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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.28 Rio de Janeiro jun. 2014

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

O importante papel do humor na direção da cura

 

The important role of humor in the direct of the cure

 

 

Silvia Lira Staccioli Castro*

Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo tem como objetivo destacar a importância do humor na direção da cura. Aprendemos com Freud (1927/1996) que este protege a instância do eu do sofrimento perpetrado pelas críticas severas do supereu. Fazer rir é aludir à face afável do supereu, em contraponto à sua face cruel. Dentro desta perspectiva, foi conduzido um caso de um sujeito obsessivo que se encontrava à mercê de seu ódio e, consequentemente, de seu descontrole emocional. Com frequência, atuava de forma violenta e desmedida como o personagem Giovanni Manzoni, nascido na literatura e que ganhou vida nas telas do cinema recentemente. Assim como Manzoni, Igor é um sujeito dividido subjetivamente entre a consciência moral e a obediência aos ditames maléficos superegoicos. Sofre se dá vazão à sua ira, pelas desastrosas consequências indesejadas e sofre se as inibe, pois então, tem até sintomas físicos como dores no peito, enjoos e desmaios. Assim, só resta a Igor a seguinte saída, prosseguir com sua análise.

Palavras-chave: Neurose obsessiva, Humor, Supereu, Violência, Gozo.


ABSTRACT

The objective of the article is to highlight the importance of humor in the direction of the cure. We have learned from Freud (1927/1996) that humor is able to protect the ego from the suffering caused by the severe criticism by the superego. To make the patient laugh means to allude to the superego's friendly facet, as opposed to its merciless one. Under such a perspective, it was conducted a case of an obsessive patient who had been subjected of his hatred, and, consequently, to his emotional lack of control. Very frequently, he acted in a violent and unlimited way just like Giovanni Manzoni, a character from literature who recently came to life in the big screen. Thus, such as Manzoni, Igor is a subjectively divided subject between moral consciousness and obedience to the malefic super egotistical orders. On one hand, he suffers if he allows himself to be guided by his rage, by the unwanted and disastrous consequences. On the other hand, he suffers if he inhibits them, once he presents even physical symptoms like chest pains, nausea, and faintness. So, Igor is finally left with the following choice, to go on with his treatment.

Keywords: Obsessive neurosis, Humor, Superego, Violence, Jouissance.


 

 

Gostaríamos de apresentá-los a um personagem muito interessante chamado Giovanni Manzoni. Saiu dos livros e tomou vida em um filme intitulado A família, dirigido e produzido pelo francês Luc Besson, com produção executiva de Martin Scorsese. Grande parte de seu carisma se deve à bela atuação de Robert De Niro, um brilhante ator que soube encenar as nuances desse ex-mafioso, protegido das ameaças de morte pelo FBI. Dizemos nuances porque ele nos faz rir em diversas situações grotescas em que percebemos o seu cuidado em disfarçar o que fizera de errado, como quando espancou severamente um sujeito que o deixara irado numa circunstância banal do dia a dia. Preocupado com as consequências de seu ato, levou-o ao hospital e não o deixou no quarto sozinho por nenhum momento. Enquanto o sujeito descansava na maca todo quebrado, o médico explicava a Manzoni as inúmeras lesões ocorridas e o indagava como aquilo havia acontecido. O espanto de De Niro diante da gravidade das fraturas, e a alternância do tipo de olhar, ora simpático, dirigido ao doutor, e, ora ameaçador, endereçado àquele homem, causa gargalhada nos telespectadores.

Assim, Giovanni Manzoni é um homem dividido entre o impulso de praticar o mal, isto é, em dar vazão ao seu ódio, e o dever de proteger a sua amada esposa e seus queridos filhos adolescentes. Uma vez tendo delatado parentes e amigos em Nova Iorque e assim evitado sua prisão, ganhara como prêmio a liberdade. Fora levado dos Estados Unidos para a França, a fim de que ninguém o reconhecesse, mudança essa financiada pela Polícia Federal americana. Dessa forma, fora instalado com a família numa casa, curiosamente sem número, e, ao seu lado, moravam os policiais responsáveis em vigiá-lo.

O humor negro norteia o enredo desde o início, e logo observamos que havia mais uma pessoa no carro, além de Manzoni, sua esposa e seu casal de filhos, mais exatamente, um corpo no porta-malas. Num flashback, ficamos sabendo de quem se tratava a vítima, um mero vendedor de frutos do mar, que ousou querer lhe empurrar lagostas estragadas.

De madrugada, enquanto sua família cochilava, Manzoni pegou uma pá e se pôs a cavar um buraco para enterrar o sujeito morto no quintal. Ao seu lado, se colocou seu amado cachorro de estimação, com quem Giovanni Manzoni é um verdadeiro doce, e de quem ele acusava vir o cheiro podre, sentido pela família, durante a viagem para o novo endereço de residência.

Nos primeiros dias, Manzoni ficava recluso em casa, não chegava nem a tirar o pijama. Tentava parecer o menos suspeito possível. Entretanto, um vizinho de porta, muito curioso com o morador recém-chegado, enquanto cuidava do jardim, procurou perguntar-lhe sobre sua profissão. Decide dizer que é um escritor aposentado, imbuído de um novo projeto. Surpreso com sua própria resposta, Giovanni se vê disposto a escrever suas memórias, que passam a ser narradas no filme. Por meio de sua história de vida, começamos a entender como esta peculiar família americana de origem italiana foi parar ali naquele vilarejo e mais, do que ela é capaz.

Aqui, neste ponto do trabalho, devemos fazer uma pausa na discussão sobre esse personagem a fim de retomar os comentários de Kupermann (2003) sobre o humor, mais propriamente sobre o efeito psíquico da piada. O autor afirmou que esta permite a manifestação das pulsões sexuais e agressivas inibidas pelo recalque. Aliás, essa foi uma lição aprendida com Freud (1905/1996) no início da construção de seu arcabouço teórico; o chiste tem o poder de abrir fontes de prazer que, de outra forma, seriam inacessíveis. Sendo assim, uma vez suspensa a inibição, obtém-se uma cota de satisfação. E, este é justamente o efeito que o filme A família provoca. Rimos diante da dificuldade de Giovanni em se manter do lado do bem, e de toda a sua tentativa, inúmeras vezes em vão, de controlar a raiva. Tem uma cena hilária em que, estando à frente de um churrasco oferecido em sua casa, numa política de boa vizinhança, por estar sendo inquerido sobre a forma de preparar a churrasqueira, se vê golpeando todos aqueles franceses intrometidos. No lugar de agir como um frio assassino, Giovanni sorri e retoma o preparo dos hambúrgueres.

O que mais nos chama a atenção na produção cinematográfica não é o contraste entre o pragmatismo americano e o secularismo europeu do Velho Mundo, presente na tela, destacado pelos críticos, nem o erotismo da Lolita virgem encarnada por sua filha adolescente, que seduz seu introspectivo professor, conforme indicam alguns cinéfilos; mas a reprodução do que ocorre em alguns sujeitos que ficam à mercê do ódio que emana de si.

Giovanni não é apenas um criminoso, mas um sedutor escritor e um personagem muito inteligente e carismático, que, em muitos momentos, deixa-se levar pela emoção da raiva. Tanto é cruel em certas ocasiões, como amoroso em outras.

Curiosamente, ocorre uma cena no filme, na qual a realidade e a fantasia se misturam. Manzoni é convidado na condição de escritor de ficção para um evento importante numa cidade vizinha, um debate sobre um filme, cuja cópia não chega à cidade, e é substituída por outro, justamente sobre a máfia. Trata-se de Os bons companheiros, do qual o próprio De Niro faz parte, dirigido por Martin Scorsese. Quem o acompanha ao evento é o chefe do grupo de policiais, responsável por sua guarda, interpretado por Tommy Lee Jones. Após a exibição do filme, Manzoni toma a palavra e traça um perfil psicológico dos gangsters retratados na tela. Associa algumas marcas do passado de um mafioso, de quem teria pesquisado a história familiar, com sua impulsividade e brutalidade contumaz na idade adulta. O diretor nos leva a crer que ao tecer seus comentários, Manzoni faz uma verdadeira catarse, relembrando seus traumas infantis; assim, ao final do evento é ovacionado. Já o telespectador fica com a certeza de que mais uma vez podemos utilizar a expressão "Freud explica".

E o policial do FBI, perplexo com tamanha desenvoltura e exibicionismo de Manzoni, decide que aquela seria a última noite da família na Normandia. Afinal, seria impossível a partir dali mantê-lo no anonimato. Daí em diante, ocorre uma série de eventos que culminam no final do filme, que nos furtamos a descrever, para não estragar a surpresa de quem não o assistiu.

A graça dessa produção está na humanização de seus protagonistas, cuja divisão subjetiva fica evidenciada, de tal forma, que não se vê na tela um perverso, ou, para usarmos um sinônimo carregado de estigma, um carrasco, como Anthony Hopkins em O silêncio dos inocentes, por exemplo. A comédia dá o tom das cenas de brutalidade. Elas são mostradas ora em câmera rápida, ora recortadas, às vezes em ordem invertida, o que nos poupa de um possível voyeurismo.

Giovanni Manzoni não é um homem mau, que não sabe amar sua esposa ou seus filhos. Sim, é destemperado, raivoso, impulsivo, mas também tem um lado adorável. A sua esposa também nos seduz com sua inocência a despeito de suas atitudes criminosas. Por isso, talvez, tenham escolhido Michelle Pfeiffer para fazer este papel. Embora muitos anos tenham se passado desde que surgiu em Hollywood, continua com um semblante angelical, de menina. Quando não está aprontando, seria esta a palavra cabível, pois esta remete à brincadeira (ali, nada pode ser levado tão a sério), é uma dona de casa prendada, uma mãe dedicada a seus filhos, grata aos policiais que estão ali para cuidar de suas vidas. Estranhamente, sente-se próxima deles, cativa uma íntima amizade. Sempre vai até a casa da dupla, levar uma apetitosa macarronada, momento em que aproveita para tomar um café e conversar. Ela é, ainda, uma católica praticante, que vai à igreja no meio do dia.

Notamos ser ainda difícil, nos dias de hoje, para nós, psicanalistas, lidarmos com comportamentos transgressores, que pervertem a lei. Quando perguntam onde é o ambulatório público no qual trabalho e respondo que é na Polícia Militar, dentro de um batalhão, as pessoas fazem o seguinte comentário: "deve ser pesado, né?". A que se referem? A essa face sádica que pode ser acentuada em alguns sujeitos? Estão se referindo ao traço perverso que imaginam ser facilmente identificado nos policiais militares de forma geral?

Na clínica, temos de suspender as balizas do asco, da vergonha e da moral, que a cultura nos impõe. Simplesmente, não podemos reagir como o padre, outro personagem interessante na película, que se colocou a escutar a Sra. Manzoni no confessionário, encorajando-a a se abrir e dias depois, expulsou-a da igreja, chocado com o que ouvira.

A violência produzida pelos Manzoni assusta por ser brutal, contudo nos faz rir da forma como é retratada pelo diretor e produtor.

Igualmente, por meio do humor, foi conduzida a análise com um paciente, que se apresentou nas primeiras entrevistas deprimido, habitado por muita angústia, culpado e atormentado por ideias suicidas.

Freud (1927/1996) nos ensinou que o humor retira a severidade do supereu, que na neurose obsessiva é cruel e espezinha o eu. Tem a função de consolar esta instância, protegendo-a do sofrimento. Retomando mais uma vez Kupermann (2003), ele mostrou ser o supereu, em sua qualidade afável, modificado pelo riso, por se bendizer a vida, um contraponto em relação ao supereu cruel e sádico, que nos manda gozar.

Esse paciente, de aproximadamente 45 anos, chegou a tentar o suicídio quando tinha 18 anos. Usou drogas, vindo a perder a medida do quanto podia consumir; e chegou a ter uma overdose. Falava nas sessões sobre uma impulsividade atroz que o colocava em situações de risco constantemente. Reproduzia em sua mente cenas de duelo, estava sempre situado entre o matar e o morrer. Notava que, de alguma maneira, antecipava a morte; aliás, se via morrendo. Enfim, habitualmente, sua mente era invadida por pensamentos recorrentes, em que se imaginava envolvido em acidentes trágicos e fatais. Sabemos o quanto o obsessivo se ocupa com suas fantasias, que "podem assumir, em alguns sujeitos, uma forma realmente invasiva, absorvente, cativante, capaz de tragar pedaços inteiros de sua vida psíquica, de sua vivência, de suas ocupações mentais" (LACAN, 1957-1958/1999, p. 423).

Para Lacan, a morte não deve ser localizada no adversário, que o obsessivo insiste em desafiar. Afinal de contas, esse outro com quem joga é sempre ele mesmo. A morte deve ser colocada pelo analista, em relação ao obsessivo, no lado do Outro, que é sua testemunha ocular, que observa e atesta os golpes por ele sofridos, para aí afirmar: "Decididamente – como é dito em algum lugar no delírio de Schreber –, ele é um durão" (LACAN, Ibid., p. 433).

Quando Igor esbarrava em alguma dificuldade cotidiana, como quando era provocado no trânsito, por exemplo, era tomado pela raiva, e então ficava cego em relação à razão. "O peito chega a arder", disse uma vez. Nessas circunstâncias, os pensamentos destrutivos se iniciavam. Ora dirigidos ao outro e ora a ele mesmo.

Um dia, disse em análise: "Eu me descontrolo completamente. Não sei usar o bom termo". Estranhei a expressão por ele empregada. "Teria querido dizer meio termo?", me perguntei. Estava aí presente um ato falho da maior importância. Então lhe devolvi o ato dizendo simplesmente: "Você está querendo dizer que usa o mau termo? Que o mal se sobressai?". Sem hesitar, o paciente afirmou ser exatamente essa a questão; de certa forma, sentindo-se aliviado por poder ser tão sincero. Esta foi a chave para que ele começasse a associar: "Diante de situações bobas, eu perco a cabeça. Sinto um verdadeiro ódio, uma vontade louca de fazer mal ao outro", afirmou.

Perde a cabeça porque, ao atuar de forma sádica, goza. Igor se deu conta de que muito habitualmente buscava esse gozo a contrabando. Chegava a ligar para os colegas "para comprar o bagulho dos outros", se oferecia para ficar neste lugar. Imbuído do sentimento sádico, já viveu cenas que remetem ao próprio Giovanni Manzoni.

Certa vez, Igor veio a mim, desesperado, por ter desferido vários golpes de faca na poltrona de sua casa, após discutir com sua ex-mulher. Ela sabia muito bem como atingi-lo, tirando-o do sério. Em vez de censurá-lo, me vi gargalhando diante de tamanho desatino. Pedi que ele repetisse a história a fim de que eu pudesse entender o que havia acontecido. Então, ele mesmo se viu rindo. Em outra situação, em que seu time de futebol teve uma importante vitória, deu tiros para o alto, acertando o lustre da varanda, destruindo-o. Só depois se dera conta de que na casa havia o filho de seu amigo recém-nascido.

Com o decorrer da análise, passou a temer suas próprias reações. Teve como estratégia isolar-se, evitando ambientes e situações que pudessem despertar alguma atuação sua.

Para dar uma ideia da gravidade de seu sintoma, podemos destacar uma ocasião vivida em sua adolescência. Estava conversando com alguns amigos na varanda da casa de um deles, quando repentinamente, ao fazerem um comentário sem graça, que foi recebido como uma grande humilhação, Igor arrancou com os dentes a cabeça de uma galinha. Será que é possível acreditar em tal disparate?

Embora tenha protagonizado cenas bárbaras, difíceis de imaginar, como esta acima descrita, Igor é um homem educado, articulado e inteligente; amoroso com sua família.

Como bem marcou Gazzola (2002), quando o obsessivo obtém um gozo perverso, ele estranha sua satisfação libidinal, não se reconhece neste ato. Esse é um gozo estrangeiro, vindo de fora. Ao contrário do perverso, o obsessivo se divide e se angustia, pois é atormentado pelos escrúpulos e pelos valores morais.

Ao ouvir seus relatos de crise, não poderia censurá-lo, condenando-o a se punir ainda mais. Notava que vinha culpado, sentindo-se derrotado, a cada sessão. Espontaneamente, encontrei uma forma de fazê-lo enxergar o exagero e o nonsense de suas atitudes. Por outro lado, questionei o fato de nunca ter sido punido por seus atos, "como saíra ileso diante de tantas transgressões cometidas?", perguntava a mim e a ele. Talvez as pessoas se sentissem tão ameaçadas por sua figura, que não ousavam procurar a polícia. Não ter sido pego manteve-o preso na compulsão à repetição. É certo que pagou um alto preço pelo sintoma, já que se afastou de sua família e amigos e entrou numa aguda depressão. Até porque perdeu tudo que acumulou ao longo dos anos de trabalho. Inconscientemente, parece ter se imposto uma pena. Pena perpétua.

Freud (1924/1996) nos mostrou que a pulsão sádica se alterna com a pulsão masoquista. Neste caso clínico, esta tese fica comprovada. Igor costuma se sabotar profissional e emocionalmente. Certa vez, ao se dirigir a um compromisso profissional importante, mudou de caminho muitas vezes e, inexplicavelmente, não conseguiu chegar ao endereço marcado, caindo depois num choro copioso, do qual afirmava desconhecer a origem.

A sua compulsão às drogas, ao sexo, à aniquilação do outro, o tornava um mero marionete, um sujeito aprisionado ao seu sintoma. Obviamente, não podemos desconsiderar a existência de uma grande dose de masoquismo, pois depois de liberar seus impulsos agressivos, deprimia-se assolado pela culpa e pelo julgamento de seu juiz cruel – supereu.

Lacan (1957-1958/1999) ressaltou as "proezas" do obsessivo; ele impõe a si mesmo uma miríade de duras tarefas, diríamos penosas, das quais obtém sucesso, pois é exatamente o que busca. Há um caráter fictício nessas "proezas", que evocam as fantasias sádicas.

Quando falava de sua infância, dizia ter sido um menino mentiroso, dissimulado e cínico. Nunca sofreu abuso físico ou de outra ordem. A mãe sempre foi carinhosa com ele, pronta a atendê-lo em seus caprichos. O pai era firme, bastava olhar para os filhos para que o respeitassem. Como eram quatro irmãos homens, às vezes se agrediam fisicamente. Sentia-se o mais feio de todos. Sabe a ordem de preferência de sua mãe pelos filhos e que não ocupa nem o primeiro e nem o segundo lugar. Cresceu à sombra do primogênito, um gênio, que soube ganhar a vida honestamente de forma a ter um rico patrimônio. O seu pai encarnava a figura do homem humilhado, fracassado, que precisou do trabalho da esposa para sobreviver. Foi demitido do emprego por não ter concordado em entrar num esquema corrupto que prejudicava a empresa. Assim, ficou com a honra e a verdade, mas desempregado. Nunca mais encontrou outra ocupação.

Igor sempre traz para a sessão a dúvida de ceder ao dinheiro fácil, resiste em aceitar os convites que sempre estão chegando. Em nome de sua filha, do pai que quer ser para ela, evita o caminho mais curto e tortuoso. A analista está ali no consultório para lembrá-lo de seu amor por ela. No início do tratamento, se perguntou por que havia se mantido tão distante desde o seu nascimento. No momento em que a barriga de sua esposa começara a ficar evidenciada, havia se afastado fisicamente dela, evitando ter relações sexuais. Chegou a ficar impotente. Sabemos o horror que sentem alguns homens de transar com a mulher no estado de gravidez, fruto do receio de poderem fazer mal ao feto, ou até por realizarem desta forma algum desejo incestuoso de copular com a mãe. Por último, entrou numa situação tão sinistra, que não convém mencionar aqui, em que sua vida e a de sua família corriam risco. E não podia contar a ninguém, além de alguns de seus pares, este segredo. Então, decidiu sair de casa. Culpava-se pelo fim do casamento. Entretanto, em análise, chegou à conclusão de que muitos problemas do casal surgiram em função, não só de seus segredo e mentiras, mas do difícil temperamento de sua mulher, desafiador e provocante. Como toda histérica, queria destituir o homem eleito fálico, humilhá-lo e mostrar-se mais poderosa.

A análise permitiu que acedesse ao desejo pela planejada e amada filha, que parecia necessitar, aos seus olhos neuróticos, somente da mãe. Fixando-se na figura deste pai que almeja ser para ela, correto e responsável, e temendo deixá-la órfã precocemente, está podendo se salvar dos mandos do supereu.

Atualmente, o paciente está mais avisado quanto ao gozo, que atos movidos pelo ódio podem lhe provocar e o quanto a raiva pode ser destrutiva. Por essa razão, concluiu a respeito de seu sintoma: "É estranho, doutora. Quando extravaso esse ódio, sinto como se fosse a própria sensação do que ocorre no sexo, o próprio gozo". Nesta afirmação, o caráter libidinal das atuações do paciente fica evidenciado, podemos aludir à sua fantasia perversa infantil, a qual ainda tem de ser, por ele, atravessada. Afinal, não se trata de pura pulsão de morte, como dito anteriormente, a pulsão sexual, isto é, a pulsão de vida, está sempre amalgamada à pulsão de morte.

Para finalizar, Igor ainda tem um longo caminho de análise para vir a decantar esse gozo consistente. Houve alguns avanços como o fato de ter sustentado o seu desejo, que por muito tempo mostrou-se vacilante, pela mulher amada, que achava que seria desaprovada pela família, por ser uma pessoa que frequentava sua casa, quando era casada. Iniciou um namoro com ela, alguém que não esperava que Igor ocupasse o lugar do homem corajoso, valentão e esbanjador, ao contrário de sua ex-mulher. Para ela, podia se apresentar castrado, "duro" e triste. Estar num relacionamento sério, lidando com os obstáculos surgidos aos poucos, como é próprio de toda relação, foi fruto de sua análise. Voltar a frequentar a casa dos seus pais também. Durante bastante tempo acreditava ser impossível ter uma vida a três: ele, uma mulher e sua filha. Não podia ser pai e homem ao mesmo tempo? Pois o pai tem de ser morto, castrado, impotente? Depois de muitas sessões, vem conseguindo incluir sua filha nas saídas com sua namorada.

A análise também o fez perceber que ele próprio se castigava pelos erros cometidos no passado. É claro que Igor vem descortinando a castração, descobrindo que não há saída, senão se submeter a ela. A ele só resta prosseguir com suas sessões.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Silvia Lira Staciolli Castro
Estrada dos Três Rios 1173 – Sala 406
Jacarepaguá – Rio de Janeiro – RJ - CEP: 22745-004
E-mail: silviastaccioli@gmail.com

Recebido: 11/02/2014
Aprovado: 30/03/2014

 

 

* Doutora em psicologia clínica (PUC-Rio – 2009); Mestre em psicologia clínica (PUC-Rio – 2003); Psicóloga militar do corpo de saúde da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (desde 2002); Psicanalista participante da FCCL-Rio