SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número29O desejo do analista e o autismoA letra do desejo: um relato de sonho índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.29 Rio de Janeiro nov. 2014

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Se soubéssemos o que o avarento encerra no seu cofre, saberíamos muito sobre seu desejo1

 

If we knew what a stingy man kept in his safe, we would know a lot about his desires

 

 

Bela Malvina Szajdenfisz*

Internacional dos Fóruns da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano
Fórum Rio
Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro
Revista Folhetim

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo traz um fragmento de um caso clínico de uma jovem que, após muitas andanças, retorna às suas origens, o São Paulo, cidade em que mora seu pai biológico. Vai em busca da verdade que se esconde por trás de um segredo familiar. Fixado como uma constante pela fantasia fundamental, o desejo está ali, efeito da operação de linguagem, motor na enunciação do "isso fala" do inconsciente, um saber muito maior do que o homem crê saber. Verônica quer encontrar aquele que, na sua fantasia, lhe foi arrancado de seu convívio quando criança. Guarda no cofre o objeto de seu desejo, um objeto mortificado, fora do circuito, inapreensível, um amor que denuncia que o pretenso objeto é o resto, sua causa, esteio de sua insatisfação e talvez, de sua impossibilidade.

Palavras-chave: Verdade, Desejo, Saber, Impossibilidade.


ABSTRACT

This article presents a fragment of a clinical case of a young woman who, after many wanderings, returns to her origins, São Paulo, the city where her biological father resides. She goes in search of the truth that is hidden behind a family secret. Fixed as a constant by the fundamental fantasy, the desire is there, as an effect of language operation, the engine of the enunciation of the 'this speaks' of the unconscious, a knowledge far greater than what man believes he knows. Verônica wants to find the one who, in her fantasy, was pulled away from her life when she was a child. She keeps in a safe the object of her desire, an object which is mortified, out of circulation, ungraspable, a love that denounces that the alleged object is the rest, her cause, the basis of her dissatisfaction and perhaps of her impossibility.

Keywords: Truth, Desire, Knowledge, Impossibility.


 

 

Lacan faz essa citação, de autoria de Simone Weil, em O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação, na lição de 13/05/1959, quando convoca os psicanalistas a ocuparem o lugar de objeto a, objeto este que causa o desejo de o sujeito trazer algo de sua verdade à tona, impulsionando o discurso inconsciente. A autora se apropriou dessa citação, como uma metáfora, com o objetivo de desenvolver o trabalho do psicanalista em sua prática clínica enquanto objeto a, lugar em que o analista põe o sujeito analisante ($) a produzir os significantes que o determinam.

A questão da avareza aparece durante o processo de uma jovem em análise, como um significante do Outro, significante esse que ela toma para si como uma sina que a persegue e que lhe provoca um mal-estar. O significante "avaro", com suas derivações "avarento" e "avareza" se faz presente na fala da jovem de uma forma insistente, o que a leva a buscar saber sobre o segredo familiar que lhe faz enigma. Ela esconde no seu "cofre" o objeto precioso, o pai biológico, por não querer perdê-lo, mas a ele não tem acesso, efeito de um dito materno proibitivo na adolescência e de uma confrontação, na época, inamistosa com esse pai.

O fragmento desse caso clínico, que muito contribuiu para a clínica da autora, é o de Verônica,2 que após muitas andanças pelo mundo acompanhando os pais que a criaram, retorna às suas origens, a cidade de São Paulo,3 em busca do pai que lhe foi "arrancado" ainda na infância.

Verônica trabalha para uma ong4 como pedagoga. Saiu da cidade em que atualmente vive sua família, porque queria se distanciar de seu controle. Trouxe consigo o desejo de busca pelo pai biológico e a tiracolo, o namorado alagoano que, ao passar em um concurso público para o magistério superior, mudou-se para outra cidade no norte do Brasil. Verônica não o acompanhou. Diz que o ama, mas teme recomeçar uma nova peregrinação. Atribui à universidade um obstáculo para sua vida, pois quando pequena, foi obrigada a morar com os pais no exterior, por causa dos mestrados e doutorados deles e agora, na fase adulta, vê isso se repetir. Diz que não quer isso para si, mas quer construir sua própria família em outra base, que não a da família em que foi criada.

Na sua primeira entrevista, Verônica se queixa de uma gastrite e se apresenta com manchas pelo corpo, sem diagnóstico preciso. As manchas apontam para o sintoma, levando a perceber que ali há uma mensagem. Ela é o mensageiro que carrega suas marcas. Seu código pessoal está gravado no corpo, exigindo uma decifração.

Os pais biológicos de Verônica se conheceram em São Paulo, ainda estudantes de biologia, e foram morar juntos quando ela nasceu. Ainda pequena, eles se separaram. Sua mãe, sentindo-se desamparada, sem trabalho, conseguiu uma bolsa para o mestrado em uma cidade no sul do Brasil, onde encontrou em Figueiredo5 alguém que pudesse lhe dar uma sustentação e com ele acabou se casando.

Verônica, que queria muito ter um pai, aos cinco anos arrancou a foto de seu pai biológico do álbum de bebê e a substituiu pela foto de Figueiredo, seu pai adotivo, que simplesmente riu. Ela se queixa até hoje de que perdeu seu pai verdadeiro por um pai que a adotou parcialmente. Isto porque prometeu dar-lhe seu sobrenome e nunca o fez. Como ele havia passado para um doutorado no exterior, a família precisou acompanhá-lo e nunca mais se falou dessa mudança de nome.

Em uma das sessões, Verônica evoca uma passagem traumática de sua adolescência. Silva, seu pai biológico, veio ao seu encontro, mas sua mãe interveio impedindo qualquer aproximação, só consentindo após a concordância dele em custear os estudos da filha, o que o fez por curto período. Com a interrupção do custeio dos estudos, Verônica se viu na contingência de trabalhar, mas só conseguiu quitar a dívida com a ajuda do pai adotivo, irritando a mãe a tal ponto que ele exigiu que a filha entrasse na Justiça contra o próprio pai. Na sua fantasia de adolescente, ela imagina que seu pai nunca mais vai querer vê-la. Ela diz não querer nenhum contato com ele, mas precisa saber de sua história.

Verônica lembra-se de ter exercido funções domésticas, de organização da casa por um bom período. Enquanto sua mãe trabalhava em outra cidade, ela cuidava de sua meia-irmã mais nova. Ela, por não se sentir parte da família, em sua fantasia se via como uma personagem do conto de fadas "A gata borralheira", conhecida também como Cinderela, conto que retrata uma jovem que vivia com sua madrasta malvada junto a suas duas filhas que a faziam de serviçal. No entanto, originalmente, a verdadeira gata borralheira era a única filha biológica do pai, sendo que as meias-irmãs, essas sim, eram filhas adotivas do pai de Cinderela.

Dentre as queixas, a avareza da mãe ainda a incomoda. Reclama que, mesmo em boa situação financeira, essa mãe nunca lhe comprou roupas femininas de marca, como o faz com a irmã. Ela até hoje tem dificuldade de entrar em loja de marca, confirmando o lugar de "borralheira", significante que faz equivocidade com "borrar", como "borrar o caderno de matemática", matéria que tinha dificuldade quando retornara do exterior. Na ocasião, ouvia com frequência do pai adotivo: "Você nem parece uma Figueiredo!". Pode-se pensar na hipótese de que, no caso, borralheira não é somente a que fica marginalizada, como a história da gata borralheira, mas a que "borra os Figueiredo".

É interessante notar que Verônica traz na sua carteira de identidade o sobrenome do pai biológico, Silva, mas não o usa nas suas assinaturas. Utiliza apenas o sobrenome da família materna, Campos. Sua mãe insiste que ela é uma Figueiredo. Figueiredo é o estatuto da família. O seu lugar na família é, no entanto, diferente do lugar dos Figueiredo. O não ter o sobrenome do pai adotivo a torna uma exceção, fazendo valer o pai biológico, o pai que foi descartado ao se separar dela. Biologia é a profissão escolhida por todos os membros da família. No caso, Verônica se crê também uma exceção, na medida em que não escolheu trabalhar na universidade, nem seguir a profissão da família. Escolheu ser pedagoga.

Ao ocupar um lugar diferente do de Figueiredo, ante a fantasia de gata borralheira, Verônica não se coloca na série no momento em que se separa da casta dos "perfeitos". Na realidade, ela fica muito dividida em relação à sua filiação. Por um lado diz que, diante da mãe e do Figueiredo, sempre precisou se esforçar muito para ser digna deles, mas ao mesmo tempo se culpa por querer ir à procura do pai biológico, o que seria uma ingratidão com seus pais atuais. Percebe-se que sua fragilidade e sua insegurança a levam à duplicidade em quase tudo: dois empregos, dois pais, duas mães, duas casas.

Ao longo do processo analítico verifica-se em Verônica uma transformação. Ela, agora, apresenta-se como uma mulher bem feminina e sedutora, usa amplos decotes e adereços que permitem cobrir-se e descobrir-se, uma particularidade sua que faz naturalmente.

Essa jovem retornou a São Paulo em busca de sua verdade e começou o tratamento alguns meses após sua chegada. Em maio de 2013, o namorado mudou-se da cidade e ela decidiu permanecer na cidade que escolheu para ela. Repete, com frequência, que não foi isso que sonhou para ambos. Ela tenta manter-se fiel ao projeto original de encontrar aquele que, na sua fantasia, lhe foi arrancado de seu convívio quando criança.

Em O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação, Lacan nos diz que o discurso fragmentado, efeito do recalque, contém elementos interpretáveis que vão surgindo à medida que o sujeito em análise tenta reconquistar-se na sua originalidade. Mas, ainda que a enunciação aponte para o lugar do falante e do seu desejo, o mais próximo a que se pode chegar diz respeito a fragmentos, ou a um dizer marcado pela falta (LACAN, 1958-1959/2002, lição de 28/01/1959).

Lacan, em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (LACAN, 1958/1998), acrescenta que para apreender o desejo é preciso tomá-lo ao pé da letra, na decifração da cadeia significante, um processo cuja lógica traz a marca da impossibilidade de um saber todo, a recusa de uma verdade irrefutável. Fixado como uma constante pela fantasia fundamental, o desejo está ali, efeito da operação de linguagem, motor na enunciação do "isso fala" do inconsciente, um saber muito maior do que o homem crê saber. É um saber ele mesmo, um saber que não se pode saber por que está recalcado, um saber que faz parte do recalque original, algo da ordem do impensável, um saber que a gente sabe sem sabê-lo (LACAN, 1976-77, lição de 14/12/1976).

Ao final de seu ensino, Lacan relativiza a descoberta freudiana em produzir um corpo de significantes e significações nas interpretações dos casos clínicos. Ele nos diz que a linguagem deve ser pensada como real, pois há um saber no real e é nesse saber que está a verdade, priorizando, assim, o gozo. Nesse sentido, uma psicanálise que visa tudo interpretar e dar sentido a todas as coisas, a tudo que é falado pelo sujeito, é de outro estofo. As interpretações nada dizem, são meras intervenções no dizer do analisante. O analista participa do inconsciente do analisante sustentando o seu desejo, mas, na análise, o Um dialoga sozinho, pois ele recebe sua própria mensagem sob forma invertida. Satisfazer a demanda dirigida ao saber é algo da ordem do inacessível, uma vez que é um-dizer que se sabe sozinho (Ibid.). Assim, ao ouvir a partitura de um sujeito, o analista não pode ser tomado pelo sentido, mas precisa ouvir os engasgos, os tropeços, os tons, os sons, o silêncio, uma enunciação para além dos ditos.

Em relação à verdade, cito Soler (2009):

A verdade articulada é impotente ao dizer do real que a comanda, não chega ao seu núcleo real, ainda que teime em fazê-lo. Se se a recalca, ela retorna; se se a amordaça, ela se mostra em outro lugar; se se demanda o que ela esconde, ela mostra apenas uma meia verdade. Sua insistência reiterada nos deixa, no entanto, entrever um real de causa inominável que a anima, um impossível de dizer desse 'objeto que falta', para sempre perdido, ainda que engendre o mais-de-gozar de onde o desejo se articula ao gozo (p. 19, tradução da autora).

Verônica lamenta-se da sina que a persegue até os dias atuais, sina com a qual se identifica em sua fantasia: a da mãe, com seu sofrimento e sua avareza. Ela esconde no "cofre" esse pai imperfeito, objeto agalmático não-todo, capaz de furar a série dos perfeitos. Encerra em si o objeto de seu desejo, um objeto mortificado, fora do circuito, subtraído, inapreensível, um gozo para além da linguagem, que escapa ao discurso e se experimenta no corpo.

"Por que tenho que saber tudo?" "Eu não tenho que saber tudo!" são ditos de Verônica que confirmam um amor cujo pretenso objeto é o resto, sua causa, esteio de sua insatisfação e talvez, de sua impossibilidade.

O sujeito com que a psicanálise trabalha é produto do discurso da ciência, mas a ciência da psicanálise é de outro estofo. Na psicanálise há um saber que não comporta conhecimento. É um saber que não se sabe, mas que está lá recalcado e que contém uma verdade que o sujeito crê saber. Mas o sujeito não sabe nem do texto, nem do sentido, nem da língua, cabendo ao analista promover a decifração de seu enigma. Esta primeira clínica de Lacan se pauta em dar um sentido ao que o sujeito diz. Na segunda clínica, Lacan aponta para uma intervenção no querer gozar do sujeito, ou seja, ele muda a noção de estrutura, sendo esta pensada não como linguagem, mas como real. O objeto a, nesse segundo caso, está fora da linguagem e se concentra como objeto condensador de gozo, não sendo da ordem do sintoma. O modo de barrá-lo é pelo ato analítico, sendo o corte da sessão uma de suas possibilidades.

Esse caso clínico pode mostrar à autora que uma clínica não exclui a outra. Sua utilização se dará em função da prática, da habilidade e do desejo do analista. O efeito é a busca do sujeito analisante por um melhor se sentir.

 

Referências

LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

__________. (1958-59). O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2002.         [ Links ]

__________. (1976-77). Le Séminaire, livre XXIV: l'insu que sait de l'une bevue s'aile à mourre. Edição heReSIa, de circulação interna.         [ Links ]

SOLER, Colette. Lacan, l'inconscient reinventé. Paris: Presses Universitaires de France, 2009.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Bela Malvina Szajdenfisz
Rua Soares Cabral, 80/1201 – Laranjeiras
Rio de Janeiro – CEP 22240-070
E-mail: bmal.trp@terra.com.br

Recebido: 15/02/2014
Aprovado: 25/08/2015

 

 

* Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Mestre em Psicologia da Educação. Membro da Internacional dos Fóruns da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano. Membro do Fórum Rio. Membro de Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, delegada da IFCL 2012-2014. Membro da comissão de redação da revista Folhetim. Coordenadora da Biblioteca do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro 2012-2014.
1 Este artigo baseia-se na apresentação realizada por ocasião do XIV Encontro Nacional da EPFCL – "O desejo e suas errâncias", cujo título original foi Em busca da verdade. O título foi extraído de uma frase de Simone Weil, escritora francesa, citada por Lacan (1958-59/2002, lição de 13 de maio de 1959, p. 394). Foi utilizado pela autora como uma metáfora.
2 Nome derivado do latim verum (verdade).
3 Neste artigo as cidades, nomes e profissões utilizadas pela autora são fictícios.
4 Organização não governamental que trabalha em comunidades carentes.
5 Sobrenome fictício dado para ressaltar a notoriedade do sobrenome da família. João Batista Figueiredo foi o trigésimo Presidente do Brasil no período de 1979 a 1985 e o último presidente do período do regime militar.

Creative Commons License