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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.29 Rio de Janeiro nov. 2014

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS

 

Avatares do desejo no mundo capitalista: a noção lacaniana de "latusa" e sua relevância clínica1

 

Vicissitudes of the desire in the capitalist world: the lacanian notion of "letosa" and its clinical relevancy

 

 

Martín Alomo*

Universidade de Buenos Aires
Hospital Braulio Moyano da Cidade de Buenos Aires
Foro Analítico del Río de la Plata
Escola Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano
Revista AUN Publicação de Psicanálise do FARP
Revista Nadie duerma, Publicação digital de Psicanálise do FARP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Propomos estabelecer o percurso teórico que nos permita reconstruir a noção de "latusa", formulada por Jacques Lacan no seminário O avesso da psicanálise. Para isso, começaremos situando as condições do sujeito que se desprende do cogito cartesiano e o modo particular que se imbrica com o surgimento do capitalismo tecnológico. Para tanto, recorreremos a elaborações de Martin Heidegger. Com base em algumas passagens de O capital, de Karl Marx, situaremos o conceito de mais-valia, a partir do qual Lacan construirá sua noção de mais-de-gozar. Trata-se de um percurso necessário para chegar às latusas. Por último, analisaremos a posição da latusa em relação à posição do analista. Esse percurso nos permitirá situar a relevância clínica do problema, no que se refere à situação do analista no mundo capitalista.

Palavras-chave: Civilização, Capitalismo, Jacques Lacan, Mais-de-gozar, Latusa.


ABSTRACT

We propose to establish the theoretical trajectory which will allow us to reconstruct the notion of "letosa," formulated by Jacques Lacan in the seminar L'envers de la psychanalyse. For this, we begin by setting up the conditions of the subject which are detached from the Cartesian cogito, and the particular way in which it is interwoven with the emergence of technological capitalism. To pursue that objective, we resort to elaborations by Martin Heidegger. Also based on some passages of Das Kapital, by Karl Marx, we situate the concept of surplus value, in which Lacan founded his notion of plus de jouir. This is a necessary path in order to get to the letosas. Finally, we analyze the position of the letosa in relation to that of the analyst. This path will allow us to pose the clinical relevancy of the problem, concerning the analyst's situation in the capitalist world.

Keywords: Civilization, Capitalism, Jacques Lacan, Plus de jouir, Letosa.


 

 

I. O sujeito do cogito

À guisa de introdução, começarei com um desenvolvimento que visa situar as particularidades do surgimento do cogito cartesiano. Para isso, interessa-me situar a noção de verdade que enquadra dito surgimento, contrapondo-a a outra distinta. Para ingressar nesse desenvolvimento, utilizaremos como porta de entrada a diferenciação entre a pólis helênica e a civitas romana.

Civilização, isto é, o que resulta da civilidade romana, da civitas, articula-se com o discurso da modernidade de modo particular. Podemos constatar esse modo de articulação entre civitas e modernidade na forma particular de conceitualização da verdade.2 Não se trata da verdade como alètheia, ao modo da pólis grega, mas da verdade como adaequatio inter res et intellectus, ou seja, verdade como adequação entre o pensamento e a coisa.3

A concepção grega de verdade, que Heidegger situa em Heráclito e Parmênides, corresponde à alètheia, ao ocultamento-desocultamento do ser. Movimento alternante que propõe o surgimento do ser no des-ocultamento, na presença, mesmo que de modo inapreensível, pelo menos de forma direta ao pensamento, já que sempre, em algum momento, a a usência produzida pelo esquecimento, pela imersão novamente do ser nas águas do rio do esquecimento, retorna sempre evanescentes os efeitos de verdade.4

Por sua vez, na civitas romana, o sujeito agente da civilização funda-se na ilusão, mesmo que vivida como a mais clara realidade, da possibilidade de aceder a seus objetos, às coisas, a partir do pensamento. Nesse contexto, precisamente, tem lugar o movimento produzido por Descartes. De tanto pensar, de esgotar inclusive à deriva da dúvida, chega a um primeiro ponto de certeza: posso duvidar de muitas coisas, dos meus sentidos, das minhas ideias, contudo, não posso duvidar do fato de que estou duvidando. Para Descartes, esse ponto de chegada marca um deter da hesitação e a fundação de um novo sujeito. Esse sujeito moderno agora tem a certeza de ser, a qual lhe vem do fato de que pensa e que, além disso, pensa o pensado, ou seja, não tem dúvidas sobre o objeto em que pensou: esse sujeito, articulado à noção de verdade romana, que postula a adequação entre o pensamento e a coisa, é sujeito dos objetos de conhecimento que manipula. Finalmente, constituiu-se um sujeito transcendente.

Heidegger assinala que isso não se deu de um dia para outro. O movimento cartesiano vinha sendo preparado durante centenas de anos. Descartes é, simplesmente, quem dá o passo decisivo.

O primeiro ponto que me interessa deixar assinalado então é o seguinte: o sujeito da civilização, isto é, o sujeito cartesiano, comunica-se com seus objetos em uma relação contínua, constituindo-se no agente do vínculo. A instauração firme de um sujeito transcendente.

Esse sujeito cartesiano, que Lacan vinculará com o sujeito da psicanálise em mais de uma oportunidade, constitui-se no recorte de seu objeto ao qual transcende, ou seja, um sujeito que fica por fora de seus enunciados. Um sujeito sem atributos, um sujeito que simplesmente é, sem mais. Esse sujeito é o da ciência moderna. Um sujeito deduzido do fato de que duvida, de que pensa. Ao ser dedução, também é, poderíamos dizer, um sujeito-quociente e, nesse sentido, um sujeito dividido, mesmo que isso seja adiantar-nos muito, já que nem Descartes nem a ciência propõem um sujeito dividido. E, finalmente, segundo assinala Lacan (1965/1998) em A ciência e a verdade, esse sujeito cartesiano que é o sujeito da ciência, é aquele de que se ocupa a psicanálise. Para compreender essa afirmação, devemos avançar no problema que nos propusemos elucidar.5

Uma primeira aproximação: o Cogito, ergo sum é analisado por Lacan na duplicidade do eu duplicado que interessa: há um eu penso e há também um eu sou. Ambos, de modo algum, coincidem. Podemos seguir os desdobramentos lacanianos sobre o assunto nos seminários Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, A lógica do fantasma e O ato analítico.

Sabemos que o pensamento, em termos cartesianos, é um pensamento tão consciente como o sujeito que os pensa e que, evidentemente, isso difere dos unbevussten Gedanken, os pensamentos freudianos, inconscientes, que pensam sem se saber pensados, sem consentimento do eu. Todavia, ainda assim, há no sujeito cartesiano, sujeito-quociente, uma divisão que, com Heidegger, situaria em termos do esquecimento do ser.

Por um lado, trata-se de um sujeito que esquece, no sentido mais radical do termo, um sujeito que ignora sua qualidade de ser pura dedução lógica dos elementos do pensamento. Por outro, ignora também sua qualidade de ser esse objeto ao qual fica confinado pelo próprio pensar. O sujeito da ciência funda-se nessas duas ignorâncias radicais, poderia-se dizer: uma, sua qualidade de deduzido; e outra, sua qualidade de ser o objeto no qual se encontra lançado. Essa dupla ignorância, esquecimento do ser radical, funda a consistência do discurso científico articulado ao discurso da civilização moderna.

"O homem do tecnocapitalismo esqueceu o ser" (HEIDEGGER, 1961/2000, p. 121). Escreve Heidegger em Nietzsche – nem bem Descartes introduziu a certeza do sujeito, o capitalismo assumiu que tal sujeito era o próprio ser e todo o ente deveria submeter-se a ele.

Quanto ao modo de laço capitalista, Heidegger considera que o capitalismo, enquanto sistema globalizador, é um sistema vinculante. Diferente de um laço discursivo, que vincula os seres falantes, o capitalismo como sistema vincula as mercadorias a seus consumidores. Nesse sistema, o Dasein, em sua qualidade de aberto ao mundo, cai no mundo do inautêntico, já que as produções do capitalismo são produções de ninguém, produções em série que propiciam a homogenização, como se qualquer objeto pudesse adequar-se à realidade de qualquer Dasein (Ibid., p. 121 e seg.).

E, em relação a Descartes, continua Heidegger: "sua tarefa foi a de fundar o fundamento metafísico para a liberação do homem à nova liberdade enquanto legislação segura de si mesma" (Ibid., p. 123).

Quer dizer, situar seu fundamento no cogito, e já não em Deus.

 

II. A lei férrea

Interessa-me revisar aqui a noção de "lei férrea" mencionada por Lacan em pelo menos dois lugares de sua obra escrita. Interessei-me por essa questão, pois vários colegas referem-se à lei férrea do discurso capitalista como uma determinação inevitável à qual nos submete a época.

Primeiramente, encontrei a seguinte referência em A agressividade em psicanálise:

Antes dele [Darwin], no entanto, Hegel havia fornecido a teoria perene da função própria da agressividade na ontologia humana, parecendo profetizar a lei férrea da nossa época. Foi do conflito entre o Senhor e o Escravo que ele deduziu todo o progresso subjetivo e objetivo de nossa história, fazendo surgir dessas crises as sínteses que representam as formas mais elevadas do status da pessoa no Ocidente, do estoico ao cristão, e até ao futuro cidadão do Estado Universal (LACAN, 1948/1998, p. 123).

Aqui temos a lei férrea, remetida por Lacan, à dialética do Senhor e do Escravo. Trata-se da lei férrea, então, enquanto lei de funcionamento de uma lógica específica, a do Senhor e a do Escravo, nesse caso, que regula os laços entre os indivíduos.

Porém, em outro de seus escritos, mais precisamente em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958), encontramos outro apontamento que especifica mais a questão em relação ao tema que nos convoca. Na parte IV: "Como agir com seu ser", Lacan envolve-se em uma discussão sobre a identificação ao eu do analista no final de análise, a qual pode ser lida em elocubrações de alguns autores ingleses. Daí deriva a questão do problema da cessão do objeto na análise:

É que esses objetos, parciais ou não, mas seguramente significantes – o seio, o excremento, o falo –, o sujeito decerto os ganha ou os perde, é destruído por eles ou os preserva, mas, acima de tudo, ele é esses objetos, conforme o lugar em que eles funcionem em sua fantasia fundamental, e esse modo de identificação só faz mostrar a patologia da propensão a que é impelido o sujeito num mundo em que suas necessidades são reduzidas a valores de troca, só encontrando essa mesma propensão sua possibilidade radical pela mortificação que o significante impõe à sua vida numerando-a.

Ao que parece, o psicanalista, simplesmente para ajudar o sujeito, deveria estar a salvo dessa patologia, que, como vemos, não em nada menos do que em uma lei férrea (LACAN, 1958/1998, p. 620).

Aqui a questão fica um pouco mais clara. A lei férrea, então considerada nos termos de Lacan, é a lei do significante. Nela, o sujeito está condenado a contar como um. Não só como um efeito, enquanto efeito de sujeito, mas também como um objeto, já que, enquanto tal, como objeto, entra em jogo no laço social, em que – cito – "suas necessidades estão reduzidas a valores de troca".

Até aqui vamos começando a colocar a questão. O sujeito está submetido à lei férrea do significante e conta como um no comércio social, no qual os objetos estão submetidos a uma transação regulada por valores de troca.

É notável como nós, enquanto analistas, também estamos tomados por essa lei férrea, não estamos fora dela. Ainda mais: em O avesso da psicanálise, Lacan situa precisamente o lugar da latusa, esse lugar impossível, como aquele que seria esperado que o analista ocupasse. Mas, antes de desenvolver esse ponto, proponho-lhes um passeio por Marx.

 

III. Marx, o fetichismo da mercadoria

O tesouro capturado fora da Europa, diretamente por pilhagem, escravização,
assassinato seguido de roubo, refluiu para a mãe pátria e transformou-se aí em
capital (MARX, 1867/1992, p. 891)

 

Essa passagem está no capítulo XXIV de O capital. Não desenvolverei o capítulo. Simplesmente assinalo um trecho, porque me parece bastante explicativo do que segue em seu desenvolvimento: aquilo de que são espoliados alguns, é capitalizado por outros. Alguns parágrafos adiante, com a seguinte sentença, conclui: "Se o dinheiro, segundo Augier, 'veio ao mundo com manchas naturais de sangue numa das faces', o capital, da cabeça aos pés, também [vem] a escorrer sangue e porcaria por todos os poros" (MARX, 1867/1992, p. 950).

Porém, antes ainda, logo após iniciado O capital, lemos um subtítulo surpreendente: "O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo". Esse recorte, a partir da elucidação da constituição da mercadoria como tal, toca questões metafísicas, antropológicas, gnosiológicas e teológicas. Não é por acaso que foi esse o subtítulo em que Lacan reparou para delinear seu objeto a enquanto mais-de-gozar (Ibid., p. 87).

Talvez, essa condição surpreendente do subtítulo deva-se ao objeto de que trata, ou seja, a mercadoria. Marx diz que a mercadoria representa algo trivial, cuja compreensão é imediata. "Sua análise demonstra que é um objeto endemoniado, cheio de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas" (Ibid., p. 87). Objeto endemoniado, sutilezas metafísicas, argúcias teológicas! E prossegue Marx, desta vez mais claramente hegeliano: "É de claridade meridiana que o homem, mediante sua atividade, altera as formas naturais de modo a que lhe sejam úteis" (Ibid., loc. cit.). Trata-se do escravo hegeliano; é ele quem trabalha a matéria, quem altera as formas da natureza, dado que é ele, como assinala Hegel, que faz a história.6 Segundo Marx, isso se realiza tranformando a natureza em mercadorias. Poderia se dizer que esse homem laborioso do sistema capitalista transforma a simplicidade da natureza em algo endemoniado, metafísico e teológico. Segue Marx:

Modifica-se a forma da madeira, por exemplo, quando se faz dela uma mesa. Não obstante, a mesa continua sendo madeira, uma coisa comum, sensível. Porém, nem bem entra em cena como mercadoria, transmuta-se em sensorialmente supra-sensível (Ibid., loc. cit.).

Ainda usando o exemplo da mesa, vemos que a madeira é transformada em mesa, a mesa continua sendo madeira, mas, ao ser levada ao mercado de bens, passa a ser mercadoria e já escapa ao sensível, torna-se um ente metafísico. Esse mercado em que habitam as mercadorias é um mundo vertiginoso, regido pela oferta e procura e onde outros oferecem suas mercadorias. Esses objetos "objetalizam" aqueles que creem ser seus possuidores. Esses, por sua vez, oferecem mercadorias cujo valor de uso não requerem, não necessitam. Aquele que oferece uma mesa não necessita de uma mesa, não a necessita enquanto valor de uso e, por isso mesmo, a oferece como valor de troca. Escreve Marx: "Todas as mercadorias são não-valores-de-uso para seus possuidores, valores de uso para seus não-possuidores. Por isso, têm que trocar de dono" (MARX, 1867/1992, pp. 104-105).

É assim que se produz o intercâmbio das mercadorias que objetalizam seus possuidores. Sob essa perspectiva, ir a um shopping não é ir senão a um lugar onde as mercadorias, dali das vitrines, gritam-nos "goza, goza de mim, compre-me". O shopping é um lugar em que as mercadorias estão em busca de novos possuidores-objeto. As mercadorias nos vociferam, nos seduzem, nos encantam, são objetos endemoniados, metafísicos, teológicos.

Marx pergunta-se: de onde brota, então, o caráter enigmático que distingue o produto do trabalho nem bem assume a forma de mercadoria? E responde: "obviamente, dessa própria forma". Fundamenta essa resposta no fato de que aquilo que dá valor à mercadoria é o tempo de trabalho que o homem dispensa para produzi-la. Mas, por sua vez, o valor fetichista da mercadoria está no fato de que sua própria forma vela o tempo de produção, mostrando somente seu caráter fascinante no mercado de consumo. Escreve Marx: "Os homens veem o caráter social de seu próprio trabalho como caracteres objetivos inerentes aos produtos do trabalho, como propriedades sociais naturais dessas coisas" (Ibid., loc. cit.).

Os homens veem seu trabalho coisificado. Desaparece assim o caráter social do trabalho, coisificando-se, de modo intenso, seu valor em um objeto privilegiado: o dinheiro. Esse objeto representa o valor da mais-valia, extraída quase cirurgicamente do fator "tempo de produção" das mercadorias. Enquanto isso, "as mercadorias", escreve Marx, "fazem-nos ver o mundo como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores". E, mais adiante, prossegue:

(...) o dinheiro é essa mercadoria à qual todas as outras mercadorias se remetem, o dinheiro é o equivalente geral das mercadorias. Mas é precisamente essa forma acabada do mundo das mercadorias, o dinheiro, que vela de fato, ao invés de revelar, o caráter social do trabalho (MARX, 1867/1992, pp. 104-105).

"Em um mundo de objetos" – conclui Marx – "os homens tornam-se coisas e intercambiam coisas. Em um mundo configurado desse modo, é o objeto que determina o sujeito."

 

IV. O mundo das latusas

Na aula XI de O avesso da psicanálise, Lacan retoma a questão do cogito nos termos dos Seminários 14 e 15, isto é, em relação ao objeto a. Mas, essa nova volta tem uma particularidade: encontra o objeto a, denominado agora mais-de-gozar, tomado no funcionamento dos discursos. E, para estabelecer uma continuidade com o comentado a propósito de Marx, citamos Lacan (1969-70/2002): "Com efeito, a partir desse discurso [o psicanalítico] não há senão um afeto, ou seja, o produto da tomada do ser falante num discurso, na medida em que esse discurso o determina como objeto" (p. 143).

E, nessa nova volta ao cogito cartesiano, nessa aula a que me refiro, "Os sulcos da aletosfera", Lacan deixa assinalado que o sujeito conta como um. Eu sou um, enquanto sou um que pensa. Inversamente a Heidegger, que escreve Cogito sum, com Lacan poderíamos escrever Sum cogito. Não um Penso sou, mas um Sou penso; justamente porque sou, penso, conto como um. "Eu penso logo: sou", escreve Lacan, brincando com os termos cartesianos para sublinhar que o "sou" elide o "conto como um" que pensa.

A esse pensamento, que procede por um método exaustivo, algorítmico, poderíamos dizer que há algo que lhe é inapreensível para seu cálculo, sempre resta um excesso: o objeto a.

Esse ser que excede, esse objeto a minúsculo, podemos situá-lo no produto da ciência moderna.

Com efeito, não deveríamos esquecer, de qualquer modo, que a característica de nossa ciência não é ter introduzido um melhor e mais amplo conhecimento do mundo, mas sim ter feito surgir no mundo coisas que de forma alguma existiam no plano de nossa percepção (LACAN, 1969-70/2002, p. 150).

Seguindo essa linha de raciocínio, vemos que o discurso da ciência, articulado ao discurso do capitalismo, multiplica os novos objetos que se propõem como oferta de gozo à disposição dos consumidores. Nos termos de Marx, poderíamos evocar o mundo das mercadorias clamando por um possuidor. Porém, agora, mediante ciência e tecnologia, trata-se de mercadorias sofisticadas. Vivemos em um mundo povoado de gadgets, de bugigangas, de artigos ultramodernos que, em pouco tempo de existência, revelam sua condição de descartáveis. Basta para isso que, em poucos meses, esteja à venda um modelo ainda mais ultramoderno, fazendo com que a categoria de obsoleto faça ouvir a voz das novas mercadorias clamando por um possuidor-objeto que as compre.

Se Marx considerava a mercadoria um objeto endemoniado, metafísico e teológico, Lacan vai dizer que as criações da ciência são feitas de insubstâncias. Trata-se da insubstância l'acosa, dirá ele. E, quase conversando com Marx, prossegue: "fato que altera completamente o sentido de nosso materialismo" (Ibid., p. 151). Estamos diante de uma mercadoria não só coisificada, mas também a-coisificada. A ciência, a partir do cálculo com o número, isto é, afastada da evidência de um materialismo sensorial, produz agora objetos insubstanciais, os quais não por isso são menos fascinantes e encantadores, pelo contrário.

Do mesmo modo que para Marx a forma da mercadoria velava o caráter social do trabalho, as criações da ciência velam, diz Lacan, nos fazem esquecer que nós mesmos estamos determinados no discurso como objetos a. Possuidores-objeto das mercadorias tecnológicas que nos feminizam, pelo afeto feminizante que importa ao devir o objeto a. Esse efeito/afeto feminizante do a minúsculo pode ser palpado unicamente, comenta Lacan, quando se põe em andamento o discurso analítico. Somente nele, o sujeito pode encontrar-se, inesperadamente, como objeto passivo do discurso que o porta.

Nesse campo em que a ciência "opercebe", ou seja, em que opera/percebe coisas produzidas por ela mesma, mas inacessíveis aos sentidos naturais, estamos infestados de ondas, por exemplo. Ondas elétricas, ondas invisíveis, ondas satelitais. Lacan refere-se a esse campo como sendo o da "aletosfera", em alusão à esfera da alètheia, o campo da verdade como o que torna presente o ser intermitentemente. Se alguns astronautas caminharam na lua – observa Lacan –, foi porque nunca saíram dos limites desta aletosfera. Lá, dentro desses limites, a voz humana, através dos microfones e alto-falantes, os mantinha aferrados à vida.

A fina análise de Lacan continua; uma análise da mercadoria científico-tecnológica que o leva a encontrar a voz humana no interior das novas invenções. Essa análise distribui o que opercebe, a ciência que opera nesse novo campo determinado por forças suprassensíveis, e o operado. Isto é, o que opera e o operado. Assim como Marx dizia que o obejto determina o sujeito, Lacan distingue entre o que opercebe na aletosfera e o que é operado pelo que opercebe. Esse sujeito passivizado, convertido em a minúsculo, não descobre em absoluto sua verdade, conclui.

A respeito do produto dessa operação científico-tecnológica, Lacan (1969-70/2002) diz:

Vamos chamar isso de latusas. O mundo está cada vez mais povoado de latusas. Como isso parece lhes causar graça, vou escrevê-lo com a ortografia. Notarão que poderia tê-lo chamado de latusias. Teria ficado melhor com a ousia, esse particípio com tudo o que tem de ambíguo. (...) E quanto aos pequenos objetos a que vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês, na medida em que agora é a ciência que o governa, pensem neles como latusas (p. 153).

Dentro dessas latusas, assinala, encontrarão vento. Elas estão cheias de vento: o vento da voz humana, afirma. A voz humana que lhes diz: gozem, gozem, comprem-me e gozem.

A latusa é o angustiante e, justamente porque há latusa, é que podemos dizer que a angústia não é sem objeto, comenta Lacan. Sobre o analista, diz que o impossível é justamente que ocupe esse lugar, o lugar de latusa. Cito: "É no plano do impossível, como sabem, que defino o que é real. Se é real que haja o analista, isto se dá justamente porque é impossível. Isto faz parte da posição da latusa" (Ibid., p. 154).

Interessa deter-me nesse ponto: o analista ocupando a posição impossível da latusa. A partir daqui, isolarei algumas linhas de pensamento que já estão presentes em tudo que foi exposto.

Em primeiro lugar, a latusa obtém sua denominação por uma imersão radical no rio do esquecimento. Se a verdade da pólis é alètheia, uma alternância entre ocultamento e des-ocultamento do ser, a latusa da civitas capitalista remete puramente ao ocultamento no Leteo. O Leteo, para os gregos, era o rio do esquecimento. Daí que as latusas sejam um nome do esquecimento do ser.

O ser ao qual nos referimos em psicanálise é o ser ao qual fica cominado o falante ao habitar um discurso, um ser de objeto. Esse objeto que se é fica soterrado no esquecimento, na ignorância. Sua consistência pode ser palpada unicamente no transcurso de uma análise, comenta Lacan, uma vez colocado em andamento o discurso analítico. Mas, também, o ser em psicanálise remete-nos à falta-a-ser e, nesse sentido, a latusa é um artefato dado nas mãos do sujeito para que ele não se encontre com a castração. Por essa via, temos a latusa a serviço do não querer saber sobre a castração. No que se refere aos distintos modos do não querer saber, cada uso de latusa será particular de cada sujeito.

Essas latusas "esquecidas", ou melhor, "esqueser", de um ser feminino que remete ao objeto, a ousia, seriam, melhor, latousias enquanto esquecimento da essência – feminina – que foi ou algo assim, se tentamos traduzir mais ou menos o aoristo grego.

Por outro lado, as latusas são os gadgets, assim o diz Lacan. "O mundo está povoado de gadgets, entenda-os como latusas." Ele também diz que o analista deveria poder ocupar o lugar impossível de latusa. Com isso, está dizendo que as latusas não são somente gadgets. Ou, quiçá, que as latusas-gadgets assinalam um lugar disponível que, além dos gadgets, também poderia ser ocupado por outra coisa, eventualmente por um analista bem situado. Entendamos a proposta de Lacan não como um analista advindo mais uma latusa, e sim ocupando o lugar disponível que fica assinalado pela existência das latusas no mundo.

A particularidade do analista situadao como objeto a no dispositivo serve-se desse lugar ao qual nos referíamos, assinalado pela existência das latusas, não para aprofundar a via do esquecimento do ser, mas para buscar a partir daí, como objeto tomado no campo transferencial do analisante, a coordenação com o sujeito desde dentro do dispositivo. Desse modo, o objeto-analista na transferência, com seus dois aspectos – semblante que propicia o trabalho de desciframento e presença real que angustia e detém as associações – pode intervir sobre a materialidade do insconsciente, em suas síncopes e, no momento em que cessam as associações, propiciar uma intervenção sobre a pulsão. Essa intervenção sobre a pulsão, situada na temporalidade pulsátil do inconsciente, torna manifesta a diferença radical entre a função da latusa e a do analista. A primeira apoia-se na satisfação da pulsão pela via do consumo, produzindo um curto-circuito na articulação de saber, que fica des-continuada pela produção de um mais-de-gozar, cuja verdade última encontra-se secretamente comandada por um significante mestre que outorga para si a verdade do gozo. A posição do analista, por sua vez, é bem diferente. Essa apoia-se nas escanções da temporalidade do inconsciente para situar em seus momentos de fechamento as manifestações da pulsão que, agora, entram em jogo na transferência com o analista. Esse, longe de pressuporse em seu discurso como possuidor da verdade sobre o gozo, trabalha com a base de um saber de reserva, que lhe confere sua posição na transferência. A latusa apaga o sujeito sob a figura do consumidor, constituindo uma religião do mais-de-gozar e erigindo os objetos que ali advêm como sendo os bezerros de ouro de nossa época. O analista, ao contrário, serve-se da posição de objeto a como causa de desejo para escutar o "mais... quero mais..." que o mais-de-gozar torna presente, mas não para satisfazer a pulsão com um objeto adequado à demanda de consumo, e sim para fazer lugar, no sujeito, à emergência – leia-se produção – dos significantes mestres que comandam e comandaram sua existência.

Creio que esse ponto é de grande interesse clínico para pensar as novas particularidades da subjetividade da época em que estamos na nossa clínica.

 

Comentários finais

Se o lugar de latusa pode ser ocupado também por algo que não é um gadget, ou seja, por algo que não é um artefato tecnológico como por exemplo, um analista, isso nos permite abrir o jogo a um campo mais amplo, em que as latusas que pululam no mercado não são somente artigos tecnológicos.

Acredito que essa linha de pensamento leva-nos a ampliar o horizonte no que diz respeito àquilo que costumamos chamar de patologias do consumo, lugar-comum ao qual acabamos referindo-nos cada vez que tentamos dizer algo sobre as patologias de nossa época.

Se é certo que a anorexia, apenas para dar um exemplo, é considerada uma patologia do consumo, não é menos certo que o objeto discursivo, inclusive o objeto publicitário "anorexia", é uma latusa à mão de qualquer sujeito que esteja em busca de um sentido que lhe permita exercer seu não querer saber sobre a castração, dotando-se um ser, por exemplo, um ser anoréxico. Com essa consideração, refiro-me à divulgação feita pelos meios de comunicação e, sobretudo, à informação disponível na internet acerca do que representa o ser anoréxico. Divulgações essas que, algumas vezes sob a forma de advertências e informação para a prevenção primária da saúde, apesar das boas intenções, acabam sendo campanhas publicitárias sobre o tema, e seus informes, instrutivos a respeito de como se tonar um bom anoréxico. Devemos somar a isso a quantidade de páginas na internet que explicitamente constituem uma apologia ao assunto, com fotos, instruções sobre como vomitar o alimento sem que os demais percebam etc. Não deixa de ser um mundo que se oferece como um modo disponível de gozar, tal qual ocorre também com as adições ou qualquer outro tipo de conduta humana que não consideramos patológica. O traço que destacamos aqui não é o patológico ou o são de uma prática, e sim o fato de que todas elas – saudáveis ou enfermiças – circulam nos meios de comunicação como oferta de gozo.

Cada modo de gozo de uma época vem envolto em uma realidade discursiva que é parte constituinte do objeto que se oferece. Há o objeto-anoréxico no mercado, poderíamos dizer, assim como há o objeto-drogadicto, em busca de sujeitos-possuidores de tais objetos. Esses possuidores-objetos, diríamos com Marx, são capazes de objetalizar-se em diversos graus, deixando-se levar, pelas consequências de seus modos particulares de gozo, até limites incalculáveis a priori. Parafraseando Lacan em Encore, que dizia ser impossível antecipar o resultado de uma batalha porque não se pode saber até que ponto o inimigo está disposto a gozar fazendo-se matar, da mesma maneira, não podemos calcular antecipadamente de que modo cada possuidor-objeto, isto é, cada sujeito anoréxico, bulímico ou drogadicto, por exemplo, estará disposto a gozar com seu ser adquirido por meio das ofertas que a civilização lhe oferece. Trata-se, ademais, de ofertas não inócuas, não são meros objetos. Se, como vimos, a mercadoria caracterizada por Marx tampouco constitui um objeto inócuo, mas com qualidades "suprassensíveis", os objetos contemporâneos que circulam no suporte tecnológico que a indústria provê aos mass media, são objetos que portam em si uma voz que ordena gozar, um imperativo de gozo.

 

Referências

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LÓPEZ, H. (2011). Lo fundamental de Heidegger en Lacan (2ª Edición. Corregida y aumentada). Buenos Aires: Letra Viva, 2011.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Martín Alomo
E-mail: martinalomo@hotmail.com

Recebido: 13/02/2014
Aprovado: 05/05/2014

 

 

Tradução: Maria Cláudia Formigone
Revisão: Conrado Ramos e Ida Freitas
* Psicanalista. Mestre em Psicanálise, Graduado e Professor de Psicologia na Universidade de Buenos Aires, onde atua como docente e pesquisador. Psicólogo do Hospital Braulio Moyano da Cidade de Buenos Aires. Membro do Foro Analítico del Río de la Plata e da Escola Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano. Codiretor da revista AUN, Publicação de Psicanálise do FARP, e Diretor da revista Nadie duerma, Publicação digital de Psicanálise do FARP. Entre outros livros, publicou La elección irónica. Estudios clínicos sobre la esquizofrenia, por Editorial Letra Viva.
1 Trabalho apresentado no Foro Analítico del Río de la Plata em 14 de novembro de 2012.
2 Cf. a respeito El Lógos o la razón desde Freud, em López (2011), especialmente a pp. 44-45.
3 Cf. Berger (1953/1981).
4 Cf. La idea de imperio, em Benoist (1993/2006).
5 Em seu livro Para una izquierda lacaniana, Jorge Alemán desenvolve amplamente esse ponto. (Gramma, Bs. As., 2009).
6 Cf. a seção "A" do capítulo IV do La fenomenología del espíritu, "La verdad de la certeza de sí mismo" (HEGEL, 1807/1981, p. 108 e seg.).

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