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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.29 Rio de Janeiro nov. 2014

 

ENSAIOS

 

Algumas posições do Príncipe Hamlet ante o desejo

 

Some positions of the Prince Hamlet in front of the desire

 

 

Vanina Muraro*

Escola Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano
Revista Aun, Publicação de Psicanálise do FARP
Faculdade de Psicologia, Universidade de Buenos Aires

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Fazendo uso da figura do Príncipe Hamlet, consideramos a disposição do herói perante a morte. Atitude que nos ilustra suas posições ante o desejo. A complexidade do herói de Shakespeare, sua dúvida, sua demora em realizar o ato encomendado pela sombra – que o diferenciam claramente da figura decidida de Antígona – permitirão aproximarmo-nos das oscilações que nos ensina a clínica das neuroses. Seguindo a indicação lacaniana presente no Seminário 6, O desejo e sua interpretação, tomaremos como chave de leitura os distintos modos de não cumprimento dos ritos da morte que se disseminam na obra. Faremos esse exercício com a finalidade de pensar a que obedece a loucura de Hamlet.

Palavras-chave: Hamlet, Desejo, Morte.


ABSTRACT

Across the figure of Prince Hamlet, we will consider the disposition of the hero before death. The attitude which illustrates his positions before the desire. The complexity of Shakespeare's hero, his doubt, his slowness in realizing the act entrusted by the shade – which clearly differentiates him from the decided figure of Antigone – will allow us to approximate to the oscillations that the clinic of the neuroses teaches us. Following the Lacanian indication in Seminar 6, The desire and its interpretation, we will take as reading orientation the different manners of not following the rites of death that are disseminated throughout the work. We will engage in such an exercise with the purpose of reflecting over what Hamlet's madness obeys.

Keywords: Hamlet, Desire, Death.


 

 

Introdução

Escolhemos a figura do Príncipe Hamlet para pensar a temática proposta para este número da revista, baseados na afirmação de Lacan de que a tragédia do Príncipe da Dinamarca é, essencialmente, a "tragédia do desejo" (LACAN, 1958-1959, p. 265).1 A complexidade do herói de Shakespeare, sua dúvida, o adiamento em realizar o ato encomendado pela sombra, permitem-nos diferenciá-lo rapidamente da figura decidida de Antígona. A escolha dela é límpida e não admite sequer a peripécia que encontramos no desenvolvimento de outras tragédias. Muito útil para fins didáticos de compreender a realização do ato, Antígona se parece menos a essa oscilação que nos ensina a clínica das neuroses.

Gostaríamos de destacar que dada a riqueza e pluralidade de tópicos que aborda a obra, circunscrevemos a leitura ao seguinte viés: a disposição de Hamlet ante a morte, a qual nos ilustra, sem dúvida, o singular impasse que sofre seu desejo.

 

Hamlet ante a morte

Uma das leituras possíveis dessa obra de Shakespeare, proposta por Lacan no Seminário 6, indica que a peça gira ao redor de um protesto que tem como motivo o não cumprimento dos ritos da morte. Essa irregularidade encontra-se disseminada na obra em quatro ocasiões cruciais.

A primeira irregularidade consiste na apressada união entre seu tio e sua mãe. Trata-se da abreviação do luto pela morte do Rei. A segunda, quiçá a mais importante desta série – já que nela reside a razão da tragédia – consiste em que seu pai foi envenenado na flor do pecado, antes de estar preparado para dar esse passo, ou seja, sem oportunidade de arrepender-se e ser digno de perdão. Por isso, foi condenado a vagar entre os vivos, sem descansar na paz dos sepulcros, até que Hamlet efetue sua vingança.

Vemos delinear-se a topologia na qual se detém Lacan no Seminário 7, A Ética da Psicanálise: esse espaço situado entre duas mortes. É ali onde o pai de Hamlet encontra-se fixado, foi arrancado inesperadamente – diz Lacan – "essa barra passada sob as contas de sua vida faz com que reste uma soma idêntica à soma de seus crimes" (1958-1959, p. 281). "Ele [a sombra] o indica, 'Eu fui surpreendido na flor de meus pecados'. Um golpe vem derrubá-lo, partindo de um ponto de onde ele não esperava, verdadeira intrusão do real, verdadeira ruptura do fio do destino" (Ibid., p. 363).

Segundo Lacan, é ante o medo desse destino entre duas mortes que Hamlet se detém com seu to be or not to be2.

Nessa obra, a concepção de morte inscreve-se dentro daquela que Philippe Ariès, em seu livro O homem perante a morte, denomina "a morte domada", ideal sob o qual a morte possui uma característica essencial: "a morte comum, normal, não se apoderava, traiçoeira, da pessoa, mesmo quando acidental como consequência de uma ferida, mesmo quando efeito de grande emoção..." (ARIÈS, 1987). De acordo com o historiador:

Para que a morte fosse assim anunciada, era preciso que não fosse súbita, repentina. Quando não avisava, deixava de aparecer como uma necessidade temível, e sim esperada e aceita, de boa ou má vontade. Então, desgarrava a ordem do mundo em que cada qual acreditava, instrumento absurdo de um azar disfarçado às vezes de cólera de Deus. Por isso, a mors repentina era considerada infame e vergonhosa (Ibid).

A terceira irregularidade, no que se refere aos ritos, a situamos a partir do assassinato de Polônio. Hamlet, irreverente, arrasta por um pé o cadáver e o esconde embaixo da escada. Finalmente, uma vez encontrado o corpo, o entererro carece de honras sob o pretesto de encobrir o acontecido. Essa irregularidade valerá a Cláudio a ira de Laertes – filho do conselheiro – e ocasionará a loucura de Ofélia.

Por último, a quarta irregularidade refere-se à cerimônia cristã do sepultamento de Ofélia, apesar de ela ter cometido suicídio; irregularidade explicada somente pela condição nobre da jovem.

Mais fiel aos mortos do que aos vivos – novamente igual a Antígona – Hamlet resiste a uma tipificação. Oscila entre uma posição inibida – bastante oposta à da heroína de Sófocles – e uma capacidade de ação que beira a imprudência. Contudo, se algo é inegável, é que frustra as expectativas daqueles que o rodeiam.

Não se mostra um filho dócil com sua mãe e padrasto, tampouco corresponde ao amor de Ofélia, frustrando, assim, as esperanças tanto da jovem quanto de Polônio. Permanece reservado ante Guildenstern e Rosencrantz quando fazem indagações a pedido de Cláudio. Finalmente, tampouco realiza a vingança encomendada por seu pai até a última cena, quando o faz de modo particularmente caótico.

Sua resistência está presente em toda a obra e reside em seu desprezo pelos bens dos mortais – incluindo o trono e a própria vida – e, como consequência, sua capacidade de assomar-se à morte, de modo tal que só pode ser considerado "louco" por aqueles que o escutam.

 

A loucura do príncipe

A maioria dos críticos concorda ao caracterizar a loucura de Hamlet como fingida. Mas que fins recobre? É um índice da liberdade do Príncipe tal qual seu desprezo pelos bens? É uma estratégia política para escapar de suas responsabilidades ou para dizer aquilo que sob outra enunciação seria impossível?

A "loucura bufônica" – conforme Antoni Vicens (s.d.) – de Hamlet é utilizada como ferramenta para recusar as funções que derivam de sua linhagem. Especialmente, quando sob sua máscara, o Príncipe pronuncia as reflexões mais aterradoras sobre o destino dos corpos uma vez ocorrida a inexorável morte.

Com Polônio, as manifestações da loucura de Hamlet consistem em subterfúgios sob os quais se escondem profundas ofensas, ou melhor, consistem em uma série de agudezas verbais que obrigam, inclusive o próprio conselheiro, a reconhecer que não carecem de lógica.

Durante o Segundo Ato, por exemlo, na cena VII, Polônio, ao encontrá-lo perturbado, lhe diz:

P: (...) Quer vir tomar um ar, meu senhor?
H: Que ar? O do túmulo?
P (aparte): Que agudeza e que verdade na réplica. Às vezes, as palavras dos
loucos têm mais conceito que as dos sãos (SHAKESPEARE, 1604).

Polônio não parece tão errado ao indicar que raras vezes o homum comum se aproxima desses raciocínios, tão ocupado que se encontra em velar o destino inevitável que o espera. Em relação a isso, Lacan destaca em sua aula de 22 de abril de 1959 do Seminário 6, O desejo e sua interpretação:

Mas o que é preciso não esquecer é a maneira como ele faz o louco, esta maneira que dá a seu discurso este aspecto quase maníaco, esta maneira de apanhar no voo das ideias, as ocasiões de equívoco, as ocasiões de fazer brilhar um instante diante de seus adversários, esta espécie de clareira de sentidos (LACAN, 1958-1959, p. 352).

Todavia, o personagem do Rei é o que fica mais perturbado com o comportamento do Príncipe. Sua loucura parece-lhe enigmática e seus contrassensos lançam-no na incerteza mais extrema. Detenhamos-nos no diálogo da Cena VI, Quarto Ato, quando Cláudio interroga Hamlet sobre o lugar onde está o cadáver de Polônio.

C: Hamlet, onde está Polônio?
H: Num banquete.
C: Num banquete?! Onde?
H: Onde não come, mas é devorado. Uma multidão de vermes políticos disputa
seu cadáver (SHAKESPEARE, 1604/1979).

Insiste na temática dos vermes e da decomposição da carne, tópico privilegiado por Hamlet quando se dirige a seu padrasto, como se quisesse lembrá-lo, por meio de seu humor duvidoso, de que o destino real também é a morte. A conversa continua e o diálogo fica ainda mais escabroso, porque Hamlet discorre sobre como o corpo de um rei, uma vez que tenha morrido, poderia ser devorado por um verme com o qual se pescasse um peixe que um mendigo comesse; logo, seria um peixe que se alimentou do verme que comeu o rei. Então, poderia um rei passar pelas tripas de um mendigo. Nesse ponto, Cláudio já não pode manter a conversa com seu sobrinho e exclama: "Que significam tuas palavras?" (SHAKESPEARE, 1604/1979).

Trata-se de um diálogo que se torna impossível. A insolência de Hamlet chega a um extremo tal que, até esse Rei, vagaroso na ação de desfazer-se desse incômodo herdeiro, urde o plano de afastá-lo para sempre do reino.

 

O X do desejo de Hamlet

Em relação a esses questionamentos que percorremos em torno da loucura bufônica, encontramos uma pergunta ainda mais impreterível: se não se trata nem da jovem Ofélia nem do trono, que fins persegue Hamlet?

Aquilo que Hamlet almeja não é fácil de desvelar. Nosso herói que, nos dizeres de Goethe, tem a ação paralisada pelo pensamento, é capaz de perceber a complexidade de todos os elementos, mas está suspenso em sua ação. Como diria o mestre vienense: "há saberes e saberes" (FREUD, 1916/1992, p. 257). E o perspicaz Príncipe nada sabe daquilo que mais o concerne, está desorientado em relação a seu próprio desejo.

Lacan afirma, no Seminário 6, que a tradição psicanalítica indica que Hamlet não pôde atacar aquele designado por sua vingança por causa de um desejo edípico reprimido. É na medida em que se trata de aplicar justiça ao mesmo crime que ele havia cometido, que não pode atacar aquele que possui sua mãe sem atacar a si mesmo, sem reavivar nele um desejo por ela marcado pela culpa.

Será tardiamente na obra que Hamlet conseguirá orientar-se; somente na cena do cemitério, durante o enterro de Ofélia. Ali, a visão da dor e o ódio de Laertes, jovem irmão, tornam-se insuportáveis para o Príncipe. Ele não consegue tolerar semelhante manifestação de amor em relação a uma moça com a qual foi extremamente cruel sem se mostrar também consumido pelo desassossego. A identificação a Laertes o orienta. Nas palavras de Lacan: "É na medida em que alguma coisa, $, está aí numa certa relação com a, que se faz de repente esta identificação que lhe faz reencontrar pela primeira vez seu desejo em sua totalidade" (LACAN, 1958-1959, p. 285).

Contudo, o que Hamlet, sim, parece saber é que para encontrar esse X que constitui seu desejo, deverá transgredir o limite do primum vivere, arriscar sua própria vida regida pelos bens e pelo conforto. A esse respeito, voltemos ao Seminário 6:

(...) o problema do desejo, na medida em que o homem não é simplesmente possuído, investido, mas que, o desejo, ele tem de situá-lo, de encontrá-lo. Tem que encontrá-lo a seu mais pesado custo e à custa de sua mais pesada pena, a ponto de não poder encontrá-lo senão no limite, ou seja, em uma ação que não pode para ele se acabar, se realizar, senão à condição de ser mortal (Ibid., p. 274).

 

Conclusões

Para concluir esse percurso, observamos como Hamlet recusa as expectativas dos outros, em vez de consentir com suas demandas, e realiza essa operação graças à estratégia da loucura fingida. Loucura, ironia, humor negro, todos e cada um desses recursos revelam-se vias para abordar o real enquanto insuportável. Hamlet não representa outra coisa que o drama do encontro com a morte – ser ou não ser – que atravessa toda a obra. Essas reflexões, referidas à fragilidade da vida e o destino dos corpos, uma vez chegada a morte, foram atribuídas por numerosos autores ao caráter melancólico do Príncipe. Entretanto, indicam a ausência de desejo própria à melancolia ou a falta de esperança de que um futuro tudo redima? O impasse em seu desejo não é outra coisa que o efeito funesto que teve a revelação feita pela sombra, traída por sua própria esposa, mulher amada e, por isso mesmo, tão monstruosa.

Hamlet, cuja verdade carece de esperança, tem consciência de que nem sequer a paz dos sepulcros está garantida e que o valor é, na realidade, somente temor ao desconhecido. Uma vez orientado, graças à figura de Laertes, mostra-se decidido a perguntar pelo sentido da vida, a terrena, a única que se sabe certa, e culmina seu ato, em conformidade a uma posição ética que antecipa a cena prévia ao duelo: "Se o homem, ao terminar sua vida, sempre ignora o que lhe pode ocorrer depois, de que importa que a perca cedo ou tarde? Saiba morrer" (SHAKESPEARE, 1604/1972).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Vanina Muraro
Av. Pueyrredón 1108 6 K (1118), CABA, Buenos Aires, Argentina
E-mail: vaninamuraro@fibertel.com.ar

Recebido: 13/02/2014
Aprovado: 15/05/2014

 

 

Tradução: Maria Cláudia Formigone
Revisão: Conrado Ramos e Ida Freitas
* Graduada em Psicologia pela UBA – Universidade de Buenos Aires. Coordenadora do Foro Analítico del Río de La Plata. Membro da Escola Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano. Codiretora da Revista Aun, Publicação de Psicanálise do FARP. Docente e pesquisadora da Faculdade de Psicologia, Universidade de Buenos Aires.
1 Desenvolvemos mais amplamente essa temática, juntamente com Martín Alomo, em um livro de pronta publicação intitulado: Las tragedias del deseo. Antígona, Lear, Hamlet.
2 "O suicídio, isso não é tão simples. Nós não estamos somente sonhando com ele nisso que se passa no além, mas simplesmente isso, é que colocar o ponto final em algo não impede que o ser permaneça idêntico a tudo o que ele articulava pelo discurso de sua vida, e que aí não há 'to be or not to be', que o 'to be', qualquer que seja, permanece eterno" (LACAN, 1958-1959, p. 281).

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