanto, do sujeito e, além disso, indestrutível. Com Lacan, compreendemos que esses paradoxos têm sua lógica. E todos esses paradoxos provêm do seguinte: a causa do desejo não é o objeto do desejo. Em outros termos, o desejo enquanto tal, não tem objeto que lhe seja apropriado.

Concretamente, há duas grandes formas do desejo: há desejos sem objeto – são os que erram, no sentido de errância, precisamente, e há os desejos com objeto, que são desejos de algo. Os primeiros portam a marca da infinitude. Os segundos, ao contrário, são os que Lacan (1962-63/2005) chamava, no Seminário 10: a angústia, de desejos finitos, ou seja, no sentido de fixados em um objeto preciso. Toda a questão é saber como é que esses desejos finitos se constroem.

Se observarmos o ensino de Lacan, ele insistiu, no início, sobre a dimensão de infinitude do desejo. O desejo como simples voto, aspiração, que participa de uma vaga espera, sem objeto, e que inventa objetos imaginários sem consistência. É por isso que ele pôde dizer que o tédio, a prece, a vigília, são todos nomes do desejo. E até mesmo o nada é objeto do desejo.

O fundamento estrutural desse desenvolvimento que agradou muito e continua, aliás, agradando, é simplesmente o fato de que o desejo é engendrado a partir da falta. E podemos seguir passo a passo as elaborações de Lacan sobre esse assunto: inicialmente, ele disse que o desejo é feito, negativamente, de linguagem; portanto, o desejo como efeito do significante, pelo fato de falarmos. Sobre esse ponto nós encontramos uma bela fórmula no texto A Direção do Tratamento (LACAN, 1958/1998): o desejo é trazido pela morte, isto é, ele é trazido pela morte que a linguagem veicula. Dessa forma, ele é um vetor que não sabe para onde vai.

Um passo a mais no ensino de Lacan é sua conceitualização sobre o objeto a como causa do desejo. Causa do desejo, porque ele é o objeto que falta. A expressão que define o objeto a como objeto que falta se encontra em 1976 no Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 (LACAN, 2003, p. 569). Em seguida, ele diz: "objeto subtraído pela operação de linguagem"; isso está no Seminário 10: a angústia. Depois ele diz, em Radiofonia, em 1970: "É o maior efeito da linguagem" (LACAN, 2003). Lacan elaborou por uma década o fundamento de falta no desejo e é esse fundamento de falta que determina a fenomenologia e a temporalidade do desejo, com seus paradoxos. O primeiro deles, poderíamos enunciá-lo: "o desejo é uma fênix", ele renasce de suas cinzas, após cada satisfação. É o que fez, sem dúvida, com que fosse construída uma grande oposição entre o desejo sempre insatisfeito e o gozo, que é uma experiência de satisfação.

Como dizia um comediante inglês – acho que é Bernard Shaw, mas não tenho certeza –, existem duas coisas terríveis na vida: não satisfazer seu desejo e satisfazê-lo. Em seguida, e isso também faz parte do paradoxo, a fórmula mais eminente do desejo: o "desejo de outra coisa". Lacan falou muito sobre isso. Que é um desejo mais perto do Wunsch do que do Wille, mais perto do voto, da aspiração, do que da vontade. Temos muitos exemplos disso na literatura. Pensei em dois exemplos, mas não sei se vocês conhecem: O Deserto dos Tártaros1 e O Marinheiro de Gibraltar, de Marguerite Duras, dois romances onde se espera o que nunca vem. O desejo de outra coisa é muito deletério, destrutivo. O desejo de outra coisa recusa todos os objetos atuais, assim como a ação que o presente exigiria. Ele esvazia o cotidiano de sua substância, em nome de uma vaga aspiração. Assim ele engendra a ineficácia, a inadaptação e, também, a dor.

Lacan dizia: "podemos querer não gozar, mas não podemos querer não desejar". Pois querer não desejar o possivelmente desejável é uma forma de desejo. Mas é um desejo vazio. É claro que o neurótico, na sua estratégia, se serve desse paradoxo que consiste, em geral, em escolher mais o desejo insatisfeito do que o desejo satisfeito. E, mais precisamente, em suspender as satisfações para sustentar o desejo. Quer seja sob a forma de se furtar, do histérico, da mortificação, do obsessivo, ou do evitamento fóbico. E Lacan, na época em que exaltava o desejo, dizia que o neurótico não está tão mal colocado na escala humana, porque ele leva em conta os paradoxos do desejo. É um cumprimento feito ao neurótico. Depois ele mudou de ideia.

Bom, todo esse desenvolvimento de Lacan, que eu resumo rapidamente, ele mesmo o corrigiu, ou melhor, o completou. É por isso que não basta dizer que o desejo é sua interpretação para se dispor da teoria lacaniana do desejo. Não posso seguir todo o seu trajeto, mas é um trajeto que permite colocar em evidência que não há desejo que não vá em direção a um mais-de-gozar, em direção a um gozo, que, no entanto, não o estanca. É o que significa a extraordinária fórmula de Lacan que qualificava o desejo como a "aporia encarnada". Aporia é uma referência à linguagem e à causa linguageira, e o encarnada é uma referência ao que é vivo e à carne.

No Seminário 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Lacan (1964/2008, pp. 235-6) foi bastante explícito ao responder uma pergunta de Safouan: "compreenda", diz ele, "que o objeto do desejo é o objeto causa e que esse objeto causa é o objeto da pulsão". Lacan diz, ainda, que nem tudo do desejo é agido na pulsão. Há também desejos vazios, desejos loucos. Podemos dizer, então – eu não sigo todo o trajeto – que o desejo é um vetor infinito em razão da sua causa que não cessa de faltar. Mas, para cada um, o desejo fica dando voltas em um pequeno perímetro. Ou seja, o vetor infinito fica dando voltas sobre si mesmo. É isso que a fórmula da fantasia escreve: a fixação a um objeto que satisfaz, mas não preenche a hiância; um mais-de-gozar sempre indissociável de um menos.

Bom, agora vou fazer uma pequena digressão. Eu penso que esquecemos facilmente dessa estrutura em todos os comentários que pululam hoje em dia sobre o capitalismo. Porque se fala, frequentemente, do capitalismo como o regime do gozo a qualquer preço. Às vezes podemos nos perguntar se a dimensão do desejo não desapareceria em nome de uma vontade de gozo. Não é a leitura de Lacan. E também isto não corresponde aos fatos. Na verdade, creio que é uma aberração falar isso da estrutura. É claro que é certo que o capitalismo oferece os pequenos mais-de-gozar de sua produção. E chega, mesmo, a impor sua tirania por toda sorte de procedimentos. Mas é justamente o oposto do que seria um gozo total, todo. Supondo que se soubesse o que é o gozo todo. Esses produtos do capitalismo que produzem as fixações podem chegar até a adição. Fala-se muito da adição aos objetos do capitalismo, mas eles são, assim como o objeto da fantasia, estritamente sinônimos de uma falta de gozo. Essa tese é explícita no texto de Lacan que se chama Radiofonia, quando ele nota que a regência da causa que é o mais-de-gozar, assinala, eu cito, a "sede da falta-de-gozar" (LACAN, 1970/2003, p. 434). É justamente o contrário do que as pessoas vêm dizendo por aí.

Isso é o que diz Lacan. Vamos aos fatos. O que se vê nos fatos? Em todo lugar onde o capitalismo prospera, não há realmente nada que evoque que estão todos banhados no gozo. Mas, o que vemos? Depressão, morosidade, angústia, tédio, desvario, dispersão, impotência geral. Tantos afetos, que vocês poderiam me contestar: mas existem também figuras triunfantes do capitalismo. Por exemplo, do lado do successful, do sucesso, o que temos é a excitação competitiva que quando cessa, aí aparece a depressão. São todos esses afetos que indicam a presença indiscutível do fato de que em todo lugar onde consegue resolver as necessidades primárias de sobrevivência, o capitalismo faz arder o desejo de outra coisa. E isso é um desejo perigoso, como eu dizia antes.

Bom, para a Psicanálise, o problema central não é qual é o bônus do capitalismo. Há um problema que se desdobra: é saber o que fixa o desejo em cada caso particular. E, especialmente, o desejo sexual. Porque quando se fala do desejo no discurso comum, a gente pensa logo em sexo. E o sexo não é uma forma indeterminada do desejo, ao contrário, é um desejo fixado. E muitas vezes sob condições muito precisas. Na Psicanálise trata-se de saber como esse desejo sexualmente fixado se instaura. É uma questão, porque os desejos agidos na pulsão, dos quais Lacan falava em 1964, esses desejos não conduzem ao parceiro sexual. Eis o problema. "A pulsão", dizia Lacan, "é a realidade sexual do inconsciente". Ou seja, é o gozo que resta para o falante.

Porém, Lacan acrescentava: "essa é uma verdade insustentável". Mas por que insustentável? Acho que é insustentável justamente porque a pulsão não conduz ao parceiro sexual, quer seja homo ou hetero, esse parceiro. As pulsões procuram, eventualmente, o objeto do lado do parceiro. Lacan dizia mesmo que ele só tem acesso ao corpo do parceiro pelas pulsões parciais, mas não são elas que conduzem ao corpo. Sabemos que as pulsões se satisfazem de inúmeras maneiras fora da relação com o parceiro sexual. Para começar, aquelas que se qualificavam de perversas na época clássica: voyeurismo, exibicionismo, sadismo etc. Porém, as pulsões se satisfazem, sobretudo, na deriva metonímica – termo de Lacan – da linguagem. Isso significa que elas se satisfazem bem além do erotismo, na política, na literatura, na arte... sem colocar em jogo o corpo a corpo com o casal.

No fundo, podemos dizer, de outra forma, o fato de que as pulsões não conduzem ao parceiro. Lacan dizia, "vocês sabem, sem dúvida, que a pulsão é o eco no corpo do fato de haver um dizer". É necessário precisar: há um dizer de oferta que parte do Outro. E, com efeito, o corpo responde a esse dizer. É isso que engendra as pulsões. Um dizer que demanda que a boca vá ingerir o alimento e então o corpo responde. Ou seja, ele repercute, responde, através da erogeneização da boca. A boca, que a partir de então, não será preenchida por alimento algum. No que concerne à pulsão oral, anal, escópica e invocante, todas vêm do dizer do Outro, mas não há nenhum dizer dirigido aos órgãos genitais, ao qual o corpo responderia, faria eco através da erogeneização genital. Daí a questão: afinal, o que leva à relação de corpo a corpo sexual, ao fato de existir um desejo sexual? Se não é a pulsão, devemos pensar que é o próprio desejo, que leva ao outro corpo.

Mas, rumo a quê o desejo se dirige? Parece, às vezes, que ele se dirige ao parceiro, homem ou mulher. Mas, na verdade, ele se dirige ao mais-de-gozar que se aloja aí. E isso vale, inclusive, para a relação de corpo a corpo. O que Lacan formulou de forma simples e categórica, em Radiofonia: ele dizia que a relação tomada pelo sexo é como qualquer uma, articulada a partir do mais-de-gozar. Para o homem, isso supõe identificar o parceiro ao objeto a; e para a mulher, reduzi-lo ao falo, isto é, como o pênis reduzido ao órgão da detumescência, ou seja, ao inverso da sua função real. Eis o que ele diz acerca do que seria o parceiro de cada lado do sexo. Eu sublinho esse termo de redução. O desejo que se diz sexual parece conectar o desejante com o seu desejado, mas a grande descoberta da Psicanálise, com Lacan, é que o desejo só conecta o desejante ao objeto a. Por estrutura, então, o desejo não é sexual. Então, mesmo quando aproxima os corpos, ele não faz relação.

Todo esse desenvolvimento, eu resumo aqui: na copulação dos corpos a que o desejo parece conduzir, o que está em jogo mesmo é o mais-de-gozar. Com tudo isso ainda não se sabe o que é necessário para que um desejo tome a forma de um desejo sexual. É necessário, é claro, a causa como objeto que falta, que procure um mais-de-gozar, mas não é uma condição suficiente, porque o mais-de-gozar tem outras formas além da forma sexuada. A questão é, portanto, muito simples e até crua. O que é necessário para que o desejo leve para a cama? À cama mais do que a outros lugares. À cama, mais do que ficar fazendo prospecção do continente, ou fazer a guerra, escalar uma montanha ou fazer carreira, procurar a novidade na ciência, ou o belo e o trash na arte...

O que é preciso para que o outro corpo, notadamente o corpo do Outro sexo, vire causa de desejo, já que as pulsões não bastam? Quais são, então, as respostas possíveis da Psicanálise? As de Freud são conhecidas. Ele respondeu: "é preciso o Édipo com as identificações que produz e que no fundo permitem, mal ou bem, e apesar de todos os acidentes sintomáticos, ao menino ou à menina saber mais ou menos o que têm que fazer para abordar o outro sexo". Esta é a primeira resposta de Freud, que desenvolvo, e Lacan a retoma com a Metáfora Paterna, em 1955. Ele reevoca em 1964 em Posição do Inconsciente (LACAN, 1998), e isso poderia querer dizer: é preciso o Nome-do-Pai.

Bom, é um tema bastante extenso, mas eu gostaria de falar algumas palavras sobre a Metáfora Paterna. Antes de tudo, se trata de uma metáfora social que coloca o pai como o Outro da mãe. Pai e mãe é o par social, porém, ao mesmo tempo, é uma metáfora sexual. Se vocês estudaram esses textos sobre a metáfora em questão, viram que a operação dessa metáfora é fazer aparecer que o desejo da mãe, que é simbolizado pela sua ausência, ou seja, pelos seus vaivens – é indeterminado pela operação de metáfora; esse desejo da mãe se torna desejo determinado pelo falo, ou seja, um desejo fálico, que a partir daí pode ser endereçado àquele que não é privado do falo. Assim, a metáfora nos constrói um modelo de casal heterossexual, que era suposto orientar o desejo dos meninos e das meninas para a descendência, indicando aonde deveria ser encontrado o falo que lhe faltava.

É preciso dizer que essa metáfora fazia do Nome-do-Pai a condição do casal heterossexual, dando a esse casal um status diferenciado daquele do laço social da família. Evidentemente, temos que nuançar um pouco e levar em conta as múltiplas advertências de Lacan, que insiste em dizer que o Nome-do-Pai não é o Pai. Isso deve ficar claro. Não é o chefe de família. Isso não impede que o próprio Lacan (1956-57/1995) no Seminário 4: a relação de objeto, no momento em que estava construindo a Metáfora Paterna utilizando a fobia, nos explique que o que faltou da função paterna do pequeno Hans foi o pai real, ou seja, aquele que come a mãe. Com isso, a gente apreende que a Metáfora Paterna é uma metáfora do casal heterossexual, construída sobre o modelo social.

Nós vemos, logo, as dificuldades que se apresentam, imediatamente. Com essa metáfora, é impossível conceber a homossexualidade a não ser como anomalia. O que é um drama para os psicanalistas lacanianos que não conseguiram seguir Lacan até o fim. E mesmo para aqueles que não leram Freud suficientemente, já que Freud (1905/1996) desde 1915 em uma nota que acrescentou aos Três Ensaios Sobre a Sexualidade, dizia de forma extremamente categórica e embasada que a homossexualidade não é uma perversão, não é uma anomalia. Em geral, nenhuma escolha de objeto pode decidir qual a estrutura clínica.

Por outro lado, como não perceber que essa metáfora está em perfeita continuidade com aquilo que o discurso do mestre faz desde que ele existe? Ou seja, conceber e organizar a relação entre os sexos como um laço social, no qual, como Lacan definiu, sempre há um termo que comanda o outro, como o mestre comanda o escravo. Temos casais homólogos a isso: o rei e a rainha, o esposo e a esposa. E, aliás, todo o vocabulário sobre o amor na literatura do século passado é um vocabulário de relações de dominação. E, às vezes, mesmo de relações de guerra, entre um que cede e outro que domina, mesmo que o papel possa ser intercambiado entre os dois. Por exemplo, no caso do amor cortês o poder é da dama. Portanto, foi crucial passar, como Lacan o fez, para além do Édipo, ou seja, para além da Metáfora Paterna, que tornava o casal heterossexual homem e mulher solidário com o casal social pai e mãe.

Além disso, Lacan foi, não somente pluralizando o Nome-do-Pai. Ele traz o Nome-do-Pai, que é o pai que nomeia, o pai do nome. Essas teses, forçando um pouco, ainda poderiam estar de acordo com a Metáfora Paterna. A grande objeção consistente à Metáfora Paterna enquanto metáfora sexual é a fórmula "Não há relação sexual" que a gente repete, e temos que ver o que ela implica. Ela implica que não há laço social entre os corpos sexuados. Lacan (1974/2003) formula isso em Televisão, dizendo: "as histórias de amor" – ele fala de amores sexuados – "são clivadas dos laços sociais". Ou seja, não basta o corpo a corpo para fazer laço social. A fórmula "Não há relação sexual" indica que o gozo, seja hetero ou homossexual – isso vale para ambos –, é ou bem gozo único, fálico, ou Outro Gozo. Mas em nenhum dos casos constitui relação entre eles.

O "para além da metáfora", então, é o fim da metáfora sexual. Mas esse "para além" tem um alcance mais geral. Implica também a própria concepção do inconsciente. A metáfora, que junto com a metonímia, é a estrutura fundamental da linguagem, é solidária do inconsciente que Lacan definiu como estruturado como uma linguagem. É o inconsciente tal como ele se decifra sob transferência. É, portanto, o inconsciente simbólico. Podemos mesmo dizer: o inconsciente tagarela. Lacan dedicou a ele mais de uma década de elaboração. É o inconsciente tal como podemos inferi-lo a partir da prática freudiana. No entanto, o inconsciente, na medida em que é efeito de linguagem – tese fundamental de Lacan –, esse inconsciente ex-siste fora da transferência, antes de qualquer decifração. Ou seja, ele existe desde sempre. Não é um discurso, não é simbólico, ignora a metáfora e metonímia. Lacan diz: "ele é saber". Isto é: significante que afeta o corpo e que provém de alíngua. É um saber que engata, se engancha no corpo, que é o inconsciente real.

Evidentemente que os efeitos desse inconsciente não esperaram por Lacan para serem conceitualizados, eles foram reconhecidos e nomeados na psicanálise freudiana. Os nomes freudianos do inconsciente real são: desejo – é o primeiro efeito real da linguagem –, pulsão, repetição e sintoma. Lacan condensa esse conjunto dizendo: "é um saber que despedaça o gozo, que o recorta e que produz as quedas das quais eu faço o objeto a, ou então, a causa primeira do desejo".

Àqueles que perguntam – que é uma pergunta que frequentemente escuto – "será que o inconsciente reinventado de Lacan suprime ou muda o desejo, e restaria somente a referência ao gozo?", temos aqui a resposta: o saber inconsciente despedaça o gozo e recorta a causa do desejo, assim o desejo está inscrito no campo do gozo.

Mas isso não resolve completamente a questão de como o desejo leva para a cama. Se não é a metáfora que leva à cama – que é o que acabei de mostrar a vocês –, Lacan finalmente dá outra resposta: "é o sintoma". Mas não é o sintoma no sentido dos primeiros sintomas dos quais Freud falava. O sintoma no sentido que ele dá de que "o parceiro é o sintoma". Depois que ele diz "parceiro objeto causa", ele diz "parceiro sintoma". Sintoma quer dizer: produto do inconsciente; produto do qual se goza. E – um ponto muito importante que acrescento – que se instala de maneira contingente, através de um encontro. Ou seja, não está programado pela estrutura.

Bom, vou lembrar uma observação que Lacan fez nos Estados Unidos em 1975, a qual, creio eu, fazia eco a outra observação, de Freud, que dizia que toda capacidade erótica do sujeito proviria do laço com a mãe. Em 1975, Lacan diz aos americanos: "parece que é necessário ter tido uma mãe para amar as mulheres". É engraçado, isso me surpreendeu, pois não evoca o pai. Quer dizer, não aparece nada da Metáfora Paterna. É claro que isso não é exatamente uma tese consistente, é apenas uma observação en passant. Mas, as observações de Lacan são raramente gratuitas.

E, finalmente, isso parece que vai em par com sua última tese sobre o Édipo. Para além da Metáfora, para além do Édipo, o que há? O sintoma. Ele diz: "o casal edipiano, nada mais é do que sintoma". O Édipo é um sintoma. Quer dizer que é uma modalidade de desejo e de gozo, mas uma modalidade entre outras possíveis, digamos, um tipo de sintoma. Porém, há outros. Vou terminar com uma frase em forma de pergunta: quem ousará dizer que um tipo de sintoma vale mais do que outro? Existe um Outro do Outro para dizer qual é o melhor? Tudo o que podemos tentar dizer, a partir da Psicanálise, é qual o destino que cada sintoma que o determina provoca no sujeito.

 

Referências

FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. Tradução sob direção de Jayme Salomão. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.         [ Links ]

LACAN, J. (1956-57). O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: solc@wanadoo.fr

 

 

Tradução: Antônio Quinet
Transcrição e revisão: Pollyana Almeida, Marcus do Rio Teixeira e Caio Tavares
Revisão final: Sonia Magalhães
* Doutora em Psicologia (Paris VII). AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França. Professora de FCCL – Paris. Autora de vários livros, entre os quais Psicanálise na Civilização (Contra Capa), O que dizia Lacan das mulheres (JZE), edição bilíngue do Caderno Stylus 1: O corpo falante, O inconsciente. Que é isso? (Annablume), Lacan, o inconsciente revisitado (Cia de Freud), Declinações da Angústia (Escuta), Seminário de leitura de texto: A angústia, de Jacques Lacan (Escuta), A repetição na experiência analítica, (Escuta).
1 Romance escrito pelo italiano Dino Buzzati em 1940. Um filme homônimo foi produzido em 1976 pelo diretor, também italiano, Valerio Zurlini.