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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.29 Rio de Janeiro nov. 2014

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS

 

O psicanalista e a errância de seu desejo: um olhar sobre as vicissitudes de um ofício tão particular...

 

The analyst and the deviation of his desire: a look over the vicissitudes of such a particular profession

 

 

Leandro Alves Rodrigues dos Santos*

Fóruns do Campo Lacaniano-São Paulo
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil
Pontifícia Universidade Católica-São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata da delicada questão do desejo do analista, enfatizando algumas particularidades presentes no ato de psicanalisar, em especial sobre as possíveis razões do entusiasmo necessário à manutenção de tal prática em tempos atuais. Manter a psicanálise viva e acolher os interessados no tratamento pode exigir do analista profundas re-significações no campo do amor e trabalho. Propõe também ampliar a investigação nos efeitos e consequências de tal profissão na vida do psicanalista.

Palavras-chave: Psicanalista, Desejo, Profissão.


ABSTRACT

The article deals with the sensitive issue of the analyst's desire, emphasizing some peculiarities present in the act of psychoanalyze, in particular related to the possible reasons towards the enthusiasm necessary for the maintenance of such a practice in current times. To keep psychoanalysis alive and welcome those interested in treatment may require from the analyst deep re-significations in the fields of love and work. It also proposes to extend the investigation on the effects and consequences of such profession in the psychoanalyst's life.

Keywords: Psychoanalyst, Desire, Profession.


 

 

A atividade psicanalítica é árdua e exigente; não pode ser manejada
como um par de óculos que se põe para ler e se tira para sair a caminhar.
Via de regra, a psicanálise possui um médico inteiramente, ou
não o possui, em absoluto.

Sigmund Freud

 

Durante o percurso que venho sustentando no campo psicanalítico, já por quase duas décadas, há uma pergunta que sempre me instigou: afinal, qual a possível ou, melhor dizendo, as possíveis razões pelas quais um psicanalista pode insistir em continuar mantendo sua prática clínica, calcada numa complicada oferta em um mundo que parece contradizer a receptividade dessa invenção tão original e, sem exagero, estranha, especialmente quando comparada às outras modalidades de tratamento que imperam no mercado dos tratamentos dos chamados males anímicos? Mais ainda, interrogo-me: como fica nessa conjuntura a relação de cada psicanalista com o que se convencionou chamar de "desejo de analista"? – termo estabelecido ousadamente por Lacan e que condensa múltiplos aspectos, que vão desde motivações profundamente arcaicas e pessoais até aspectos sumamente éticos, no sentido mais nobre da palavra. Vale lembrar Lacan (1964/1998) quando, neste tópico, ressalta que:

[...] o desejo é o eixo, o pivô, o cabo, o martelo, graças ao qual se aplica o elemento-força, a inércia, que há por trás do que se formula primeiro, no discurso do paciente, como demanda, isto é, a transferência. O eixo, o ponto comum desse duplo machado, é o desejo do analista, que eu designo aqui como função essencial (p. 222).

Essa pergunta não reverbera gratuitamente, até mesmo porque algum tempo atrás defendi uma tese de doutoramento que abordava justamente as vicissitudes da clínica psicanalítica, desse oficio tão particular, já chamado por Freud (1937/1987) de "profissão impossível", expressão que encobria certo tipo de admoestação diante do espinhoso caminho pelo qual transita o psicanalista. É providencial retomá-la neste momento:

Detenhamo-nos aqui por um momento para garantir ao analista que ele conta com nossa sincera simpatia nas exigências muito rigorosas a que tem que atender no desempenho de suas atividades. Quase sempre parece como se a análise fosse a terceira daquelas profissões 'impossíveis' quanto às quais de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios. As outras duas; conhecidas há muito mais tempo, são a educação e o governo (p. 282).

Freud, aliás, nunca enviou sinais muito animadores, ou incentivos reconfortantes, ao contrário, pintava com cores fortes o que reservava àqueles que optavam por praticar a tal profissão impossível. Bastam alguns exemplos para ilustrar essa dureza característica do inventor da psicanálise.

Comecemos com o que ocorre na relação analítica, um fenômeno de base vital para um desenrolar do tratamento, no qual uma declaração de Freud (1912/1987, p. 143, [grifos nossos]) já alertava sobre um paradoxo:

Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente.

Ou ainda sobre a intensidade da dimensão fantasística que, além de atravessar radicalmente a dinâmica transferencial, favorece uma fixação do paciente em aspectos que pouco se afeitam à realidade:

É tarefa do analista tirar constantemente o paciente da ilusão que o ameaça e mostrar-lhe sempre que o que ele toma por uma vida nova e real é um reflexo do passado. E para que não caia num estado em que fique inacessível a qualquer prova, o analista toma o cuidado de que nem o amor nem a hostilidade atinjam um grau extremo. [...] Um manejo cuidadoso da transferência, de acordo com essa orientação, é, via de regra, extremamente compensador (Freud 1940[1938]/1987, p. 204, [grifos nossos]).

Mas mesmo que isso tudo seja necessário e esperado, o cenário que surge, ou o playground transferencial, como Freud (1914/1987) insinua, torna-se então um terreno minado, no qual o psicanalista deve ter coragem para aceitar a parte que lhe cabe nessa fantasia enredada pelo paciente, bem como habilidade e lucidez para sair dela de quando em quando e poder atuar estrategicamente no caso. Freud (1915[1914]/1987, p. 221, [grifos nossos]), nesse tópico específico, traça uma interessante analogia:

O psicanalista sabe que está trabalhando com forças altamente explosivas e que precisa avançar com tanta cautela e escrúpulo quanto um químico. Mas quando foram os químicos proibidos, devido ao perigo, de manejar substâncias explosivas, que são indispensáveis, por causa de seus efeitos?

Manejar a transferência, driblando os explosivos exageros do amor ou da hostilidade que surgem travestidos de resistências, não requer do analista apenas alguma dose de perspicácia, mas também um desdobrar-se quase permanente para dar conta dessa dimensão repleta de imprevisibilidades. E devemos dizer desdobrar porque o analista não detém a vantagem do paciente, que pode não só despejar todas as facetas de seus modos de transferência na relação com o analista, como também conta com ele para poder ter acesso a essa manifestação de seu inconsciente, que deve se tornar consciente pondo em marcha alguma esperada dose de elaboração. Já o analista não conta com ninguém naquele momento, nem concreta e fisicamente, tampouco com uma teoria asseguradora, como por vezes esperam os praticantes, especialmente os mais iniciantes no percurso clínico.

Mas Freud (1940[1938]/1987, p. 201, [grifos do autor]) não para por aí, pois tece outras analogias e algumas de suas sempre interessantes metáforas que colaboram para compreender um pouco mais desse cenário:

Com os neuróticos, então, fazemos nosso pacto: sinceridade completa de um lado e discrição absoluta do outro. Isso soa como se estivéssemos apenas visando ao posto de um padre confessor. Mas há uma grande diferença, porque o que desejamos ouvir de nosso paciente não é apenas o que ele sabe e esconde de outras pessoas; ele deve dizer-nos também o que não sabe. [...] Acontece um certo número de outras coisas, algumas das quais poderíamos ter previsto, mas também outras que estão destinadas a surpreender-nos. A mais notável é a seguinte: o paciente não fica satisfeito de encarar o analista, à luz da realidade, como um auxiliar e conselheiro que, além do mais, é remunerado pelo trabalho que executa e que se contentaria com um papel semelhante ao de guia numa difícil escalada de montanha.

Diria mais: o paciente não sabe e, em muitos casos, não quer saber, visto que, diferentemente de um padre confessor – que espera apenas arrependimento a partir de uma suposta completude da confissão –, o analista incide justamente nesses pontos da divisão, evidenciando em momentos específicos pontos que levam à dimensão do não-dito, na qual o arrependimento seria de pouca valia. Além do mais, convenhamos que isso acaba se configurando uma desagradável tarefa para o paciente: destinar um quantum de esforço para dizer o que sabe e provavelmente esconde e, principalmente, para dizer o que não sabe ou, como lembraria com propriedade Freud (1916[1915-16]/1987, p. 126, [grifos nossos]), dizer aquilo que "não sabe que sabe e, por esse motivo, pensa que não sabe".

Mais uma vez entra em cena considerável dose de esforço e habilidade necessária ao analista que, com base em seus cálculos particulares, precisa cuidadosamente cadenciar o processo, pois também está em jogo uma contabilidade do paciente. É porque leva em conta a cadência do paciente que Freud (1913/1987, p. 186) adverte os psicanalistas da necessidade de se manterem alertas, especialmente nesse ponto que consideramos desgastante, pois é esperado que o neurótico alimente a suposição de que a análise implica sempre um ganho, deixando intactas coisas que, no fundo, muito provavelmente não quer alterar:

É tempo, agora, que empreendamos um levantamento do jogo de forças colocado em ação pelo tratamento. A força motivadora primária na terapia é o sofrimento do paciente e o desejo de ser curado que deste se origina. A intensidade desta força motivadora é diminuída por diversos fatores – que não são descobertos até que a análise se acha em andamento – sobretudo pelo que chamamos de 'lucro secundário da doença', mas ela deve ser mantida até o fim do tratamento. Cada melhora efetua uma sua diminuição. Sozinha, porém, esta força motivadora não é suficiente para livrar-se da doença. Duas coisas lhe faltam para isto: não sabe que caminhos seguir para chegar a esse fim e não possui a necessária cota de energia para se opor às resistências. O tratamento analítico ajuda a remediar ambas as deficiências.

A saída proposta por Freud (1913/1987, p. 171, [grifos nossos]), ao que parece, engloba outra dificuldade corriqueira, que é comunicar essa dificuldade ao paciente com meticulosa sinceridade:

Para falar claramente, a psicanálise é sempre questão de longos períodos de tempo, de meio ano ou de anos inteiros – de períodos maiores do que o paciente espera. É nosso dever, portanto, dizer-lhe isso antes que ele se decida finalmente sobre o tratamento. Considero mais honroso, e também mais conveniente, chamar sua atenção – sem tentar assustá-lo, mas bem no começo – para as dificuldades e sacrifícios que o tratamento analítico envolve, e, desta maneira, privá-lo de qualquer direito de dizer mais tarde que foi enganado para um tratamento de cuja extensão e implicações não se deu conta. Um paciente que se deixa dissuadir por essa informação mostrar-se-ia, de qualquer modo, inadequado posteriormente. É bom o progresso do entendimento entre pacientes, o número daqueles que enfrentam com êxito este primeiro teste aumenta.

Posto isso, passemos agora para outro aspecto, quiçá pouco comentado, acerca das autoexigências feitas pelo próprio analista durante o decorrer de sua prática, culpando-se em possíveis momentos de insucesso ou de distanciamento diante de certo ideal que é secretamente cultivado. Freud (1933/1987, p. 189, [grifos nossos]) abordou de um jeito bastante direto esse tópico:

Os iniciantes em análise, principalmente, ficam em dúvida, em caso de insucesso, se devem atribuí-lo a peculiaridades do caso ou à sua própria inabilidade de manejar o procedimento terapêutico. Mas, conforme já disse anteriormente, não creio que se possa conseguir muito com intentos nessa direção.

Ainda que lembre aos iniciantes que o interessado em se tratar deve entrar, desde o começo, com sua cota de implicação:

Quando, porém, tomamos em tratamento analítico um paciente neurótico, agimos diferentemente. Mostramos-lhe as dificuldades do método, sua longa duração, os esforços e os sacrifícios que exige; e, quanto a seu êxito, lhe dizemos não nos ser possível prometê-lo com certeza, que depende de sua própria conduta, de sua compreensão, de sua adaptabilidade e de sua perseverança (FREUD (1916[1915]/1987, p. 27, [grifos nossos]).

Essa seria a condição básica que, de imediato, possibilitaria a ampliação dessa possibilidade de recepção do inconsciente, algo que não o fizesse resistir à assunção de conteúdos inesperados que, justamente por não se coadunarem com o que se espera de um laço social, acaba por causar embaraços durante uma sessão. Essa é uma dificuldade que Freud (1917/1987, p. 171, [grifos nossos]) considera notável quando se trata de psicanálise:

Para começar, direi que não se trata de uma dificuldade intelectual, de algo que torne a psicanálise difícil de ser entendida pelo ouvinte ou pelo leitor, mas de uma dificuldade afetiva – alguma coisa que aliena os sentimentos daqueles que entram em contato com a psicanálise, de tal forma que os deixa menos inclinados a acreditar nela ou a interessar-se por ela. Conforme se poderá observar, os dois tipos de dificuldade, afinal, equivalem-se. Onde falta simpatia, a compreensão não virá facilmente.

Em outras palavras, trata-se de envolver-se profunda e radicalmente com uma indispensável análise pessoal e, por meio desta, defrontar-se sem preconceitos com o próprio inconsciente, sem um saber prévio e estabelecido como garantia. Isso implica saber, por exemplo, em certo momento, acerca das tais nem sempre nobres razões que alicerçam o desejo de curar, como lembra com propriedade Gérard Pommier (1998, p. 437):

Aquele que quer tornar-se analista geralmente o deseja muito tempo antes de ter começado uma cura pessoal. Neste caso, ele se engajará numa profissão ou numa formação sobre a qual pensa que o aproxima de um tal objetivo: por exemplo, começou estudos, de medicina ou psicologia. O saber universitário que ele assim acumulará será útil sem dúvida, por mais de um motivo. Entretanto, a sapiência acumulada apresenta também um inconveniente. É que o futuro analista ignorará deste modo o traço particular de seu passado distante sobre o qual sua ambição se apoia, porque seu curso de estudante, depois sua experiência profissional, mascararão facilmente esta origem. Como está escrito nos manuais, ele crerá engajar-se nesta profissão para fazer o Bem e ignorará em que Mal recalcado seu desejo se apoia.

Após esse rol de vicissitudes que surgem durante o exercício da atividade psicanalítica, gostaria de destacar algo mais que percebi na confecção de minha tese de doutoramento, peça acadêmica na qual compilei e lancei um olhar mais apurado a determinadas dificuldades presentes no psicanalisar e, grosso modo, posso dizer que em alguns aspectos se igualam às dificuldades de quaisquer outras profissões, sem grandes diferenciações, porém por outros ângulos se singularizam de maneira muito evidente. Dentre eles elegi e abordei alguns tópicos específicos, elencando algumas das dificuldades que enfrenta o psicanalista, como é possível depreender a partir de um trecho do resumo que apresenta a referida tese:

Este estudo aborda o trabalho do psicanalista, tomando como vértice de investigação as dificuldades que esses profissionais atravessam na sua prática clínica cotidiana. Nesse contexto, mudanças no perfil dos pacientes, crises de demanda frente ao incremento da concorrência com psicofármacos e psicoterapias diversas, significativas exigências da formação, estabelecimento de laços com outros analistas e vicissitudes na relação com a família podem ser considerados índices do mal-estar do psicanalista frente ao ato de psicanalisar nos dias atuais (SANTOS, 2011).

Porém, mesmo assim, os psicanalistas persistem, a psicanálise cresce, e desse modo posso avançar na tentativa de resposta à minha questão inicialmente proposta, hipotetizando que, na errância de um desejo – e não importa qual – provavelmente chegaremos à conclusão de que, a partir da metapsicologia proposta por Freud, há entre a pulsão e o objeto um caminho que merece ser investigado cuidadosamente; portanto, levar a cabo o intento de psicanalisar, aceitar demandas variadas e se autorizar a escutar os que o procuram, não necessariamente garantirá ao psicanalista que sua empreitada poderá ser um símbolo de tranquilidade, linearidade e, principalmente, de regularidade. De fato, a clínica cotidiana nos mostra com fartura de exemplos que muitos fatores entram em cena nesses momentos, interpelando as expectativas, intenções, planos, idealizações e, ouso dizer sem rodeios, a essência do desejo daquele que decidiu propor a regra fundamental.

Cabe-nos então problematizar de maneira mais refinada essa persistência, fazendo um uso metodológico da já famosa resposta de Freud à sua filha, quando perguntado sobre o que seria uma pessoa feliz, afinal havia estudado a alma humana por tanto tempo que por certo deveria saber. Sem se furtar, Freud aponta o amor e o trabalho como duas grandes saídas, ou seja, aquele que pode amar e trabalhar corroboraria dois índices importantes de felicidade e, de certa maneira, afincaria os efeitos positivos de um processo analítico levado a bom termo. Não restam muitas dúvidas de que um psicanalista, em sua análise pessoal, deve então ter passado por tudo isso, lidado profundamente com as questões do trabalho e do amor, detalhe que possivelmente potencializou profundas re-significações e afortunadamente reposicionamentos nesses dois campos tão cruciais da condição humana.

Dessa maneira, lidar com as dificuldades inerentes a essa decisão – aliás, com a exigência que essa atividade, prática, práxis, profissão ou oficio, não importa o nome que se dê – impele aos que nela ancoram seu desejo uma peculiaridade significativa, que é manter sempre aceso esse desejo de analista que subjaz sua oferta mais formal na cultura. Diante desse paradigma, podemos nos perguntar se é possível manter sempre o fogo alto, como alguns pratos requerem? Nessa analogia, vale lembrar que fogo demais queima e de menos inviabiliza a consecução da receita.

Parece-me então que o elemento-chave que alicerçaria essa resposta diz de uma medida, da dosagem desse entusiasmo que por sua vez é também algo muito particular, seguramente íntimo e quase certeiramente conectado a substratos muito profundos da personalidade, ou em nossos termos, a liames muito afeitos aos quebra-cabeças fantasmáticos de cada psicanalista, do analisando que é, do analisando que foi e que, de alguma forma, sempre será. Jean Clavreaul (2007), psicanalista francês contemporâneo de Lacan, pode nos ajudar ilustrando essa hipótese a partir de dois trechos preciosos, extraídos de seu testemunho ao Quartier Lacan, documentário e livro que recentemente vieram a público. No primeiro deles aborda justamente essa questão do desejo de analista:

Se é preciso um desejo específico para exercer esse ofício, é o que analista deve ser capaz de reinventar a teoria para cada novo paciente. Essa reinvenção incessante supõe uma curiosidade, um interesse infatigável pelo outro. O paradoxo desse interesse inesgotável é induzir em alguns o amor da transferência e, em outros, o ódio: com efeito, essa curiosidade incessante tende a desencorajar as explicações medíocres com as quais o sujeito pode querer se contentar (p. 26).

Amar e trabalhar implicam então estar decididamente no laço com o outro, desse interesse infatigável pelo outro, mas reservando a ele outro lugar, não objetificado ou reduzido a um mero personagem num cenário montado pela força estruturante da neurose, advinda de uma fantasia que mereceu ser questionada inapelavelmente durante as sessões nas quais pôde se escutar.

Afinal, custa-se muito, e em todos os sentidos da palavra, abrir mão do quantum de idealização que comporta esses dois projetos, inicialmente considerados como passaportes tranquilizadores de satisfação absoluta, de felicidade arrebatadora e, especialmente, de pseudocertezas que posteriormente se mostram muito frágeis. Psicanalisar e suportar as agruras dessa decisão, além de afetar visceralmente a relação do psicanalista com o amor e o trabalho, também o empurra a suportar as vicissitudes de cada um que o procura e, para inquietá-lo, justamente nesses dois campos específicos. Tal coragem nesse enfrentamento não se mostra pelas palavras, mas pelos atos. É o que podemos claramente extrair do segundo fragmento de Clavreaul (2007), quando fala de sua experiência como analisando de Lacan, quando o compara a outros analistas anteriores:

Em relação a eles, eu diria que Lacan não pensava em meu ser cheio de dificuldades ou cheio de esperança, ele só se interessava pelo que eu dizia. Logo, comecei com ele. Tive então de ser hospitalizado. E ele veio me ver no hospital, umas vinte vezes talvez, para que fizéssemos as sessões. Devo dizer que, na época, isso não me havia impressionado, porque eu não tinha modelo para me dizer como um analista devia fazer ou não. Evidentemente, não era comum, mas Lacan era assim. Há um monte de coisas dessa ordem que ele fez existir ao longo de sua vida e que são muito diferentes da imagem que em geral passam dele (p. 29).

Afirmar então que cada psicanalista deveria se haver com seu desejo de analista, com as errâncias, invariabilidades, imperfeições e arbitrariedades que nele estão presentes, pode soar como um desperdício, pela obviedade e redundância da colocação, mas também parece ser razoável que Freud já nos lembrava de que cada analista só vai até onde seus complexos permitem, só pode analisar até onde foi com sua análise pessoal e, ainda assim, a despeito disso tudo, pode angariar recursos que o permitam caminhar nessa trilha espinhosa.

Deve e pode contar também com a ajuda e o acolhimento dos pares, que poderia ser mais frequente e mais disponível, tanto dentro quanto fora das instituições psicanalíticas, pois noto que essa temática ultrapassa o terreno da análise e da supervisão. Talvez seja o lado mais nobre do que chamamos de transferência de trabalho, tema abordado insuficientemente em nossas produções e pesquisas. Alio a isso um aprofundamento que julgo salutar, que se embrenha nos possíveis efeitos que a prática da profissão impossível potencializa naqueles que a praticam. Tal aspiração se deve ao contato com um trecho específico de uma carta endereçada a Freud por Sandor Ferenczi, em 6 de maio de 1910, publicada na coletânea que engloba a correspondência desses dois amigos e desbravadores dessa nova forma de olhar e pensar o humano:

Caro Professor, estou me sentindo como um velho engenheiro ferroviário que conheço, que – aposentado após 50 anos de serviço – se põe diante da locomotiva parada à sua frente e exclama com ingênua admiração: 'Mas é mesmo uma bela invenção!' Há anos que a Psicanálise ocupa minhas horas da manhã à noite, sou um operário desse método, ela é minha ferramenta e meu pão de cada dia. E não passa dia em que eu não tenha de parar – com frequência, no meio do trabalho – para admirar o enorme progresso no conhecimento da humanidade, seja da humanidade doente, seja da humanidade saudável. 'Mas é mesmo uma bela invenção!' (p. 230).

 

Referências

CLAVREAUL, J. Entrevista com Jean Clavreaul: testemunho. [1993-1994]. Quartier Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007. Entrevista concedida a Alain Didier-Weill, Emil Weiss e Florence Gravas.         [ Links ]

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FREUD, S. (1916[1915]). Conferências introdutórias sobre Psicanálise – Parte I. Parapraxias (I/Introdução). Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 15, pp. 27-38).

FREUD, S. (1916[1915-16]). Conferências introdutórias sobre Psicanálise – Parte II. Sonhos (VI/Premissas e técnicas de interpretação). Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 15, pp. 125-138).

FREUD, S. (1917). Uma dificuldade no caminho da Psicanálise. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 17, pp. 171-184).         [ Links ]

FREUD, S. (1933[1932]). Conferência XXXIV – Explicações, aplicações e orientações. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 22, pp. 167-192).

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SANTOS, L. A. R. O trabalho do psicanalista: das dificuldades da prática aos riscos do narcisismo profissional. São Paulo, 2011. 250p. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2011.

 

 

Endereço para correspondência
Leandro Alves Rodrigues dos Santos
E-mail: leandroarsantos@uol.com.br

Recebido: 15/02/2014
Aprovado: 16/06/2014

 

 

* Psicanalista, membro do FCL-SP e da EPFCL-Brasil, Doutor em Psicologia Clínica (USP-SP) e atualmente pós-doutorando em Psicologia Social (PUC-SP).

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