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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.28 Rio de Janeiro June 2014

 

RESENHA

 

Resenha do Livro A criança em nós

 

The child in us

 

 

Jairo Gerbase*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil – Fórum Salvador
Associação Científica Campo Psicanalítico – Salvador

Endereço para correspondência

 

 

Sobre a autora e seu livro

A autora é impossível de adjetivar. Qualquer qualificativo que se lhe ajunte fica aquém de seu nome próprio. Perguntei a Nicômaco qual a virtude que estaria à sua altura, mas não obtive resposta. A excelência de seus atos, a vontade de fazer bem feito, na justa medida, é o seu traço unário. Coragem, honra, fidelidade, disciplina, lealdade, hospitalidade, laboriosidade, independência, perseverança, prudência, justiça, fortaleza, temperança, humildade e generosidade são excelências que Sonia Magalhães tem em abundância. É nossa Antígona, na medida em que ela também não cede de seu desejo. Sonia é ainda uma pessoa de seu tempo, atualizada, contemporânea. No encontro de Joinville, um colega me perguntou: quem é aquela senhora da Bahia? Eu lhe perguntei: que senhora? Ele respondeu: aquela senhora high-tech? Eu disse: é Sonia Magalhães. Todo mundo se impressiona com sua vitalidade, sua energia, sua disposição para o trabalho e para a vida. Eu diria, contrariando Aristóteles, não que ela seja imortal, mas que é eterna. Sonia não sonha com a ausência de tempo, como o comum dos mortais, ela conhece a eternidade.

O livro é uma coleção dos seus melhores artigos ao longo de três décadas. Tive o privilégio de testemunhar passo a passo sua fabricação. Nosso debate sempre foi profícuo porque ela não parava de avançar suas hipóteses. Ora me dizia: o significante do Outro barrado, segundo Lacan, é o segredo da psicanálise. Outra hora me dizia: a relação entre a psicanálise e a criança não pode ser prepositiva: psicanálise de crianças, psicanálise com crianças; este liame deve ser lógico, da ordem da conjunção: psicanálise e criança. Um campo inteiro passou a adotar essa orientação. De outra feita me disse: a tese de Lacan sobre a criança é a de que não existe adulto, é a tese da criança generalizada. E se identificou a tal ponto com esta tese, durante anos, que chegou a escolhê-la, com a aprovação de seus editores, como título de seu livro. Porém, por ser extremamente criativa, alguém que desliza facilmente pela equivocidade do significante, de súbito lhe caiu no colo a expressão: "A criança em nós", que conserva em si a tese da criança generalizada, a tese da criança no adulto, a tese lacaniana e rortyana segundo a qual o sujeito não tem idade, não se desenvolve, não amadurece nem envelhece, e ajunta a tese maior do campo lacaniano, a do RSI, do Real, do Simbólico e do Imaginário. A criança em nós explora o duplo sentido do pronome e do nó borromeano. E como cai bem quando se mostra o nó e se vê no seu centro o objeto a criança!

Eu lhe pedi os artigos selecionados para o livro, de modo a fazer uma leitura, ainda que dinâmica, a fim de poder dizer ao menos uma frase sobre cada um, mas ela recusou-se, dizendo-me que não seria preciso, que seria muito cansativo para meus olhos. Eu insisti e ela consentiu em enviar alguns, creio que um de cada seção do livro. Desse modo, pude reler agora um artigo intitulado "A causa humana por excelência", que trata do mito segundo o qual o amor é a tensão para fazer ex-sistir o Um, a forma épica de dizer o impossível, de fazer ex-sistir a relação biunívoca no Real. Reli outro, "Novas velhas histórias", título que ela diz ter tomado emprestado de Rosa, onde se notará que a autora não apenas sabe ler as histórias ditas infantis, como conhece Perrault, Andersen, Grimm. Desta vez, ela lê "Chapeuzinho vermelho", de Perrault, à luz de "Fita verde no cabelo", de Rosa e de "Chapeuzinho amarelo", de Buarque, em que o lobo é anagrama de bolo. Destaca que o predicado, o gozo oral do conto, está indicado no verbo comer e que os significantes vermelho, verde e amarelo são signos do perigo, da angústia. Neste bloco espero encontrar a maioria das estórias que ela nos conta em cada uma de suas palestras: La Moitié-de-Poulet, do primeiro livro de leitura de Lacan, João sortudo, O patinho feio, entre outros. O terceiro artigo que reli chama-se "A fobia é isso". Como disse há pouco, a autora sempre avança, desta vez para dizer que há coragem na fobia, que a fobia é o isso, uma plataforma giratória, um pai, que é preventiva, o brasão da castração, poesia viva, metáfora. Ismigou é uma ilustração clínica da lavra da autora, que serve para demonstrar onde é que os analistas têm medo. Reler é um ato recomendado por Borges (a quem tenho reservas de citar depois que descobri que ele apelidou Freud de Procusto, no prefácio a "O diabo enamorado", de Cazotte) no conto "Utopia de um homem que está cansado", integrante de O livro de areia. Seu interlocutor exclama: rapaz, sua biblioteca é maravilhosa, quantos livros tem aqui? Borges responde: dois mil. Seu interlocutor replica: dois mil? Quer dizer que você já leu dois mil livros? Borges responde: não, só li seis. O interlocutor: seis? Só seis? Sim, retruca Borges, o importante é reler. Reli outro artigo cujo título é: "Quando se cala uma criança". Trata-se do infanticídio, ilustrado em um caso clínico, não na dimensão do corpo, da substância extensa, mas na do significante, na diz-mensão da substância gozante. A criança não fala na presença de estranhos, do não familiar. Os desenhos da criança mostram a evolução da análise de maneira cristalina, como é laborioso levar uma criança a fazer a travessia da posição de objeto à posição de sujeito na sua relação com os pais. Em "A respeito do evanescimento do mundo infantil", a autora examina o conceito de amnésia infantil, sua importância em uma análise, a ponto de poder afirmar que há três questões cruciais postas à psicanálise: o que é um pai, o que quer a mulher e o que é uma criança. Neste artigo ela avança um pouco mais no esclarecimento da tese sobre a criança generalizada, chegando a afirmar que o que entendemos por "a criança em nós" releva da amnésia infantil, ou seja, quando falamos da criança no adulto, queremos dizer que o evanescimento do mundo infantil é apenas semblante, tal como se pode imaginarizar com o recurso do bloco mágico. Continuei a reler desta vez o artigo sobre "A transitoriedade e o bem-dizer", que trata da utopia da imortalidade, do desejo de eternidade ou da tristeza diante do que é perecível, que a autora atualiza no conceito de nostalgia diante da incompletude, do furo ou do universo mórbido da falta. O sentimento de cansaço (Levinas), de lassidão moral (Spinoza), de desamparo (Freud) que daí advém, a autora propõe tratar com o bem-dizer (Lacan). Ainda reli "Um dom raro e precioso", texto sobre o humor, que traz a engraçadíssima fábula fabulosa da lagartixa de Millôr, que gostaria de copiar e colar aqui, mas que desisti para deixar ao leitor deste livro o viço de ler o artigo original. E, por último, reli "Sua majestade, o bebê?", um texto sobre o narcisismo primário, de Freud, que contracena com "A mão que segura o berço", de Tchéckov, em que a autora retorna à sua tese maior, a da criança generalizada, sobre a qual Lacan, citando Malraux, disse: "Acabei acreditando que não existe gente grande", tese que, segundo a autora, aponta para o sujeito que não tem responsabilidade pelo seu gozo. Eu sou impressionado com tamanha erudição da autora.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: jsgerbase@icloud.com

 

 

* Psiquiatra. Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil – Fórum Salvador. Membro da Associação Científica Campo Psicanalítico – Salvador. Autor de Comédias Familiares, Paradigmas da psicanálise e A hipótese lacaniana. Organizador de O saber do psicanalista e Avatares do supereu.