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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.28 Rio de Janeiro June 2014

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS

 

Desejo: dasein lacaniano

 

Desejo: dasein lacaniano

 

 

Manel Rebollo*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Psicoanalítico Tarragona
Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Seminário de Psicanálise de Terragona

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor parte do Wunsch freudiano, percorrendo diversos momentos do ensino de Lacan para demonstrar sua tese presente no título "Desejo: Dasein lacaniano". Distingue duas concepções do Dasein como "ser aí" e como Das Ein, "O Um" o qual irá relacionar ao final da análise. Justifica o uso do termo heideggeriano na sua concepção de interpretação como o que localiza o desejo do sujeito em um instante precedente, depois do qual o sujeito já não está aí, a interpretação daseina do desejo do sujeito. Nesse trajeto, o autor procura localizar as várias maneiras que Lacan situou o desejo nas dimensões imaginária, simbólica e real, relacionando-o aos quatro conceitos fundamentais, assim como com os quatro discursos, fazendo uma aproximação do desejo com sua escritura. Rebollo finaliza seu desenvolvimento, destacando a função desejo do analista.

Palavras-chave: Desejo, Desejo do analista, Enunciação, Semblante, Um.


ABSTRACT

The author departs from the Freudian Wunsch, privileging several moments of Lacan's teaching to demonstrate his thesis in the work Desire: Lacanian Dasein. He distinguishes two conceptions of the Dasein such as "being there" and Das Ein, "The One", which will relate to the conclusion of the analysis. He justifies the use of the Heideggerian term, in its conception of interpretation like the one that locates the subject's desire in a previous moment, after which the subject is no longer there, the daseina interpretation of the subject's desire. In this trajectory, the author tries to find the several ways Lacan has placed the desire in the imaginary, symbolic, and real dimensions, relating it to the four key concepts, as well as the four discourses, in the approximation of the desire with his scripture. Rebollo concludes his thought, highlighting the function desire of the analyst.

Keywords: Desire, Analyst's desire, Enunciation, Likeness, One.


 

 

Desde que Freud o anunciara como Wunsch, o desejo nunca cessou de deambular sob distintos nomes que deram algum novo sentido no qual se deter por um momento. Momento fecundo, porém evanescente, o suficiente para ter de buscar um novo termo, em uma perpétua e metonímica insatisfação conceitual.

Begehren e Lust ofereceram novas acepções ao desejo na mesma obra freudiana: apetite, prazer, inclusive ânsia, destilam alguns dos sentidos associados, que nunca coagulam em uma significação "apropriada". Disso se trata, de que o desejo nunca é verossímil na palavra, nunca é apropriado.

Produto res(ul)tante da constituição do sujeito pelas operações da linguagem, alienação e separação, seu devir transita pelos espaços intersignificantes da alienação e é preparado nas subtrações de gozo arrancadas na separação: "Desventura do desejo nas sebes do gozo, espreitadas por um deus maligno" (LACAN, 1964/1998, p. 867). Esta citação bem que nos convoca ao conjuro castelhano: Lagarto! Lagarto!, anúncio de mau augúrio.

O desejo, termo maior em Freud, atravessa cada um dos chamados quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, como colocado por Lacan (1964/1990) em seu Seminário 11: inconsciente, repetição, pulsão e transferência. O desejo está metabolizado em cada um deles de forma distinta. Os quatro termos mencionados são outros tantos estados de ser, quatro distintos Dasein do desejo, multiplicidade concomitante à sua falta a ser.

Lacan produz novos termos ao longo do recorrido de seu ensino, termos que guardam alguma característica do desejo, que matizam distintos aspectos. Alguns desses termos terão declínio certo, como Das Ding, A Coisa, que aponta ao real, o que em Freud viria a localizar-se como o corpo da mãe, esse obscuro objeto de desejo, o proibido, o tabu. Graças a Das Ding, Lacan consegue transmitirnos uma maior aproximação à sua ideia de Real, já então claramente distanciada da "realidade", inclusive da "realidade psíquica" freudiana, situada entre o Simbólico e o Imaginário, circunscrita às voltas do fantasma. Cabe assinalar aqui que em seu Seminário 6, o desejo e sua interpretação, Lacan (1958-59/inédito) aborda o desejo conjugado ao fantasma e localizado entre a cadeia da enunciação e a cadeia do enunciado, e portanto, sua abordagem abunda entre os dois polos: do imaginário e do simbólico. No ano seguinte, em seu Seminário 7, a ética da psicanálise (LACAN, 1959-60/1991) incorpora Das Ding para dar conta do real, o que caiu como resto, não tratado no ano anterior.

Produto da linguagem que se constitui em causa: causa do dizer, causa do discurso, causa do sujeito, então. Assim, a partir do desterro imanente à operação simbólica de constituição do falasser, isso empurra-o a uma tentativa vã de recobrar o ser que perdeu pela referida operação. "Fala, ser, fala", e quanto mais fala para ser, mais se assenta sua falta a ser na palavra impotente que apenas pode formular demandas, aprofundando o abismo com o desejo. Em todo caso, ele lhe permite um paresser, um semblante de ser, sem o qual ficaria à mercê de Tanatos: o ser sem falta, ser-para-a-morte.

Então, desejar se conjuga com a castração, um dos nomes freudianos, e sob seu mandato se exercita o recalque primário, original, Urverdrängung, que enuncia a constituição do sujeito na palavra, como concebeu Freud.

Nessa estratégia se assenta a indestrutibilidade do desejo, seu caráter mais genuíno, no dizer de Freud. Indestrutível por ser ilocalizável, por esse Dasein que o coloca sempre no intervalo, na hiância, no fundamento, segundo a tradução da Amorrortu, com suas implicações de "lugar radicalmente anterior a tudo".

Tomo por um momento o termo heideggeriano, Dasein, para esclarecer que se trata de um segundo grau de "ser", mais além da simples existência (Existenz), grau do ser que implica a consciência, consciência de si mesmo, e que portanto é somente atribuível ao humano.

Quando Lacan faz uso deste termo, o faz, acredito, em seu "ser-aí", para refutá-lo de raiz, pelo menos em dois sentidos. O primeiro deles, porque o "aí" do desejo é evanescente, está sempre em outra parte, e deste ponto de vista é incompatível com a ideia existencialista do ser. O segundo remete à qualidade da consciência, que para o sujeito que se ocupa da Psicanálise é absolutamente secundária com respeito ao que interessa ao ser: o inconsciente, o insu, o que nunca alcançará a consciência, nem sequer depois de uma análise levada a seu termo.

O ser do desejo é, então, um "desser", uma "falta a ser", oposto ao Dasein. O que o avanço de uma psicanálise consegue para o sujeito não é a recuperação do ser, fim a que se prometeu e por cujo motivo iniciou o tratamento analítico, fazendo o analista depositário dessa expectativa. Trata-se de que ao final não há outra saída que renunciar a essa expectativa. É mais, há uma diminuição do ser, na medida em que opera uma considerável perda de gozo, condição, preço e tecido com o qual se tece o "novo desejo", ainda que com os retalhos do velho.

Então, caindo sob o recalque, um significante unário, não sabido, funda a dimensão do inconsciente, essa estrutura de linguagem que faz borda à falta relançadora em que se ampara o dizer do sujeito. Não somente seu dizer, mas também seu sintoma, que no fim é um dizer com um complemento de gozo, aquilo que não se disse. Entendo que com esta oposição entre gozo e significante, Lacan faz do desejo o motor de um e de outro. O sujeito, em sua vertente falasser, se faz porta-voz de uma enunciação que procura os enunciados, que o permite recorrer ao âmbito do simbólico. Porém, não tudo o que sua enunciação implica cabe no dito. Há outras duas modalidades de exercício da enunciação: o ato, sem objeto e sem Outro, porém, que por sua vez modifica o sujeito sob sua execução, forma mais "pura" de plasmar o ser desejante, ou bem a loquacidade do sintoma.

Digo "modalidades de exercício da enunciação" para marcar a distância entre o enunciado e a enunciação, que Lacan desenvolve amplamente em seu Seminário 6 a partir do trabalho sobre o grafo do desejo.

A enunciação, o dizer, opõe-se ao enunciado, ao dito. O sujeito sabe que diz, ainda que não saiba bem o que diz, pois em seu dito há um aspecto de enunciação que lhe escapa, e onde se situa seu desejo inconsciente.

A operação analítica há de levar o sujeito a localizar-se em seu dizer, a conhecer a posição que tem com respeito ao enunciado, seu dito, nisso consiste a enunciação. Nesse seminário, Lacan define a interpretação como a ferramenta com que o analista leva o sujeito a fazer descender – no grafo – da linha da enunciação (entre S( ) e ($<>D) à linha do enunciado: entre s(A) e A.

A interpretação deve tocar o dito em seu dizer, deve surpreender o sujeito como dizente de algo que supera o que tentava dizer. Nessa época, Lacan o apresenta como uma cruz de cadeias significantes: a da enunciação inconsciente e a do enunciado consciente. O analista deve dar conta dessa cruz, à espera da resposta do sujeito. Não se trata de acrescentar um enunciado por parte do analista, senão de tocar o dito onde houve interferência. Não é preciso dizer que o analisante faz eco de si mesmo e contribui à interpretação, porém é esta a aposta lacaniana: a interpretação é um efeito que se produz no sujeito, do contrário não é interpretação. E, nesse segundo caso, pode ser simplesmente uma invasão do discurso do sujeito por parte do dizer do analista, ou seja, uma intervenção do sujeito analista, e pela via de seu desejo. Esta era, com frequência, a prática com que Lacan se encontrava por parte de seus pares, e contra a qual se posicionava.

A este respeito cabe assinalar a anedota acerca da análise do paciente de Ella Sharpe (1971) que Lacan comenta nesse mesmo seminário. A analista assinala que se trata de um paciente a quem nunca ouve chegar e em certa ocasião o ouve tossir antes de entrar. Considera que é um elemento novo, porém não o assinala porque entende que não está no momento da análise que permita fazer comentários acerca dos acontecimentos corporais, sem dar mais precisões de quando será o momento.

Porém, é o próprio paciente quem indica que se deu conta de sua tossezinha e esclarece que isso deve significar algo, desenvolvendo a partir de suas associações toda uma trama que dará conta de certa posição fantasmática, e de um desejo de sair de cena, de não estar aí (Dasein), evitando a intervenção do outro.

Quis fazer esse apontamento por várias razões: em primeiro lugar, por este desejo de "estar em outro lugar", com suas conexões com o tema que nos ocupa – o lugar do desejo – e por outra parte pelo assinalamento de Lacan de que é o próprio sujeito que supõe uma significação na tossezinha, adiantando-se a analista. Evidencia-se, então, que na entrada em análise, que Lacan situa precisamente neste momento para o paciente de Ella Sharpe, depende do que acontece no próprio analisante, do que se formula como sujeito suposto saber, e cuja responsabilidade cai do lado do analisante. É o próprio paciente quem, contra toda suposição da analista – ainda não chegou o momento – assinala sua abertura ao inconsciente com este "isso deve significar algo". Vemos o sujeito localizando-se em seu enunciado (a tosse) e, portanto, "descendendo" da linha da enunciação à linha do enunciado e dando logo a interpretação a partir de suas associações. O mais interessante, diz Lacan, é que a analista não havia assinalado essa eventualidade, que contradiz sua enunciação doutrinária. O momento de dar ou não a interpretação vem anunciado pela entrada em transferência. Antes da mesma, da suposição de um sujeito e um saber por parte do analisante, toda interpretação não é mais que dizer vão do analista, que não vai ressoar no dizer do analisante. Esta é a consideração do timing por parte de Lacan.

É a interpretação que localiza o desejo do sujeito em um instante precedente, depois do qual o sujeito do desejo já não está aí. Por isso tomei o termo Dasein, para e(qui)vocar um ser-estar aí fugitivo. Podemos dizer que a interpretação daseina o desejo do sujeito. Dá a ele uma localização que não tinha antes desse efeito da interpretação, nem terá depois. Parece-me muito pertinente a menção de Lacan do "efeito" com referência à interpretação, pois lhe atribui consistência não ao dizer do analista, e sim ao que esse dizer produz no analisante. Somente se houver efeito haverá interpretação. Não podemos tomá-la como um "saber" acerca do desejo, um saber prévio que o analista anunciaria ao dar sua interpretação. Em todo caso, nos vem bem aqui a expressão "saber vão de um ser que se furta" (LACAN, 1968/2003, p. 260). Se há efeito de interpretação, este se manifesta do lado analisante como um saber, porém vão por sua imediata evanescência.

Então, a interpretação é tão evanescente como o próprio desejo a que diz respeito, questão que o termo "efeito" recolhe fielmente. É tão somente um "efeito de interpretação", um "efeito de saber" passageiro sobre o desejo.

A modalidade de intervenção do analista a respeito da interpretação do desejo vai se tornando cada vez menos de saber e mais de som. Podemos dizer que o analista opera em seu ato resonhabliemente, e não tão razoavelmente como pretendia o didatismo de Ella Sharpe.4

"É preciso tomar o desejo ao pé da letra" (LACAN, 1958/1998, p. 626)

Esse conselho lacaniano, precoce em suas formulações, se produz em um tempo em que enfatiza a divisão entre letra e significante, e em que a escritura daria o contexto da palavra. O título de um escrito do ano anterior, "A instância da letra no inconsciente..." dá boa conta do dito. Não por acaso, em seu seminário O saber do psicanalista (1971-72/inédito) se refere a este escrito, a este título, para assinalar que o real é "o que não cessa de não se escrever", e não "o que não cessa de não dizer-se".

Encontramos o precedente no próprio Freud, que nos ensinou a tomar o sonho como o texto do desejo, e a considerar também como parte do texto todas as notas marginais, constituídas pelos comentários do sonhador no momento em que relata seu enunciado.

Conhecemos as vicissitudes nas referências à escritura, desde a Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900/1976) até a Uma nota sobre o bloco mágico (FREUD, 1925 [1924]/1976)5. Nesse pequeno artigo, Freud exalta as virtudes de um produto que acaba de ser comercializado na Inglaterra, que consiste em uma lousa que permite escrever e apagar sem fazer desaparecer totalmente o conteúdo escrito. A lousa é uma tabuleta de cera ou resina de cor escura, emoldurada com papelão; sobre ela há uma folha delgada, transparente. Aplicando uma punção sobre a lâmina, se consegue que a superfície do papel encerado pressione a cera sobre a tabuleta e seus traços escuros tornam visível a escritura. Separando de novo a folha, se consegue apagar o escrito, porém a inscrição sobre a cera permanece, ainda que não seja visível. De todo modo, as inscrições vindouras deformarão em algum grau o anteriormente escrito.

Estas características permitem dar um modelo do aparato mnêmico, permitindo uma contínua armazenagem de novas inscrições sem perder as anteriores, embora se dê essa afetação do anteriormente escrito sobre o que virá mais adiante (efeito Nachträchlig, segundo Freud; après coup para Lacan).

Derrida (1989) se baseou nesses trabalhos freudianos para documentar seu archiescritura como previa a palavra na constituição do inconsciente. Lacan (1971/2009, p. 84) nega tal precedência do escrito à palavra, a partir da simples definição da escritura como representação da palavra, sem restar importância à escritura em sua definição do inconsciente. A este respeito, cita a anedota de um paciente que em cinco minutos chamou sua mãe de "minha mulher" umas vinte vezes. Para Lacan não se trata de nada falho nessa palavra, mas sim de uma palavra lograda. Está escrito que sua mãe é sua mulher. Ou seja, em nível inconsciente, sua mãe ocupa para ele o lugar de sua esposa. Por isso diz, no mesmo seminário, que mais que um "lapsus linguae" se trata de um "lapsus calami", atendendo ao cálamo, a cana com que se escreve na tabuleta romana, a "lousa não tão mágica" daquele tempo. Com esta metáfora, Lacan indica que um lapso linguae é um lapso de escritura, do que está escrito no inconsciente e que segue "insistindo" mediante sua letra.

De todo modo, para fazer falar a escritura há que transformá-la em palavra. Aí Lacan diferencia claramente escritura e palavra: o escrito não se dirige ao Outro, a palavra, sim. Para afetar a escritura inconsciente é preciso supor um dizer, um sentido, no escrito, e isso nos leva ao algoritmo da transferência como questão preliminar para produzir um dito sobre o dizer, entendendo que o dizer é uma escritura no meio do dito, que não é evidente que vá ser localizada pelo sujeito. O relato do sonho exemplifica o fato: há um escrito no texto do sonho, sua enunciação, que é possível localizar fazendo do mesmo texto uma mensagem dirigida ao outro, o analista, para poder escutar, aprés coup, a mensagem mediante o que o Outro, o inconsciente, devolve ao sujeito que fala, "sua própria mensagem de forma invertida". Poderíamos comentar esta operação a partir da perspectiva do "eu sei que ele sabe" (LACAN, 1976-77/inédito), sendo "ele sabe" uma fórmula do discurso do Outro, o inconsciente, l'insu que sait: isso fala em meu dito.

Quando no Seminário 18, Lacan (1971/2009) aborda o tema da escritura, o faz colocando em convivência com o aspecto fônico da palavra. É uma época em que se aproxima da língua japonesa e assinala alguns aspectos que o estudo dessa língua lhe trouxe, como a afetação da escritura no desenvolvimento da própria língua. Um dos caracteres que assinala na escritura é que deverá ter em conta as distintas sonoridades de uma mesma letra conforme esteja escrita, como as cinco modalidades de pronunciar o i em chinês, por exemplo. Comenta, então, que a escritura serve para indicar o som que corresponde à palavra.

Chegando até aqui, podemos colocar em relação a "instância da letra" no inconsciente com a intervenção fônica do analista, modulando o dito do analisante no que vem a ser a interpretação.

Lacan sempre foi muito dado aos jogos homofônicos e os transladou muito rapidamente a seu ensino. Há uma espécie de "dizer moebiano" que permite produzir distintos efeitos de sentido, em função de como se leiam os dizeres.

Um exemplo célebre é o título do seminário que não chegou a dar precisamente por sua expulsão da IPA: Les noms du père. Anos mais tarde, depois de anunciar repetidamente que nunca daria esse seminário, ditou seu seminário Les non-dupes errent (LACAN, 1973-74/inédito). Nesta homofonia entre dois enunciados de escritura distinta e de sentidos também distintos, se escutam diferentes efeitos segundo o sujeito intérprete, mais além de seu "saber", pois ressoa em seu dizer, afetando a isso que Lacan disse acerca do sonho: uma enunciação – escrita – no interior do enunciado.

Chamo "dizer moebiano" por recolher a noção de "unilateralidade" da banda e o efeito que produz: percorrendo-a somente uma vez por inteiro, parece que se percorre duas faces. Assim, Les non-dupes errent evoca e inclui Les noms du père. Posteriormente, teremos um exemplo para mim mais sugestivo, como L'insu que sait de l'Une-bévue s'aile à mourre (LACAN, 1976-77/inédito), título a ser dividido em três fragmentos de distintas combinações possíveis. Assim, em L'insu que sait se escuta L'insuccès, fundando no fracasso do enunciado inconsciente sua permanência como não saber que sabe. Em L'Une-bévue ressoa L'Unbewusst, nome freudiano do inconsciente, e em s'aile à mourre podemos ouvir c'est l'amour.

A diversidade de "saberes" que se conjugam nesse percurso moebiano de uma mesma tira fônica é muito mais rica em conteúdo que uma grande conferência sobre o tema, e ademais se acrescenta o benefício de tocar a cada um, segundo seu Insu, em um ou outro sentido, ou seja, em uma ou outra verdade mentirosa.

Entendo que este é o modelo que Lacan propõe à interpretação: fazer escutar, na caixa de ressonância do sujeito, o escrito do desejo. Não como saber, e sim como murmúrio [resón]. Podemos dizer que a interpretação opera reson-hable-miente mais que razoavelmente.

Nesta modalidade de interpretação, se exercita a metáfora segundo o modelo do chiste, tão bem explicado por Lacan (1957-58/1999) em O Seminário 5: As formações do inconsciente com um precioso jogo homofônico: O pas de sens. O efeito de chiste, de transmissão, se produz por uma queda de sentido ao emergir um novo sentido no segundo tempo do chiste. O intervalo produz um efeito de sem sentido (pas de sens) que se revela como um passo de sentido (pas de sens), a um novo sentido.

O exemplo é o do milionário a que um grupo de pessoas trata com obséquio, comentando alguém com seu interlocutor "como adoram ao bezerro de ouro!". Ao que este responderia: "Não te parece um tanto mais velho para bezerro?". O passo de enfatizar o ouro do "bezerro" a enfatizar sua idade é o que levaria ao efeito e o afetado do riso, sempre que haja, isto sim, certa cumplicidade em nível inconsciente.

 

Agente, semblante, desejo

Uma das últimas acepções do desejo no ensino de Lacan é quando se situa no lugar superior esquerdo de sua escritura dos discursos: os quadropodos ou tetrapedos, como ele disse preferir chamá-los para usar termos bastardos, de pai latino e mãe grega ou vice-versa, em seu inesgotável brincar com as línguas.

O termo mais usado em seu Seminário 17 (LACAN, 1969-70/1992), para esta localização é o de "agente", pois é quem opera. No discurso do mestre é o S1, o mandato do mestre; no discurso universitário, o S2, ou seja, o saber – que por sua vez, funciona como mandato –; no discurso do sujeito histérico se trata do $, o sujeito dividido; e no discurso do analista é o objeto a. Creio que o termo agente é bastante preciso e fácil de entender.

Porém, Lacan não se detém aí. Usa o termo semblante para esse mesmo lugar, e se somente o menciona explicitamente a respeito de alguns dos discursos, podemos tentar extrapolá-los aos demais. Assim, no discurso do analista o a é um semblante, pois o analista não é o objeto a em causa, somente se presta como semblante, convergindo este entre o simbólico e o imaginário, excluindo-se o real. Creio que no discurso universitário podemos afirmar também que o S2 é um semblante, pois os saberes vão se constituindo ao longo da história, segundo o estado do sintoma que afeta a um grupo. O saber que comanda nossa Europa merkelizada não é o mesmo da Itália fascista ou do Maio francês. Acerca deste último, Lacan se referiu bastante em Vincennes, sugerindo que propor a revolução é simplesmente voltar ao mesmo lugar, solicitar outro mestre. No discurso do mestre, o S1 é um semblante? E o é, o $ no discurso da histérica? Deixo estas perguntas. Passemos ao desejo.

No discurso do analista, o desejo está efetivamente a cargo do analista. Aqui me parece evidente a coincidência entre agente, semblante e desejo. Não há análise a não ser que se coloque em jogo o desejo do analista por meio de seu ato. A transferência, o sujeito suposto saber, corre a cargo do analisante, e é algo necessário para que o discurso analítico se desdobre, porém não é suficiente, e isto exige o desejo do analista.

No discurso universitário, podemos pensar que o "desejo de saber" comanda. Há que saber, e o escravo, que astude, forma passiva, particípio do suposto verbo astuder – uma nova astúcia de Lacan – se faz objeto desse desejo de saber. Quem detém a função de ensinar é quem deseja saber, porém não o saber como objeto que satisfaria esse desejo, senão saber como causa do desejo. O saber é causa desse discurso, e nesta medida causa e desejo seriam sinônimos.

No discurso do mestre é o S1 quem causa. A operação de linguagem, a introdução do significante, coloca os sujeitos para obedecer à linguagem, fazendo um discurso. Com lalíngua se constitui o fundo de armário a partir do qual poderá surgir o inconsciente estruturado como uma linguagem, os vestidos do parlêtre.6 Parece-me adequado assinalar aqui que lalíngua se apresenta em Lacan como um lapso que se refere a Lalande (LACAN, 1971-72/inédito, aula de 4 de novembro de 1972), o "Vocabulário crítico da filosofia". Podemos, com isso, dar alguma volta acerca da relação do sujeito com o saber e com o que não sabe. Certamente aí se separam as águas entre a concepção filosófica e a psicanalítica. Lacan mesmo o menciona no contexto de seu lapso. Portanto, se trata de lalíngua, e não de Lalande – entendido como compêndio dos saberes filosóficos – poderíamos concluir.

Por último, o discurso do sujeito histérico. Certo, o desejo do sujeito é o que o comanda, é seu agente. Esse desejo que Lacan define como "desejo de fazer desejar", e que tanto saber produz. Mediante o mesmo, colocado originalmente na figura de Sócrates, sujeito histérico por excelência, ao Mestre se instilou o desejo de saber, e isso produz uma mudança de discurso e uma mudança no discurso do mestre.

 

Desejo do analista

Agora ainda uma linha para um termo lacaniano que se assenta plenamente no desejo: o desejo do analista. É considerado produto genuíno de uma análise e causa de outras possíveis análises. O passe, procedimento inventado por Lacan, prova transmissível do desejo do analista de seu promotor, pretende dar conta desse desejo particular, como prova de que "há analista" em quem levou uma análise a seu termo.

Desejo aqui citar um fragmento dessas mesmas "Entretiens de Sainte-Anne":

O passe é o que proponho a quem se dedicou o bastante para expor-se com fim somente de informação sobre um ponto delicado: que é completamente a-normal – objeto a normal – que alguém que faz uma psicanálise queira ser psicanalista. Faz falta uma espécie de aberração que vale a pena oferecer... para saber por que alguém que sabe o que é a psicanálise por sua didática, ainda queira ser psicanalista (LACAN, 1971-72/inédito, aula de 01 de junho).

Uma aposta para remitir esta "aberração" à concepção aristotélica do desejo como fora do campo do humano. Creio, nesse ponto preciso do "desejo do analista", Lacan não deixa de ser um tanto nicomáqueo.

E, para finalizar, quero tomar brevemente a outra face moebiana do Dasein, o Das Ein: O Um.

O desejo constitui o indestrutível do sujeito por fazê-lo Um, e é o Um que o faz resistente ao Outro e ao Dois, os dois termos que podemos colocar como opostos significantes ao Um.

É certo que a análise costuma iniciar-se sob os auspícios do Um da unidade. Um deseja unificar-se, e também deseja alcançar o Dois da relação sexual. Porém, também é certo que outro Um, este já não uniano, mas singular, para cada-um, é o que resiste no desejo, que obstaculiza o Um unificador, e que se imporá, no melhor dos casos, ao fim da análise.

Há Um, disse-nos Lacan, e por isso não há Outro nem por fim, relação sexual. Este é o Das Ein que nos coloca ao final de uma análise: o desejo.

Para mim, o interesse deste percurso é o de sustentar que, se bem "desejo" é um conceito freudiano, e se bem é equivalente em Lacan, ou seja, o conceito genuinamente lacaniano é o de "gozo", este último deve muito ao primeiro, e não esgota, com todos seus desenvolvimentos, a vigência do desejo no ensino de Lacan. Lacan não somente vai mais além de Freud, com todos os desenvolvimentos conceituais e terminológicos que chega a produzir, bem como abandona esse termo, pois os tentáculos do termo freudiano seguem abraçando mais além do que o próprio Freud escreveu sobre o mesmo.

Entendo, então, o desejo como a pedra angular de todo o edifício psicanalítico, e se Lacan, em seus últimos anos em Caracas, se confessou freudiano, algo se deve ao indestrutível desse desejo, seu impressionante valor conceitual. O que implica que aqueles, convocados pelo mesmo Lacan, nós, que nos dizemos lacanianos, o somos à custa de comungar com a primazia do desejo: Das Ein em nossa formação.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Manel Rebollo
Unió 46, 1º andar. 43001 Tarragona, Espanha
E-mail: mrebollo@spt.cat

Recebido: 04/02/2014
Aprovado: 05/04/2014

 

 

Tradução: Andréa Brunetto
Revisão: Conrado Ramos e Ida Freitas
* Licenciado em psicologia pela Universidade de Barcelona. Especialista em Psicologia Clínica. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Psicoanalítico Tarragona. Mestre em Antropologia da Medicina e Saúde Internacional pela Universidade Rovira i Virgili. Docente de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Seminário de Psicanálise de Terragona.
4 N.T.: Mais adiante em seu texto, o autor explica o jogo homofônico que está fazendo.
5 A tradução melhor para pizarra é quadro-negro, lousa, porém no texto de Freud em português está traduzido por bloco mágico: "Uma nota sobre o bloco mágico" (1925[1924]).
6 Parlêtre, em francês, inclui fale, parece e ser.