SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número29Conflito ou autorrecriminação: Questões sobre o desejo na neurose índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.29 Rio de Janeiro nov. 2014

 

RESENHA

 

Sua Majestade o autista: fascínio, intolerância e exclusão no mundo contemporâneo

 

His Majesty the autistic: fascination, intolerance and exclusion in the contemporary world

 

 

Beatriz Oliveira*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Fóruns do Campo Lacaniano - SP

Endereço para correspondência

 

 

Luis nos apresenta, em forma de livro, sua tese de doutorado em educação. Aí já temos uma escolha ética que será sustentada ao longo de toda sua pesquisa: tratar do campo da educação – mais particularmente da que se propõe inclusiva – à luz da psicanálise. A coerência está no fato de que ele, um psicanalista, parte de sua própria experiência com escolas, educadores e alunos para colocar em questão o fascínio em torno da "figura do autismo" – como o autor mesmo escolhe nomear seu objeto de pesquisa – refletindo sobre seus determinantes e suas incidências sobre a educação inclusiva.

Tal fascínio se revela já no próprio título ao fazer uma referência freudiana ao quadro His Majestythe Baby, de Arthur Drumond. No entanto, também se demonstra pelo lapso que o próprio Luis revela ao leitor ao nomear: "nossa majestade, o autista", a partir do qual se evidencia sua implicação nessa mesma problemática levantada por seu trabalho. Assim, temos que de uma pesquisa acadêmica extrai-se o texto de um autor o qual, do início ao fim, "admite a falta que é a própria condição da constituição do saber, que só pode ser construído no um a um" (FURTADO, 2013, p. 213).

Antes de apresentar o texto, me parece fundamental destacar sua importância no cenário atual a respeito das questões sobre o autismo. Como o próprio Luis destaca na Introdução, um ano após a defesa de sua tese, a psicanálise foi prescrita do tratamento do autismo na França e em particular, num documento assinado pela Secretaria do Estado de São Paulo. Tal documento tornava instituído o tratamento do autismo na saúde pública apenas por profissionais psicólogos de orientação cognitivo-comportamental. A crítica a esta proposta gerou um movimento importante em São Paulo, denominado "Movimento Autismo, Psicanálise e Saúde Pública", organizado por psicanalistas e profissionais de saúde mental para debater o papel da psicanálise no cuidado da pessoa com autismo. Isso nos mostra o quanto este livro se torna uma peça importante para qualquer psicanalista nos dias de hoje.

Em seu livro, Luis traça o caminho em torno de três passos principais. Primeiro, faz a crítica à categoria nosográfica do autismo e seu uso ideológico e institucional na educação destas pessoas. Segundo, demonstra que o próprio termo "autismo" instaura problemas em torno da dimensão do sujeito e, à luz da psicanálise, procura pensar a inclusão destes sujeitos. Terceiro, a partir da ideologia pós-moderna, se pergunta se o autismo poderia ser uma metáfora do mundo contemporâneo como propõem alguns autores.

Vê-se que a pesquisa não é pequena, pois procura articular o campo da clínica, educação e política. Por isso mesmo não é um texto para se ler com pressa, mas sim, lembrando que estes campos se enodam e que, em vários momentos, o leitor passeia por diferentes questões sem, no entanto, perder a orientação ética de Luis: a via do sujeito e sua enunciação singular num discurso que forclui a dimensão da subjetividade.

Inicialmente, Luis nos apresenta os pressupostos que nortearam sua pesquisa, bem como sua escolha pela psicanálise e pela educação inclusiva.

Para sustentar aquilo que Luis nomeia como "fascínio pela figura do autismo", o autor retoma a história do autismo, desde as descobertas de Jean Itard com Victor de Aveyron e as consequências destas para o que veio a se propor como "educação especial". Não só isso, mas também faz um estudo histórico da própria psiquiatrização da infância para retomar a antiga polêmica da diferença entre idiotia e retardo, estabelecida por Séguin: a idiotia como um bloqueio na linha do desenvolvimento e o retardo como patologia da lentidão. Tal diferença levaria a distintas formas de tratar e educar as crianças. Seu objetivo, com isso, foi mostrar que os antecedentes genealógicos da noção de autismo e de sua educação e tratamento já apresentavam problemáticas encontradas hoje em diversas teorias (Idem, p. 65).

Assim, ao retomar as controvérsias presentes no próprio estabelecimento do autismo por Leo Kanner, Luis adverte para o apagamento da contribuição da psicanálise para o estabelecimento desse diagnóstico a partir da noção de "transtorno de desenvolvimento": o distanciamento do autismo enquanto categoria nosográfica diferenciada da esquizofrenia, distanciando-a das psicoses – alvo de tratamento clínico – leva-o a ser entendido como "deficiência", objeto da educação especializada. "O autismo passa a ser situado em termos de problemas cognitivos e seu déficit nos processos psíquicos justificados por disfunções cerebrais inatas" (Idem, p. 66). Isso se verifica ao acompanharmos as instituições especializadas nos dias de hoje, no Brasil, tal como Luis apresenta no final do segundo capítulo.

É nesse ponto que Luis já nos introduz no campo político. Seguindo Zizek, ele dirá: as mudanças na concepção teórica e "científica" do autismo ilustram a cumplicidade entre a ideologia multiculturalista e a hegemonia totalitária técnocientificista, representada pelo cognitivismo-comportamental contemporâneo, questão que ele abordará mais detidamente no último capítulo.

O capítulo três é fundamental para que possamos acompanhar o panorama atual das diferentes formas de se conceber o autismo, o que levou a duas grandes posições: aquelas que defendem o autismo como um transtorno a ser tratado e outras que sustentam o autismo como um modo de ser diferente da normalidade. Tais concepções geram movimentos diferentes para a abordagem do problema. As primeiras advogam pelos métodos específicos de educação e tratamento – aqui se situam muitos grupos de pais de autistas; já a segunda, coerente com a "neurodiversidade", nomeada como grupos anticura, milita em prol de uma comunidade em que o "modo de ser" destas pessoas seja respeitado.

Assim, Luis vai tornando claro ao leitor que há muitas nuances determinantes para as práticas institucionais adotadas e que devemos, enquanto psicanalistas, estar advertidos dos conflitos existentes em torno do que se chama de autismo. Se há um aumento atual no número de casos diagnosticados como autismo, este é mais consequência de interesses político-econômico-institucionais do que causa destes mesmos "interesses". Nesse sentido, a ampliação e extensão do diagnóstico do autismo a partir de sua classificação como transtorno levou algumas instituições a se manterem, aumentando consideravelmente o número de alunos a serem incluídos em suas propostas. "Dependendo do critério diagnóstico utilizado, o número de alunos matriculados que deve ser comunicado às entidades financiadoras pode variar..." (Idem, p. 110).

Luis conclui:

Apesar da utilização de palavras de ordem que pregam a inclusão das pessoas com autismo, o uso ideológico das categorias psiquiátricas, a apresentação de métodos específicos ou a criação de comunidades autistas só apontam para um fator diametralmente oposto à lógica de qualquer educação que se pretenda inclusiva: a exclusão radical do sujeito (Idem, p. 119).

No quarto capítulo, Luis apresenta diferentes concepções do autismo sustentadas por psicanalistas lacanianos e se pergunta: quando lidamos com pessoas autistas ou quadros psicóticos muito precoces, trata-se de educação ou psicanálise? Por isso, me parece de extrema importância ele apresentar em seguida sua pesquisa em torno dos textos de Lacan e Freud, para extrair dali o que se falou sobre autismo. Partindo do que Lacan fala dos autistas como verbosos, Luis sustenta que "o fato de falarmos sobre estas crianças e tomarmos suas produções como portadoras de sentido é o que nos permite considerá-las como sujeitos" (Idem, p. 144). Na mesma direção, ressalta o quanto Freud deixou claro até o final de sua obra a ressalva quanto ao uso do termo autismo por Bleuler, o qual não se alinhava à sua teoria da sexualidade – Freud propunha o uso do conceito de autoerotismo como "retorno do investimento pulsional sem necessidade do apelo ao outro" – o que, para Luis, se torna mais um argumento pela suposição do sujeito no autismo.

Tendo como pressuposto o conceito de sujeito para Lacan, Luis considera então que:

(...) incluir o psicótico e o autista não é sinônimo de adaptação e uniformização, de torná-lo um igual. A inclusão a ser pretendida deve levar em consideração a inclusão da radical diferença no seio da sociedade, onde normalmente se supõe a igualdade entre os indivíduos. O sujeito nunca fará conjunto em relação à norma (Idem, p. 158).

Embora esteja presente ao longo de todo o texto a dimensão política do autismo, é no final de seu trabalho que Luis fará uma análise mais aprofundada a respeito da relação do autismo e o discurso vigente. Tendo como referência autores como Soler e Zizek, sustentará que

(...) o caráter objetor do sintoma autístico é o de fazer greve com a palavra. O autista faz fracassar o discurso da norma naquilo que ele tem de mais fundamental e que possibilita qualquer dispositivo de normatização: a alienação no discurso do Outro (Idem, p. 170).

Nesse sentido, Luis sustentará que a psicanálise se torna um discurso de urgência, pois vai na contramão do discurso cientificista ao considerar as singularidades. Não só isso, dá lugar a uma enunciação que fica forcluída diante do esclarecimento do sintoma pelas vias dos elementos bioquímicos e hormonais. Assim conclui o autor: "Ora, a cultura da redução do sintoma a uma desordem orgânica é extremamente favorável e coerente com esta derrisão da palavra e suas implicações políticas, que propiciam o individualismo consumidor" (Idem, p. 178).

Luis é categórico em sustentar a posição contrária à proposta de uma fórmula generalizada do modo como os autistas devem aprender ou a utilização de métodos educacionais especializados. Tal proposta é avessa à psicanálise, pois naquele caso, estar submetido a uma norma universal, longe de dar lugar à diferença, provoca cada vez mais sua exclusão:

A luta para responder sobre a origem do autismo através de hipóteses "psicogênicas" ou "organogênicas" dissimula o verdadeiro problema que jaz nesse conflito: a foraclusão da dimensão da subjetividade no mundo contemporâneo e o estabelecimento de um quadro generalizado de intolerância (Idem, p. 197).

Assim, a partir da leitura de Zizek, Luis conclui que há um real em jogo no autismo e que as diferentes teorias definem objetos distintos. Ou seja, falar em autismo implica pensar de que autismo se está falando. Isto não é sem consequência social, política, clínica, educacional e principalmente ética.

Ao final desta leitura, reiteramos a aposta de que só é possível a inclusão seja do autismo ou de qualquer sujeito na educação quando se leva em conta a dimensão do impossível presente nessa mesma inclusão.

 

Referências

FURTADO, L. A. Sua Majestade o Autista: fascínio, intolerância e exclusão no mundo contemporâneo. Curitiba: CRV, 2013.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: biaoliv@uol.com.br

 

 

* Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro do FCL-SP/EPFCL-Brasil, mestre em psicologia clínica pela PUC-SP.

Creative Commons License