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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.28 Rio de Janeiro jun. 2014

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Na vertigem da dor: o luto na zona entre os vivos e os mortos1, 2

 

In the vertigo of the pain: mourning in the zone between the living and the dead

 

 

Miriam Ximenes Pinho*

Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Política do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Formações Clínicas e da Rede Clínica do Fórum do Campo Lacaniano-São Paulo (FCL/SP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Freud considerou o luto "um grande enigma, um desses fenômenos a que se relacionam outras coisas obscuras". A partir da singularidade de um caso clínico nos arriscaremos a adentrar no enigma do luto e em suas obscuridades. Do caso, pretendemos extrair três fios – nomeados "na vertigem da dor", "o estatuto do morto" e "o luto entre o recordar e o repetir" – que servirão de condutores para a escrita e ajudarão a ilustrar e articular algumas proposições acerca do luto em Freud, Lacan e Jean Allouch. Uma escrita que visa menos esclarecer as "coisas obscuras" que cercam o luto do que contribuir, em seus impasses, para a sua problematização clínica e teórica.

Palavras-chave: Luto, Direção do tratamento, Psicanálise.


ABSTRACT

Freud considered mourning "a great enigma, one of those phenomena which relate to other obscure things." Departing from the singularity of a clinical case, we risk entering the mourning enigma as well as well as its obscurities. From the case, we intend to extract three strands – listed as "in the vertigo of the pain", "the statute of the dead", and "mourning in between recalling and repeating" – which will serve the purpose of leading into the writing, and also help illustrate and articulate some propositions on mourning in Freud, Lacan, and Jean Allouch. A writing process which aims at less clarifying the "obscure things" that surround mourning than contributing, in its impasses, to its clinical and theoretical questioning.

Keywords: Mourning, Treatment direction, Psychoanalysis.


 

 

É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
às rosas e as outras coisas singularmente promissoras
não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano;
o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas, não mais o ser [...]
– Os vivos cometem o grande erro de distinguir demasiado bem.
Os anjos (dizem) muitas vezes não sabem se caminham entre vivos ou mortos.

Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, 2001

O poeta nos adverte que os mortos não desaparecem por completo, são os vivos que, por equívoco, separam em demasia o mundo dos vivos e dos mortos. Diante de uma perda inconsolável, os (sobre)viventes assemelham-se aos anjos por vagarem em uma zona de liminaridade, sem distinguirem ou talvez sem se importarem se estão entre os vivos ou os mortos.

Em A transitoriedade, Freud (1916/2010) escreveu que o luto pela perda de algo que amamos ou admiramos "é um grande enigma, um desses fenômenos que em si não são explicados, mas a que se relacionam outras coisas obscuras" (p. 250). Em geral, nossa atitude cultural-convencional diante da morte não é franca: por um lado, sustentamos que a "morte é o desfecho necessário de toda a vida" e por outro, manifestamos "a inconfundível tendência de pôr a morte de lado [...].

Procuramos reduzi-la ao silêncio" (FREUD, 1915/2010, p. 230). Tendemos a tratar seus assuntos como se fossem de natureza fortuita em vez de inevitável daí o total colapso que sofremos quando morre alguém que nos é precioso.

Até meados do século XIX, de tão frequente, a morte constituía-se familiar, conforme o historiador Philippe Ariès. Desde então assistimos a uma revolução brutal nas atitudes e representações coletivas tradicionais diante da finitude nas culturas cristãs ocidentais. A morte "se tornou selvagem"3 (ARIÈS, 1981, p. 31): Os homens passaram a se calar sobre a própria morte que se tornou vergonhosa e objeto de tabu, e junto com ela as manifestações públicas de luto. Em contrapartida, nem bem o interdito se impunha e já surgiram violações. A morte tornou-se loquaz por meio da proliferação do discurso de especialistas (antropólogos, historiadores, psicólogos...) dispostos a reinvesti-la: "Expulsa da sociedade, a morte volta pela janela: volta tão depressa como desaparecera" (Ibid., p. 613).

É na efervescência desse movimento que, nas últimas décadas, as questões referentes ao luto retornam com força no campo psicanalítico diante da necessidade de se reconsiderar as versões em voga. A instigante obra Erótica do luto no tempo da morte seca, de Jean Allouch, lançada em 1994, ilustra bem esse esforço. Além de reproblematizar a questão do luto na teoria freudiana, Allouch, apoiado no ensinamento de Lacan, propõe uma versão outra do luto, mas não sem antes visitar o debate que expõe a selvageria da morte no contemporâneo e seus efeitos para a vicissitude de um luto.

A partir da singularidade de um caso clínico nos arriscaremos a adentrar no "enigma do luto" e em suas "coisas obscuras". Do caso, pretendemos extrair três fios – nomeados "a vertigem da dor", "o estatuto do morto" e "o luto entre o recordar e o repetir" – que servirão de condutores para a escrita e ajudarão a ilustrar e articular algumas proposições acerca do luto em Freud, Lacan e Allouch. Entretanto, ressaltamos que esta escrita visa menos esclarecer as "coisas obscuras" que cercam o luto do que contribuir, em seus impasses, para a sua problematização clínica e teórica.

Uma mulher que chamaremos Walkiria justificou sua vinda ao atendimento por causa de suas frequentes explosões de ira no trabalho. No entanto, fragmentos narrativos giravam em torno de outra "causa". Lacan (1964/2008) assinalou que "só existe causa para o que manca", isto é, que entre a causa e seus efeitos há sempre uma hiância, uma oscilação, um quê de indeterminação (p. 29). E qual era a "causa" que "causava" Walkiria? A morte abrupta do esposo que tornou a sua vida, dali por diante, uma "meia-vida" (sic) suspensa na zona entre a vida e a morte.4

O dia do trágico acidente, como haveria de prevê-lo? "Era um dia como os outros, ele queria que eu fosse com ele, mas eu tinha outros planos." Pega de surpresa, Walkiria "não esperava" que ele viesse a falecer. Mas "a pior parte foi fazer o reconhecimento do corpo". Na falta de outros parentes, coube a ela atestar a sua morte.

Diante de sua dor inconsolável, amigos lhe recomendaram ir à igreja, posto que "lhe faria bem rezar". Mas em vez de orações para o descanso eterno da alma do falecido, o que ela buscava mesmo era "uma resposta sobre o porquê de tudo aquilo". Sem essas respostas, abandonou a igreja e os amigos.

No trabalho foi-lhe sugerido realizar uma "consulta espiritual" na qual foi identificado que "o espírito do morto ainda estava ao seu lado e essa era a fonte da energia que pesava sobre ela". Era necessário "fazê-lo partir para ajudá-la". Abandonou imediatamente a consulta e demitiu-se do trabalho, ficou "desesperada, não queria que ele partisse!".

Um ano após o acidente, foi surpreendida por uma mensagem que pedia o seu comparecimento para fins de re-confirmação da morte perante o sistema previdenciário. Mas o que lhe ocorreu, em uma arrebatadora alegria, foi ler na mensagem a possibilidade de um reencontro: "Será que ele está vivo? Foi encontrado?". Demorou um tempo para perceber o equívoco.

Alguns anos após a perda do "primeiro marido" (sic) conheceu o "segundo marido" (sic) que a encantou por ser "parecido com o primeiro". Porém, logo constatou que quando se trata de repetição, por mais que se esforce, a segunda vez só pode ser segunda, jamais a primeira. Pensa em se separar, pois vive a "comparar o segundo com o primeiro".

O "segundo", sabendo-se secundário, quer acertar as coisas, legalizar a união. Walkiria reage, ou melhor, mostra-se "eriçada" [straüben] – como diria Freud5 – diante da ameaça de deixar de ser a mulher do "primeiro" e abandonar o seu sobrenome e pensão. O mesmo eriçamento aparece no trabalho onde se mostra frequentemente intolerante e irritada.

Na fenda da causa, algo da ordem de uma recusa, de uma espera, retém Walkiria em uma zona liminar: "Depois que ele morreu tudo na minha vida ficou pela metade. A vida ficou interrompida, não porque eu quis, mas porque isso aconteceu. Não consigo terminar as coisas. Penso, às vezes, que eu poderia ter ido com ele e morrido junto".

 

Na vertigem da dor: o caráter absoluto do objeto desaparecido

Em Luto e melancolia, Freud (1917/2010) considera o luto, de forma geral, uma "reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupou seu lugar, como a pátria, liberdade, um ideal etc." (p. 172). O "luto profundo", continua Freud, comporta "doloroso abatimento, a perda de interesse pelo mundo externo [...] e o afastamento de toda a atividade que não se ligue à memória do falecido" (Ibid. p. 173).

É como se, com o ser perdido, tivessem sido enterradas "todas as nossas esperanças, ambições, alegrias; ficamos inconsoláveis e nos recusamos a substituir aquele que perdemos. Nós nos comportamos como os Asra, que 'morrem, quando morrem aqueles que amam'" (FREUD, 1915/2010, p. 231). A inibição e restrição do Eu exprimem uma exclusiva e dolorosa devoção ao luto que faz o mundo parecer "pobre e vazio" (FREUD, 1917/2010, p. 176). Em Walkiria encontramos ainda esse traço de devoção e de inibição em que pouco resta para outros interesses, "dez anos se passaram, mas para mim é como se fossem apenas dez minutos".

Freud (1917/2010) qualificou de doloroso o estado de ânimo do luto. Mas demorou alguns anos para que pudesse explicar a economia da dor que o acompanha. Em Inibições, sintoma e angústia, Freud (1926/1980) apresenta uma analogia entre a dor física e o "sentimento de perda de objeto" (p. 194). Na dor física há uma concentração elevada de investimento narcísico em um ponto do corpo. Se esse investimento continua a aumentar, tende a esvaziar o Eu. Da mesma forma, um objeto amado que falta concentra uma contínua intensificação do investimento de anseio propiciado pela impossibilidade de apaziguamento mediante satisfação, uma vez que o objeto não responde mais.

No seminário O desejo e sua interpretação, Lacan (1958-1959/2013) propõe que uma das características mais evidentes da experiência do luto é que o sujeito mergulha "na vertigem da dor" e se encontra em uma certa relação com o objeto desaparecido que, exatamente por faltar, assume um caráter "absoluto" (p. 397). Lacan evoca em Hamlet a cena em que Laertes salta no túmulo e abraça a irmã morta para ilustrar do modo o mais manifesto possível que a inacessibilidade do objeto do desejo o torna mais irresistível ainda: "Laertes salta no túmulo [de Ofélia], e, fora de si, abraça o objeto cujo desaparecimento é a causa dessa dor. Desse modo manifesta que o objeto se encontra tendo uma existência tanto mais absoluta porquanto não corresponde mais a nada que seja (Ibid., p. 397).

De outra forma, acompanhando o comentário de Allouch (2004) sobre esse seminário, é justamente o fato de "não corresponder mais a nada que seja que dá ao objeto seu estatuto de objeto do desejo" (p. 274). O caráter absoluto do objeto está vinculado à sua não-existência. Essa nota de Lacan está para além da questão da morte real que faz luto, pois diz respeito à própria estrutura dos fundamentos do desejo que é da ordem de uma impossibilidade, impossibilidade no objeto do desejo. O objeto se constitui libidinalmente na fantasia a partir dessa não-correspondência com "a nada que seja". Isto é, diante da falta absoluta, sem objeto correspondente, o sujeito ampara-se em algo – a partir da cadeia significante – para construir esse objeto como absoluto. É aí que um pequeno outro se torna objeto de desejo, presença ilusória do objeto absoluto e por isso mesmo, condenado a priori ao desapontamento e castração, como bem apontou Garcia-Roza (1986): "Procuramos das Ding, mas encontramos die Sache" (p. 43).

Segundo Allouch (2004), existem casos em que a morte de um ser querido parece abrir esta via de acesso à impossibilidade do objeto de tal forma que o morto advém como Erômenos – objeto impossível – enquanto que o enlutado se vê transformado, brutal e repentinamente, em Erastes, isto é, desejante. Walkiria, assim como tantos outros enlutados – mergulhados na dor de uma perda intolerável – acaba por crer nessa correspondência possível entre o objeto de seu desejo, o morto, e o objeto absoluto que é "fundamentalmente perdido, não por ter havido uma perda primeira, mas justamente por ele ser um objeto sem correspondência" (p. 274).

Nesse momento de seu ensino, Lacan (1958-1959/2013) destacou que a perda de um "ser essencial" abriria um "furo no real" que produziria uma desordem tal em que nada menos que a totalidade de elementos significantes seria convocada para dar conta desse rombo aberto na existência (p. 397). Allouch (2004) lê o "furo no real" como uma metáfora que permite a Lacan ressaltar que a impossibilidade do objeto – objeto impossível, objeto furo no real – funciona topologicamente como um lugar que possibilita ao sujeito despejar todas as imagens e significantes postos em jogo no trabalho de luto. Entretanto, tudo o que for despejado nesse furo – ainda que seja o próprio enlutado nos casos de suicídio, como aponta Allouch – jamais será capaz de preenchê-lo, da mesma forma que ao objeto absoluto não há nada que corresponda.

A peregrinação de Walkiria em "busca de respostas" ilustra bem esse apelo à intervenção "total, maciça do inferno até o céu de todo o jogo simbólico" (LACAN, 1959-60/2013, p. 398). Uma busca frenética por elementos que possam dar conta da desordem criada "em razão da insuficiência de todos os elementos significantes a fazer frente ao furo criado na existência [...] ao redor do mínimo luto" (Ibid., p. 399).

Allouch (2004), em sua versão do luto, destacou que um de seus traços marcantes no contemporâneo é que "o enlutado está habitado pelo ser que ele perdeu". Amparado na leitura de Ariès, ele considera que o atual asselvajamento que cerca o fim da vida teve por efeito um desconhecimento quase sistemático da morte de tal modo que "cada um se acha habitado não tanto pela 'questão da morte', mas bem mais concreta e 'insabidamente', por seus mortos" (p. 318).

O tabu que cerca a morte no Ocidente – paralelo ao declínio da certeza nas crenças religiosas e ao desaparecimento de referências normativas evidentes, tais como os tradicionais ritos fúnebres e seu caráter público – culminou com o atual desamparo diante da morte tomada agora como perda definitiva. No passado, o luto podia ser bem mais regrado no contexto cristão, porque o homem podia se fiar na crença da imortalidade da alma e em Deus, o grande Outro da garantia, que continha as cartas do destino. A morte não era a separação definitiva, havia para o enlutado um além onde o morto poderia ser localizado e reencontrado (ALLOUCH, 2004).

No tempo da morte seca6 – sem público, sem ritos, sem lágrimas – os mortos de um sujeito vão junto a ele tomando consistência, muitos nem sequer se dão conta de que estão de luto, pois a "a fila anda", sugere o ditado popular. Porém, o que encontramos na clínica é que esses mortos silenciados insistem em retornar quer seja na forma de sintomas ou no sufocamento desses. Em Walkiria encontramos essa consistência que faz de seu morto uma presença mais viva que os vivos. A sombra do falecido cai-lhe como "uma energia pesada" da qual parece extrair a confirmação de que o marido morto continua ao seu lado. Ao manter um luto infindável sob a égide de uma energia pesada, visaria dar consistência a essa relação?

Há ainda a assombrá-la a última fala do marido antes do acidente. A frase repercute tal qual um convite enigmático: "Ele queria que eu fosse com ele...". Caberia indagar se Walkiria não estaria identificada a essa frase casual elevada a significante do desejo do morto. Estaria ela, com sua meia-vida, atendendo ao seu último pedido? Sentir-se-ia culpada por não ter ido? Se tivesse ido, poderia tê-lo salvo, evitado o acidente? Ou ainda morrido junto? Seria essa asserção que estaria por trás do fazer-se de morta?

 

O estatuto do morto: de desaparecido a inexistente

Para Freud (1917/2010), a função do luto consistiria em realizar o trabalho – trabalho de luto – de retirar toda a libido investida no objeto desaparecido. Uma forte e "compreensível oposição [sträuben]" dificulta esta operação que só é cumprida aos poucos com grande dispêndio de tempo e energia de investimento. Em um primeiro momento, há um embate entre o exame da realidade que traz o veredicto de que o objeto amado não existe mais e a tentativa de se prolongar a existência do objeto perdido no psiquismo. Freud enfatizou o caráter de detalhe na operação de desligamento dos investimentos libidinais em que uma a uma as lembranças e expectativas ligadas ao objeto são evocadas e superinvestidas para fazer valer "o mandamento da realidade". Mas existem casos em que a oposição pode ser tão intensa, que se produz um afastamento da realidade e um apego ao objeto mediante uma "psicose alucinatória de desejo". Mas em geral prevalece o respeito à realidade, mesmo que sua solicitação só possa ser cumprida aos poucos.

Lacan (1958-1959/2013) por sua vez, com seu furo no real, propôs um parentesco do luto com a psicose. O luto realizaria uma operação inversa ao mecanismo da foraclusão [verwerfung]: "[...] O luto, que é uma perda verdadeira, intolerável ao ser humano, provoca nele um furo no real. A relação de que se trata é inversa daquela que exponho diante de vocês sob o nome de verwerfung quando eu vos digo que aquilo que é rejeitado no simbólico reaparece no real" (p. 356).

Entretanto, Allouch (2004) recomenda cautela com o termo "inversão" de que fala Lacan. Sugere que esse teria um sentido aproximativo, já que não se trata de uma imagem invertida (como no espelho) ou de uma proposição inversa, mas de uma operação, tal como a foraclusão, em três dimensões, simbólico, imaginário e real. O luto se realizaria nessas três dimensões: "os fenômenos do luto não seriam retorno no real do que terá sido foracluído do simbólico e sim apelo ao simbólico e ao imaginário provocado pela abertura de um furo no real" (p. 368). Dito de outro modo, se inversão há, deve ser tomada "no sentido de uma permutação termo a termo: o furo simbólico com retorno no real seria inverso do furo real com apelo ao simbólico (p. 277)".

O parentesco do luto com a psicose ajuda a explicar os fenômenos que causam tanto estranhamento no luto: os relatos de um "quase-encontro" com o morto, os fenômenos corporais, as loucuras coletivas presentes nas crenças no sobrenatural. Em Walkiria encontramos que uma mensagem recebida no caixa de um banco fez vacilar, por um breve, mas significativo instante, "o mandamento da realidade", um ano após ter atestado a realidade do cadáver.

Com frequência ouvem-se relatos em que o enlutado depara-se com "sinais" que acredita terem sido enviados pelo morto ou mesmo acredita tê-lo visto um dia na rua e que com entusiasmo precipitou-se nesta inesperada possibilidade de reencontro. Uma experiência que "sobrevém de modo tão exterior ao sujeito quanto à alucinação, ou o automatismo mental, ou até a excitação sexual" (Ibid., p. 71).

Para Allouch (2004), essas experiências dão testemunho de que a "realidade" do cadáver por si só não garante a sua inexistência. A inexistência só será admitida, e pode ser que não o seja, no fim do luto. No início, o morto ocuparia o estatuto de "desaparecido", isto é, alguém que ainda pode retornar ou reaparecer em qualquer lugar ou a qualquer hora. O luto é a operação que pode subverter o estatuto do morto que de desaparecido adviria inexistente, isto é, um ser que possivelmente deixaria de surpreender os (sobre)viventes com suas aparições, como um fantasma.

 

O luto entre o recordar e o repetir

Walkiria anunciou no início da primeira entrevista que era viúva e o marido havia se acidentado, mas que sobre esse assunto não gostava de falar, por essa razão havia se afastado de todos aqueles que o conheciam assim como evitava fazer novos amigos.

Após esse encontro, Walkiria desapareceu, surgindo, sem avisar, algumas semanas depois. Veio silenciosa, como alguém que cautelosamente espera. As poucas palavras lançadas diziam respeito à sua irritação no trabalho. À terceira entrevista deu início com a seguinte declaração: "não aconteceu nada durante a semana e não me lembro de nada do que falei na semana anterior. Não pensei em nada... e não tenho nada para contar...".

Sua presença muda evocava esses seres liminares presentes-mas-ausentes, nem-vivos-nem-mortos: "Não falo e não tenho o que falar". Na tentativa de abrir a cadeia associativa, a analista indagou se ela sempre havia sido assim: "na época do primeiro marido eu era alegre, gostava de sair, tinha vários amigos. Fechei-me depois da morte dele". As circunstâncias da morte foram então recordadas em seus detalhes, a pedido da analista. Na sequência dessa entrevista, Walkiria faltou. Veio uma vez mais apenas para anunciar que estava encerrando o atendimento. Para a analista deixou a confirmação daquilo que Freud já havia testemunhado: quando se trata da clínica, só recordar não resolve.

No início de seu trabalho clínico, Freud (1910/1980) mantinha o foco no momento da formação do sintoma e se esforçava por reproduzir os meios pelos quais os fatos traumáticos esquecidos pudessem ser recordados. A recordação, viabilizada pelo método catártico, visava suprimir o sintoma preenchendo as lacunas de memória. O sintoma neurótico foi comparado ao monumento histórico cuja função seria a de perpetuar a memória de um acontecimento importante. Os neuróticos seriam aqueles que "não só recordam acontecimentos dolorosos que se deram há muito tempo, como ainda se prendem a eles emocionalmente" (p. 19). A doença de Ana O., Freud interpretou como sendo a manifestação do luto por seu pai, uma fixação à sua memória e os seus sintomas "poderiam ser considerados como simples sinais mnêmicos da doença e da morte dele" (Ibid., p. 19).

Em Repetir, recordar, elaborar, Freud (1914/1980) destacou as mudanças na técnica, propondo uma distinção entre recordação [erinnerung] e repetição [wiederholung]. Enquanto mantinha-se focado no trabalho de recordar, ele percebeu a presença de uma forte resistência a dificultar a recordação. A repetição surgia quando algo esquecido não podia ser recordado e se expressava pela atuação, ou seja, era reproduzido "não como lembrança, mas como ação" (p. 196). Do arsenal de seu passado, o sujeito retirava "as armas com que se defendia contra o progresso do tratamento" e, ao mesmo tempo, invocava da vida atual um fragmento que daria a essa vivência a forte impressão de "algo real e contemporâneo" (p. 198). A repetição nesse sentido não se reduzia a uma mera reprodução, pois apontava o retorno diferencial de algo pela ação.

Porém, em seu estudo sobre o luto, Freud (1917/2010) deixou de lado a repetição para destacar o trabalho de recordação, a via elaborativa, por excelência, do luto. Posição compreensível uma vez que Freud anuncia desde o primeiro parágrafo do texto que o luto é um estado normal e por essa razão serviria de parâmetro de comparação para a melancolia, quadro patológico. No luto, diz ele, "nada é inconsciente na perda" (p. 175). O trabalho de luto freudiano é orientado para o relembrar em sua ancoragem imaginária, isto é, um trabalho que ocorre no Eu.7 Freud não aproximou o luto da repetição.

No caso Walkiria localizamos, ao menos no que é possível localizar em poucos encontros, uma recusa de um "trabalho de luto" à maneira clássica do recordar. No lugar deixado vazio pela recordação elaborativa, surgiam atuações "eriçadas" no relacionamento com os amigos, com o parceiro atual, colegas de trabalho e por fim, com a analista.

Parecia pouco ou talvez nada interessada em evocar seu morto em reminiscências do passado e dar a ele um destino psíquico, uma sobrevivência em lembranças. Havia uma tentativa insistente de invocar, conjurar o morto no aqui e agora da repetição. Uma repetição que se esforça por ser uma reprodução do mesmo que, no entanto, encontra a cada vez a falta, a impossibilidade de fazer da segunda vez o retorno da primeira. As tentativas de reencontrar o "primeiro marido" tropeçam sempre nessa impossibilidade uma vez que este não deixa de morrer a cada vez que falta ao evanescente encontro marcado.

Lacan (1964/2008) retomou a repetição freudiana para destacar nela a função do real. Para tanto, recorreu à noção de causa acidental concebida por Aristóteles nos termos de tyche e automaton. Automaton está relacionada à rede dos significantes e seu insistente retorno, enquanto que tyche é traduzida por "encontro do real", "de um encontro marcado, ao qual somos sempre chamados, com um real que escapole" (p. 59).

A tyche não se relaciona nem com a rememoração e nem com o retorno dos signos, mas com a repetição enquanto encontro do real, encontro impossível, "o encontro enquanto que podendo faltar, enquanto essencialmente é encontro faltoso" (Ibid., p. 60). Lacan destacou que a repetição é algo que se produz como por acaso, isto é, algo que o sujeito tropeça a todo instante, mas que atribui um caráter fortuito, acidental.

Algo desse encontro do real mostra-se na cena em que Walkiria descreve como tendo sido "a pior parte": o vertiginoso instante em que teve que fazer o reconhecimento do corpo e proclamar a sua morte ante a visão atroz do cadáver. Uma visão que lhe veio como uma batida, um knock out8 ante o corpo morto, visão da morte. Podemos indagar sobre a possibilidade de Walkiria ainda se encontrar paralisada no horror de reconhecimento do corpo, reconhecimento da morte.

Se "a repetição envolve o impossível de pensar e o impossível de dizer" (FINK, 1997, p. 241), a série de repetições localizadas no caso – os "tropeços" quer sejam na igreja, no caixa do banco ou no centro espírita – atualizam o encontro com a representação faltosa, o "encontro com o perdido" (BERTA, 2010, p. 58). Porém, "o perdido" não é "o primeiro marido" – este serve na medida em que se porta como um representante que envelopa ou veste, por assim dizer, o referente ausente ou não-representado, a morte.

Diante do horror de ter que (re)conhecer o impossível, talvez uma saída encontrada tenha sido a de apagar as confirmações da morte. Mas ao preço de ficar presa no curto-circuito do reconhecimento-horror-não-reconhecimento. Presa na vertigem da repetição que a faz sair correndo, deixando "as coisas pela metade". Posição que, por um lado, preserva a sua não-separação do morto, sua não-morte, mas que por outro, faz da repetição de reconhecimento o encontro do real.

A sua ida a análise também encontrou seu lugar na série de repetições. Walkiria, em sua primeira fala, fez saber à analista sobre a sua devastadora condição de viúva, ao mesmo tempo em que a advertia que disso nada queria falar ou saber. A analista, ao apostar em um trabalho de luto orientado para a lembrança, ignorou a advertência, pedindo-lhe que se recordasse do objeto perdido. Porém, em tal pedido o que Walkiria localizou foi a possibilidade de repetição, repetição do reconhecimento que a fez responder em ação suprimindo-se da cena, mais uma vez. Lacan (1964/2008) faz a seguinte observação a respeito das relações entre repetição e rememoração: "Vejamos então como o Wiederholen [repetição] se introduz. Wiederholen tem relação com Erinnerung, a rememoração. O sujeito em sua casa, a rememorialização da biografia, tudo isso só marcha até um certo limite, que se chama o real" (p. 55).

Se a repetição toca o real, o "indizível" e o "impensável", o recordar-se fica por princípio inviável. O convite "ouça-me, sou uma viúva" aparece indissociável da advertência "não me deixe falar disso" ou "não posso pensar/lembrar-me disso". De modo que, outra direção possível para esse caso poderia ter sido a de marcar as sutilezas da tyche, isto é, marcar a série de repetições que pareciam se produzir como por acaso. Ir atrás desse "tropeção, esse fisgamento, que reencontramos a todo instante" (Ibid., p. 60).

Há de se levar em conta que Walkiria abandonou precocemente o atendimento de forma que algumas considerações aqui tecidas devem ser cuidadosamente tomadas em seu valor especulativo. Da vida anterior ao casamento, por exemplo, nada foi dito, portanto, fica-se sem saber em que medida esse luto, ao qual tanto se apega, não estaria atualizando outro(s). Ou ainda de que forma a cena traumática encontra apoio na sua fantasia e que medida de gozo ela extrai de seu lugar na cena. O diagnóstico também permanece como uma questão em aberto.

Para Walkiria, o acidente que levou seu esposo assumiu não um valor fortuito, mas de verdade absoluta, causa de todas as suas causas: "Depois que ele morreu tudo na minha vida ficou pela metade [...] não porque eu quis, mas porque isso aconteceu". Berta (2010), em seu estudo sobre o trauma, ressaltou a relação solidária entre tyche e automaton. Um encontro casual das duas séries que pode ter o efeito de gerar uma vinculação inesperada entre uma causa acidental [tyche] e a série causal do sujeito, isto é, o retorno dos signos [automaton]. De outro modo, a autora ajuda a esclarecer que um encontro por mais brutal que seja não consegue assumir um estatuto de verdade absoluta sem que haja uma participação subjetiva, "sem que o sujeito do inconsciente acuse recibo dessa ruptura, entendendo esse acusar recibo na resposta subjetiva, seja pela via da fantasia, ou pela via do sintoma" (p. 64).

Ao deixar as coisas pela metade, Walkiria segue em souffrance (LACAN, 1964/2008, p. 60), isto é, em sofrimento, paciência, espera de algo indeterminado. Retida em uma zona intermediária é do Outro que espera a senha para saber sobre o sexo e a morte: "eu queria uma resposta sobre o porquê de tudo aquilo". Na última vez em que veio, declarou: "não gosto de vir aqui, não me sinto bem quando falo, o atendimento não está me ajudando". Se do Outro a resposta não vem, talvez ela mesma então responda se pretendendo morta enquanto aguarda ser surpreendida pelo reencontro... só não se sabe mais se com o vivo ou com o morto...

 

Referências

ALLOUCH, J. Erótica do luto no tempo da morte seca. Tradução de Procopio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. 407p.         [ Links ]

ARIÈS, P. O homem diante da morte. Tradução de Luiza Ribeiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. 670p.         [ Links ]

BERTA, S.L. Do trauma ao troumatismo. Stylus: Revista de Psicanálise, n. 21, dezembro de 2010, pp. 57-70.         [ Links ]

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FREUD, S. (1910). Cinco lições de psicanálise. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 11, pp. 3-51).         [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: miriampinho@yahoo.com

Recebido: 24/01/2014
Aprovado: 20/03/2014

 

 

* Psicanalista. Doutoranda do Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Política do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestrado em Ciências (Universidade Federal de São Paulo, 2009). Analista participante das Formações Clínicas e da Rede Clínica do Fórum do Campo Lacaniano-São Paulo (FCL/SP).
1 A versão final deste trabalho deve muito à supervisão precisa e generosa de Conrado Ramos e à Rede Clínica do Fórum do Campo Lacaniano-SP que concedeu a oportunidade de apresentar e discutir este caso com seus participantes. A todos meus agradecimentos.
2 Uma versão breve desse material foi apresentada no VII Encontro Internacional da IF-EPFCL, Rio de Janeiro, 2012. Alguns dos temas aqui abordados fazem parte da pesquisa de doutorado da autora, em andamento no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Projeto financiado no Brasil pelo CNPq – Processo no 143405/2011-0. O estágio doutoral foi financiado pela CAPES e realizado na Université Paris 13-Nord, França – Processo no 6142-13-3/2013.
3 Antropólogos (Geoffrey Gorer, Edgar Morin, Louis-Vincent Thomas...) e historiadores (Philippe Ariès, Michele Vovelle...) se esforçaram em mostrar as mudanças que transformaram as representações e atitudes coletivas diante da morte a partir, notadamente do século XX. "Morte interdita", "morte tabu", "morte selvagem", "morte pornográfica" são alguns dos termos cunhados por esses autores que reconheceram nessa nova atitude dois traços principais: a privatização da morte, antes um fato social e público, e a rejeição ou supressão do luto. Não exploraremos esse debate; aos interessados, recomendamos consultar as obras dos autores supracitados.
4 Cf. Lacan a respeito da lúgubre Antígona: "Com efeito, há muito tempo que ela [Antígona] nos dissera que já estava no reino dos mortos, mas desta vez a coisa é consagrada no fato. Seu suplício vai constituir em ser trancada, suspensa, na zona entre a vida e a morte [...]" (LACAN, 1959-1960/2008, p. 330).
5 Cf as notas de Jean Allouch (2004) sobre a palavra sträuben [eriçar, plissar, opor, irritar, erguer, recusar...] usada por Freud em alguns textos, incluindo Luto e melancolia. Nesse último aparece traduzida por "oposição": "O exame da realidade mostrou que o objeto amado não mais existe [...] isso desperta uma compreensível oposição [sträuben] " (FREUD, 1917/2010, p. 173, grifo nosso).
6 Tempo da "morte selvagem" para Ariès, "tempo da morte seca" para Allouch.
7 Quanto a esse ponto, remeto o leitor à dissertação de Sandra Berta, particularmente ao capítulo "Luto: entre imaginário e o simbólico". In: BERTA, Sandra Letícia. O exílio: vicissitudes do luto. Reflexões sobre o exílio político dos argentinos (1976-1983). 2007. Dissertação (mestrado em Psicologia Clínica). Universidade de São Paulo.
8 Tomado em seu sentido literal de "bater para fora".