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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.30 Rio de Janeiro jun. 2015

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS

 

Nova economia sexual1

 

The new sexual economy

 

 

Colette Soler*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - França
Formações Clínicas Campo Lacaniano - FCCL-Paris

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora enfrenta a questão: como se instaura para o falante o corpo a corpo do coito hetero-sexual, já que a descoberta de Freud "há pulsões parciais, mas não pulsão genital" resulta no "não há relação sexual"? Duas frases paradoxais de Lacan: "eles têm a escolha" e "os seres sexuados se autorizam de si mesmos" escancaram a disjunção entre a opção sexual do todo ou nãotodo fálico e as práticas de corpo propriamente ditas, pois se há escolha forçada da identidade de gozo, esta não decide o parceiro do encontro em ato com o sexo. Hiato, não mais escondido pelo discurso capitalista, o que explicita a "nova economia sexual" dos tempos de hoje e a possível e singular incidência da psicanálise sobre os destinos atuais da maldição sobre o sexo.

Palavras-chave: Sexuação, Ato sexual, Escolha, Acontecimento de corpo, Sintoma.


ABSTRACT

The author faces the following question: how is the body to body of the heterosexual act installed once Freud's discovery "there are partial pulsations, but not genital pulsation" results in the "there is no sexual relationship"? Two paradoxical phrases by Lacan: "they have a choice" and "the sexed beings authorize themselves" open up the disjunction between the sexual choice of the overall or the phallic non overall and the body practices themselves. If there is a forced choice of jouissance identity, this does not decide on the partner of the encounter in act with sex. Hiatus, not any longer hidden by the capitalist discourse, and this makes explicit the "new sexual economy" of current times and the possible and singular incidence of psychoanalysis over today's destinies of curse over sex.

Keywords: Sexuation, Sexual act, Choice, Body happening, Symptom.


 

 

Ao dar como subtítulo de nossas jornadas,2 intituladas "A escolha do sexo", duas frases de Lacan — "eles têm a escolha" e "eles, os seres sexuados, se autorizam de si mesmos" — aparentemente postulamos implicitamente que ambas são sinônimas! Seria esse o caso? Seria essa uma redundância para dizer a mesma coisa? Isso não se pareceria com Lacan, e no final das contas percebi que são duas teses diferentes. É isso que gostaria de tentar apresentar.

 

Paradoxo?

São propostas que, vistas a partir do discurso comum, são contraverdades, e até mesmo absurdos. Quem sente estar fazendo uma escolha? Nem mesmo os transexuais, que afirmam com certeza um sexo oposto a todos os vereditos da anatomia e do estado civil, mas que não pretendem tê-lo escolhido, mas, pelo contrário, antes ter sido escolhido desde a origem e a contragosto por essa identidade sexual invisível. Se os "trans", como se diz, mostram algo é somente que o sentimento subjetivo da identidade sexuada pode ser separado dos dados tanto orgânicos quanto culturais, e que, portanto, há entre eles uma junção da qual toda a questão é saber como ela se produz.

Insisto no paradoxo. Eles têm a escolha, mas a anatomia, no entanto, vinculase a um real, e o real não pede sua opinião, se esbarra com ele. A anatomia se marca na imagem do corpo, mas ela não é, entretanto, imaginária; digamos que se trate de um índex no nível da imagem de um organismo vivo sexuado, que tem suas regulações próprias, e que em particular divide os seres vivos em duas categorias — macho e fêmea — segundo a sex ratio, que condiciona nada menos que... a reprodução da espécie. Hoje é possível dar um jeito com os hormônios e a cirurgia, mas isso é apenas uma "bricolagem" que faz a prova, pelo contrário, de que o organismo nos é imposto como um real. Ora, a anatomia, índex desse real biológico, é o ponto de amarração de todos os discursos históricos sobre o sexo, o casal, a reprodução e, mais geralmente, a ordem social. Natureza e histórias, por conseguinte, se aliam, mas a anatomia se impõe fora da ordem dos discursos que a sobredeterminam. Como pretender, então, que ela não é determinante?

Temos, portanto, um problema: como Lacan, a despeito de Napoleão e de Freud, pode por si só objetar ao veredito dos dois, "a anatomia é o destino"? É precisamente isso que "eles têm a escolha" parece dizer.

É ainda mais curioso que quando introduz suas fórmulas da sexuação em "O aturdito", Lacan está longe de esquecer o fator anatômico-orgânico, dado que ele postula não somente que cada uma das duas metades da sex ratio tem uma relação distinta com o sexo, mas, sobretudo, que o discurso deve produzir duas metades homólogas às da sex ratio natural — isto é, textual, cito: "é-nos preciso obter dois universais, dois todos, (...) duas metades que não se atrapalham demais em sua coiteração [coïteration] quando chegam lá" (LACAN, 1972/2001, p. 455). Porque isso é preciso, senão para assegurar, a despeito da não relação sexual, o ato hetero sexual, condição do porvir... da reprodução da vida, que é como que o pano de fundo de todo o texto de "O aturdito". Por falta de tempo, não farei a demonstração textual disso, mas seria fácil; sublinho, porém, a lógica desse posicionamento. A não relação sexual, postulada em 1970 em "Radiofonia", condensava a descoberta de Freud. Esta última era assim formulada: há pulsões parciais, mas não há pulsão genital, e, a partir daí a questão de como, para o falante, se instaura o corpo a corpo do coito hetero-sexual? O próprio Freud colocou essa questão e tentou respondê-la por meio do Édipo. Na verdade, um fracasso cujo índex é o limite a respeito da questão da mulher. Lacan, em "O aturdito", tentava um último esforço para explicitar a identidade sexuada. Digo último, mas deveria antes dizer um esforço renovado, pois ele já havia fornecido uma resposta por meio da função do falo como significante da falta, a qual preside às regulações dos semblantes e dos desejos. Só que o desejo não é o gozo e somente ele não assegura do coito. Hiância, ele repete, do desejo e do gozo. "O aturdito" tenta fazer uma repartição, dessa vez por meio do falo maiúsculo, significante do gozo do falante, este mesmo que objeta à relação e que implica a castração. Como ele diz em "...ou pior", o resumo do Seminário que "O aturdito" coloca por escrito, é o "título de uma escolha" na qual "trata-se do sentido de uma prática que é a psicanálise" (LACAN, 1973a/2001, p. 546), aquela que não recorre ao Nome do pai, que aposta "do pai ao pior" (LACAN, 1973b/2001, p. 543).

 

Qual escolha?

A escolha, portanto. Não há escolha que não caminhe entre muros de coerções reais. No que tange ao sexo, onde estão os muros? Deixo de lado a anatomia e aquilo que ela empenha do real biológico. Lacan passou décadas precisando o que há de real na e pela linguagem e que se formula em negatividade por fim: não há relação sexual e o gozo que há, sendo aparelhado pela linguagem ou pela alíngua, sofre necessariamente pelo golpe de uma castração. Entre impossível e necessário, portanto, esse real próprio à linguagem sobre o qual não há nenhum controle, deixa alguma escolha? Não, esse real não se escolhe, ele se impõe — embora se pense de forma diferente. Enquanto é possível recalcar a verdade, podemos, na melhor das hipóteses, nos habituar ao real, não tem outra opção.

Mas com o real há uma circunstância distinta, aquela em que um real — pois o real não é Um — arranja uma alternativa e, com efeito, em um certo nível, a estrutura não engaja somente algo do impossível e do necessário, mas também algo da ordem alternativa. É por isso que Lacan extraiu sua noção de "escolha forçada" imposta pela cadeia significante: ou um ou outro, ou o S1 ou o sentido, dizia o Seminário XI; posso escolher, com a ressalva que não tenho a escolha de não escolher, e cada opção incluindo uma perda, também não tenho escolha com relação à perda. Para o sexo não é só a linguagem, mas o discurso que desenha uma alternativa. Não há discurso do sexo, é o que demonstrava De um discurso que não seria semblante, mas uma alternativa entre duas identidades de gozo, toda e nãotoda [pastoute], fálica, determinada por duas lógicas diferentes. Essa alternativa, Lacan precisa, inscrevia o Édipo freudiano do lado do todo e, do outro lado, o nãotodo [pastout] que não está nessa lógica, mas para além dela, e que já é, portanto, uma das versões da alternativa "do pai ao pior". Entre os dois, os sujeitos têm escolha. A expressão não aparece no texto de "O aturdito", mas ela está claramente presente, implícita ali. Quando ele escreve "que um sujeito se propõe, por exemplo, de ser dita mulher", fórmula de intenção subjetiva por excelência... A anatomia não faz destino para o sujeito, e não é porque alguém nasceu macho e que se diz que é homem, que ele se coloca à esquerda no todo fálico; é justamente o contrário, pois é porque alguém se coloca ali, e se ele se situa ali, que pode ser homem. E o mesmo para o outro lado. Hiato surpreendente, portanto, entre o ser de natureza, biológico, e o ser tomado em um discurso, e que fala.

Dois anos depois, Lacan acrescenta: "eles se autorizam de si mesmos" (LACAN, 1973-1974/inédito, lição de 09/04/1974). A fórmula é quase contemporânea da introdução do termo "falasser" [parlêtre], que ele substitui em 1975 ao inconsciente freudiano, depois de ter dito em "Televisão" que não era preciso mudar esse termo "inconsciente".

A nova fórmula postula uma homologia surpreendente com o analista, que de fato surpreendeu. Armei-me, então, com a homologia para tentar mostrar o alcance da nova fórmula. Entre esses dois atos há ao menos um traço comum, bem visível, sem passar pela experiência analítica: eles são opcionais, um não é mais obrigatório do que o outro, e ambos têm consequências, mas não as mesmas, já que um preside a um discurso novo e o outro preside, além de uma possível satisfação, à reprodução dos corpos que, por sua vez, não é nova, mas que está em questão, isso porque não há cultura que não produza artifícios discursivos para enquadrar o ato, para simultaneamente regulá-lo e forçá-lo. No cristianismo: abstinência, mas... dever conjugal. Com a ciência: o cálculo das políticas de natalidade, limitação/incitação. Prossigo.

O analista que só se autoriza de si mesmo, como já desenvolvi, não é a pessoa do analista, aquela que decide comprar um divã e se instalar, mas o analista definido por seu ato. O ato em geral, mas eminentemente o ato analítico, se autoriza de si mesmo, porque o Outro não está no ato; mas há mais, no ato também não há sujeito — Lacan dá a fórmula paradoxal disso: no ato "é o objeto que aí é ativo e o sujeito, subvertido" (LACAN, 1967/2001, p. 332). Se falamos, então, de um sujeito do ato não se trata do sujeito representado por um significante, mas por aquilo que nele não é sujeito, por aquilo que o divide, por aquilo que o causa, o objeto a. E quando, um pouco mais tarde, Lacan acrescentou para o analista "e de alguns outros", essa proposta não estava no mesmo nível, o ato não se autoriza de alguns outros; é o sujeito que se autoriza de alguns outros para correr o risco do ato que o subverte, e o primeiro desses outros é, a meu ver, e como já disse, Freud.

 

Autorizar-se a quê?

Pois bem, finalmente percebi que "eles, os seres sexuados, se autorizam de si mesmos" não é como eu havia espontaneamente suposto, e constato que não era a única, não é a tese sobre as duas metades de sujeito homem/mulher estabelecida por "O aturdito", é uma outra tese que vem depois, complementar, que acrescenta- se a ela e que tem um alcance mais amplo, diferente e que diz respeito... ao ato sexual e, mais amplamente, às práticas de gozo de corpo.

Para introduzir esse ponto, noto, aliás, que o "Relatório do Seminário A lógica do fantasma" termina com considerações sobre o ato sexual; e na retomada das atividades que se segue imediatamente dois meses depois, Lacan começa o seminário sobre "O ato analítico". Assim como, dois meses depois de "O aturdito", ele abre o seminário Mais ainda sobre a questão do ato sexual, que ele propõe desde a primeira lição. A tal ponto que podemos dizer que ela não havia sido resolvida por "O aturdito". Desenvolvo um pouco essa sequência.

Em 1968, o relatório afirmava um "primado do ato sexual" (LACAN, 1968/2001, p. 326), declinado em duas fórmulas. "Não há ato sexual" e "só há o ato sexual" (Ibid.). Ele explicitava: não há ato que tenha peso para afirmar no sujeito a certeza que ele é de um sexo. Eis explicitada a disjunção entre a identidade homem/mulher e o ato sexual hetero. O ato não prova nem o homem, nem a mulher. Aliás, a certeza dos transexuais não tem consideração para o ato. "Só há o ato sexual cujo pensamento tenha lugar para se defender" (LACAN, 1968/2001, p. 326). Em outras palavras, no ato sexual, "eu não penso", não mais que no ato analítico. Com este ato que não identifica e que desafia o pensamento, o primado do ato sexual se afirmava do lado do negativo. Os passos seguintes foram de propor o "não há relação sexual", é em 1970, em seguida, em "O aturdito", de situar a discordância dos dois gozos nas duas lógicas que permitem concebê-la. Já sabíamos que essa identidade de gozo não implica a escolha do parceiro, o que chamávamos outrora na psicanálise de "escolha de objeto"; no entanto, há mais, nenhum dos dois gozos implica necessariamente o ato de copulação. "Eles se autorizam de si mesmos" coloca a disjunção entre a escolha do todo ou do nãotodo e, por outro lado, a escolha, não somente dos parceiros, mas das práticas de gozo de corpo. Sobre esse ponto é o seminário Mais ainda que insiste mais sobre isso, como se fosse preciso. No entanto, uma frase de "O aturdito" já havia marcado o lugar em que os desenvolvimentos futuros poderiam se colocar. Lacan evoca a chicana lógica de que "a relação ao sexo se perca" (LACAN, 1972/2001, p. 469). O termo chicana comenta a não complementaridade entre o todo e o nãotodo, mas ele acrescenta, cito: é por "querer que seus caminhos cheguem ao outro sexo" (Ibid.) que ele se perca. Só que ele não é obrigado aí a querer ir em ato ao outro sexo.

Quem ele colocava do lado do todo fálico? Homens, hetero ou homo, pois a identidade de gozo não decide o parceiro; amigos da philia grega, histéricos homem ou mulher, a falofilia de Montherlant em "Televisão", e dos místicos como Angelus Silesius. Angelus é colocado por Lacan no todo fálico porque entre ele e seu deus há o objeto olhar. Essa tese sobre Angelus pode ser justa ou falsa, pouco importa; ela indica que segundo Lacan, quando o objeto a se interpõe entre o sujeito e seu parceiro está-se do lado do todo fálico. Que o ato hetero não seja aí necessário fica bem evidente por essa série do homem homo, mas igualmente para os "amigos" gregos e a histérica que fazem a escolha do amor mais do que do gozo carnal, ético. Fora-sexo, com letra maiúscula, diz Lacan, evidente também pela ética do celibatário de Montherlant; quanto a Angelus, suas constrições com deus, por serem limitadas pela estrutura do fantasma , não comportam evidentemente o ato sexual.

Do lado do heteros ou da hetera que é o nãotodo, Lacan coloca psicóticos, mulheres, místicos cujo matema poderia ser escrito por contraste com o de Angelus Silesius, . Compreenderíamos, assim, que qualquer que seja a intensidade das vibrações eróticas dos textos místicos, Lacan afirma muito fortemente que não se trata de histórias de foda [histoires de foutre]. E se a foda [foutrerie] que passa pelo órgão se distingue bem como Lacan coloca em sua "Nota italiana" da fodedoria [fouterie] que, por sua vez, passa no sentido antigo do termo pela articulação da alíngua, poderíamos talvez dizer que se trata de fodedoria em busca do A barrado. Em todo caso, os místicos, de qualquer lado que estejam, são o exemplo mais exacerbado da disjunção entre a opção sexual do todo ou do não-todo e a prática de corpos propriamente dita.

No ato, os atos sexuais, hetero ou não, e cujo sucesso faz o fracasso da relação sexual (LACAN, 1973b/2001), não nos esqueçamos, os seres falantes se autorizam de si mesmos e não da escolha entre o todo e o nãotodo que o discurso lhes impõe e que por si só não implica nenhuma prática de corpo específica. No máximo é possível dizer o que aproxima os corpos em caso de hetero sexualidade, como faz Lacan em Mais ainda com seu esquema do casal, onde se lê que para o homem isso passa pelo fantasma, e para a mulher, pelo falo. Poderíamos, aliás, sobre esse modelo, fazer o esquema de outros tipos de casais, mas isso não diz nada do gozo que responde no ato, e assim como para o ato analítico, é preciso questionar o "si mesmo" do autorizar-se de si mesmo. Pode-se dizer que aí, no ato sexual, é também o objeto que ali é ativo e o sujeito subvertido? Não seria suficiente. O objeto causa do desejo pode empurrar em direção ao Outro, objeto ativo, mas ele não basta para assegurar o gozo, como sabemos bem. Hiância do desejo e do gozo, repete Lacan. O que é que daí decide desse gozo que um toma pelo corpo do Outro, de onde ele vem? É exatamente a questão do início de Mais ainda. O desejo que o simbólico determina não basta aí, as características sexuais secundárias da imagem do corpo do Outro também não? O seminário Mais ainda deixa a questão em suspenso, mas ela prossegue para além dele. Lacan avança aí passo a passo, e acaba por responder pelo... sintoma, fixão de gozo. Ele é "acontecimento de corpo".

 

O acontecimento de corpo

Com ele, não há escolha. O acontecimento de corpo é como o trauma: isso irrompe, contingente e singular. No entanto, isso determina seu ser próprio, seu "si mesmo" que não é sujeito representado por um significante. Eles se autorizam de si mesmos quer dizer, portanto, que entre a sexualidade como atividade e o que chamamos de subjetividade com tudo o que disso se representa na fala, há um hiato. Em certos casos, uma solda entre o que é do sujeito — ou seja o amor, o desejo e o fantasma — e o que é do corpo de gozo dissimula o hiato; em outros, ele é perfeitamente perceptível, fazendo eventualmente o tormento do sujeito que não pode nada com isso. O acontecimento de corpo é algo do real, não o real do impossível, o da tiquê? Aqui se abriria a questão da relação entre o conceito lacaniano da alíngua e o acontecimento de corpo; deixo-a em suspenso por falta de tempo, mas vejam o que se passa em nossa época. Os acontecimentos de cor po se mostram por toda parte nas modalidades múltiplas e variadas dos gozos dos corpos, especificamente nos coitos variados da pornografia de nosso tempo, que se exibem com toda tranquilidade em tablets e telas, disjuntos de qualquer problemática subjetiva, e nos quais o ato sexual hetero não é senão uma modalidade entre outras, algo de que os psicanalistas recebem amplamente retorno. Digo, portanto, nova economia sexual. Na realidade, o que é de fato novo é que o hiato que acabo de evocar não é mais dissimulado pelos discursos tradicionais, pois o capitalismo que desfaz esses discursos e fragmenta os semblantes o deixa aparecer a céu aberto. É que o capitalismo que foraclui os problemas do amor, diz Lacan, não faz nenhuma oferta a seu sujeito. Suas ofertas próprias jamais dizendo respeito senão ao funcionamento do mercado, ele deixa de fato o campo livre aos "acontecimentos de corpo" que só o interessam se ele puder fazer comércio com isso, assim como com tudo aquilo que diz respeito aos seres vivos. A essa finalidade de desvelamento inerente ao capitalismo é preciso acrescentar aquilo que o discurso analítico, com Lacan ao menos, revela, ele que atesta e que explicita as suas razões. Noto, aliás, que esse hiato já estava presente, segundo Lacan, sob uma forma invertida na arte barroca, orgia de gozo de corpo, coito excluído. Hoje, ei-lo justamente fora das alcovas do privado. É, sem dúvida, isso que faz com que ouçamos vozes que evocam uma perversão, até mesmo uma psicose generalizada da época, mas isso é um erro, pois perversão e psicose designam avatares do sujeito em sua relação com o Outro, não avatares do gozo sintoma.

Por conseguinte, quem pode ser esses alguns outros? Não sei qual era a ideia de Lacan, mas assim como para o ato analítico, acredito que eles não se coloquem no nível do ato, sobre o qual nenhum Outro-outro poderia ter a maestria — sexologia sem esperança. Constata-se, por outro lado, que os sujeitos apelam para alguns outros para que eles ratifiquem o real de seu sintoma. O real dos falantes empuxa para a demanda de legitimação, e aspira-se hoje a normas plurissintomais contra a antiga norma unissintomal da hetero-sexualidade, e o processo de despatologização dos sintomas sexuais está efetivamente em curso, com o pesar de algumas pessoas.

O hiato que evocava é, em todo caso, crucial para a psicanálise, naquilo que ela se fixa como objetivo com relação ao acontecimento sintoma, real, do analisante, ela que não opera sem a verdade do sujeito, e quando se trata de saber como ela ajusta sua interpretação a esse inconsciente renomeado "falasser". Uma questão pode ser colocada aí: qual o arranjo entre o acontecimento sintoma e a verdade? A verdade que diz "Eu, a verdade, eu falo" — portanto, aquela que se procura pela via do dizer —, essa mente, pois nunca alcança o real fora simbólico. Mas há uma outra face da verdade, a que designa a expressão "hora da verdade". Entre os corpos, na hora da verdade os semblantes desvanecem, e é o ato que deve responder, ou seja, o acontecimento de corpo ao qual falta "os ares de sexo" que se esperaria disso. "Fiasco, pautado como partitura musical", diz Lacan (1973b/2001, p. 538).

Uma última palavra sobre a medida daquilo que se pode escolher, então. Escolha entre o todo e o nãotodo fálico, mas escolha forçada: entre esses dois lados o falante não tem escolha de não escolher. No que diz respeito à atividade de corpo, "eles se autorizam de si mesmos" quer dizer que é o acontecimento de corpo que decide, em outras palavras, justamente o que o sujeito não escolheu, que se impôs a ele, mesmo em caso de hetero sexualidade, pois ela mesma é sintoma, como Lacan formulou. Eles se autorizam de si mesmos, mas de um si mesmos que eles, os sujeitos, não escolheram. E eis que explica o fato que ninguém se sente fazendo uma escolha em matéria de sexualidade. Vê-se, portanto, o que são os dois muros da coerção do sexual: o da estrutura da linguagem e de discurso que valem para todos, e o outro, bem diferente, do real das contingências que se fixam no um por um, e que presidem ao "há um" [y a de l'Un] do sintoma, o qual faz passar o inconsciente ao real. O trajeto do pai ao pior de 1971 se traduz, em 1975, do pai ao sintoma. E no fundo, a questão é de saber se a psicanálise de hoje vai continuar a fazer o que Lacan diagnosticou em "Televisão", a saber, duplicar "a maldição do sexo" (LACAN, 1973b/2001, p. 530). Ela a duplica quando, na ausência de uma justa avaliação dos dados reais que acabo de mencionar, incumbe os sujeitos daquilo que eles não são responsáveis, pois, diante do real do sintoma, resta-lhes apenas uma escolha — que é bastante significativa, aliás —, a escolha ética de olhá-lo de frente ou não, quiçá de identificar-se com ele.

Termino: o "eles se autorizam de si mesmos", assim entendido, está perfeitamente em consonância com o sentimento de cada um e também com a época; longe de contradizê-los, ele explicita suas razões. Por fim, podemos nos perguntar: como Lacan — que no fundo estava, ainda assim, impregnado de tradição clássica — superou o grilhão das pré-concepções sobre a sexualidade a ponto de chegar à tese "eles se autorizam de si mesmos", a qual redobra a subversão freudiana, por sua vez limitada àquilo que funda o dizer da não relação? É claro que ele não chegou aí pela via dos sentimentos, isto é, dos gostos pessoais, mas graças ao seu afinco para seguir as veias da lógica da linguagem e do discurso, sem os quais ter-lhe-ia sido impossível situar e colocar em destaque o real que aí escapa. Seria ainda preciso não recuar frente a essa junção, e aí está todo o mistério da incalculável escolha ética.

 

Referências

LACAN, Jacques. (1967). O engano do sujeito suposto saber. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.         [ Links ]

__________. (1968). Resumo do Seminário 1966-1967 – A lógica do fantasma. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

__________. (1972). O aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.         [ Links ]

__________. (1973a). Relatório do Seminário 1971-1972– ...ou pior. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

__________. (1973b). Televisão. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.         [ Links ]

__________. (1973-1974). Le Séminaire – Livre 21 – Les non-dupes errent, inédito.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: solc@wanadoo.fr

Recebido: 21/12/2014
Aprovado: 21/04/2015

 

 

Tradução: Cícero Oliveira
Revisão da tradução: Dominique Fingermann
* Doutora em Psicologia (Paris VII), AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano — França. Professora de FCCL-Paris. Autora de vários livros, dentre os quais Psicanálise na civilização (Contracapa), O que dizia Lacan das mulheres (Jorge Zahar Editora), O inconsciente a céu aberto na psicose (Jorge Zahar Editora), edição bilíngue do Caderno Stylus 1: O corpo falante, O inconsciente. Que é isso? (AnnaBlume), Lacan, o inconsciente revisitado (Cia de Freud), Declinações da Angústia (Escuta), Seminário de leitura de texto: A angústia, de Jacques Lacan (Escuta) e Lacan, Lecteur de Joyce (PUF, 2015).
1 Texto apresentado nas Jornadas da EPFCL, realizadas em 30 e 31 de novembro de 2014.
2 Jornadas realizadas nos dias 29 e 30 de novembro de 2014 na Maison de la Chimie, em Paris.