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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.30 Rio de Janeiro jun. 2015

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS

 

A insistência do real na sexualidade: diferentes perspectivas da psicanálise e o feminismo

 

The insistence of the real in sexuality

 

 

Maria Luisa de la Oliva*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Colegio de Psicoanálisis de Madrid

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir dos anos 70, Jacques Lacan começa a construir sua concepção da sexuação, que culminará no seminário Mais ainda. Previamente, Lacan constata que há um real que insiste na sexualidade de todo ser falante e que se resume no aforismo "não há relação sexual", "não há proporção sexual". O artigo trata de buscar os pontos de encontro e desencontro entre essa concepção de Lacan e alguns postulados das teorias feministas com relação à sexualidade.

Palavras-chave: Psicanálise, Feminismo, Gênero, Gozo, Diferença, Real.


ABSTRACT

As of the 1970s, Jacques Lacan begins building his conception of sexuation culminating in the Seminar Encore. Previously Lacan notes that there is a Real which insists on the sexuality of every human being, and that it is summarized in the aphorism: "there is no sexual relationship", "there is no sex ratio". The article aims at finding the points of encounter and divergence between Lacan's conception and some tenets of feminist theories related to sexuality.

Keywords: Psychoanalysis, Feminism, Gender, Jouissance, Difference, Real.


 

 

I

Em psicanálise, dizemos que o Um é a insistência, na repetição, daquilo que não pode mudar e sempre chega ao mesmo ponto, pois é da ordem de um impossível. É um zumbido que não cessa. Não cessa de escrever-se. Nesse não cessar de escrever-se, estamos na impossibilidade da escrita de uma razão matemática que dê conta do que entrelaça os sexos. É o famoso aforismo de Lacan de que "não há relação (proporção) sexual". É o limite a que se pode chegar na experiência de uma análise, se levada até o final.

Na realidade, a ordem da linguagem pode ser reduzida a esse Um, como se fosse o Winzip (compressor de arquivos). Toda a ordem da linguagem comprime-se nesse impossível. É porque somos falasseres que estamos cerceados por um lado, mas, por outro, se somos falasseres é também porque existe essa impossibilidade.

Como acede, como advém a linguagem a esse homo sapiens? O que é que finalmente produz o corte entre o animal e o humano? Podemos dizer que é justamente a aparição da linguagem em nossa espécie o que faz com que se produza esse corte que nos separa radicalmente do programa pulsional que rege o mundo animal, sendo lançados em um meio em que há palavras que, se nos permitem relacionar-nos, também fazem com que tropecemos permanentemente com o sentido, enredando-nos com ele, com o gozo, porque esse necessita algum tipo de embreagem para que possa ser outra coisa que um gozo autístico. Então tropeçamos com o desejo, que persegue algo, mas que é empurrado por uma causa que não se pode segurar, não articulável. Um desejo que necessita também a embreagem do fantasma, que é uma ficção de sentido para amortizar as falhas do sujeito e do Outro. Necessita-se uma ficção, um artifício, um pequeno mecanismo de engano para poder suportar o real que encobre.

É dessa abertura que surgem os quatro discursos que escreve Lacan. Todos contemplam uma impossibilidade, a de reunir de maneira totalizadora as produções de um discurso com a verdade que o sustenta e promove. No discurso do analista, o impossível de saturar a verdade com a produção de significantes mestres. Dizemos que a verdade é não toda, pois é impossível enclausurá-la com o sentido, a significação, e, ao mesmo tempo, enquanto lugar, a verdade é também não toda, porque não tem limites que a circundem. Nisso, a verdade é como a mulher (barrada). No lugar da verdade, no discurso do analista, há o saber.

Um saber no lugar da verdade, que promove, que sustenta a posição do analista como agente do discurso. Essa posição não é possível legitimamente sem saber desse impossível que está escrito na parte de baixo do discurso. É saber desse impossível enquanto condição o que faz que seja possível ao analista colocar para trabalhar o sujeito barrado, sujeito do inconsciente, para levá-lo, finalmente, ao limite daquilo que enquanto inconsciente é capaz de produzir. Levá-lo até os confins do Um.

Essa abertura que faz nascer o humano está recoberta em todas as culturas conhecidas por algum tipo de mito e/ou ritual. Abertura da qual brotam perguntas justamente sobre aquilo de não poder haver uma resposta absoluta, como a morte e a sexualidade. A vida e a morte. Eros e Tânatos.

Entre o gozo como empuxo e a castração como corte (parte superior do grafo) move-se o animal falante. Uma das caras do é justamente a do gozo, pois o limite àquilo que se pode dizer e saber impulsiona a que se diga. Na mitologia grega, representava-se pela esfinge, essa espécie de demônio que tinha rosto de mulher, corpo de leão e asas de ave. Um corpo feito de pedaços: meio animal, meio mulher.

 

 

A partir dessa dimensão de hiância do falasser, representada na parte superior do grafo de Subversão do sujeito e dialética do desejo (LACAN, 1960/1998, p. 831), constroem-se estruturalmente todas as respostas possíveis desde diferentes planos: o plano do desejo e o plano das identificações imaginárias. São respostas no nível estrutural, mas diferentes em cada sujeito. Assim, não há um modelo a seguir.

– Como se relaciona um sexo com o Outro? Tomo aqui o Outro sexo como uma alteridade, como Outro. Como se acede ao corpo do Outro? Aqui, temos que contemplar duas dimensões: uma é de caráter a-histórico, e outra, de caráter histórico. Veremos como as teorias de gênero, que tomaram como referência a performatividade, dão um peso determinante aos efeitos de discurso na sexualidade e como, a partir disso, apresentam uma possibilidade subversiva por meio das distintas práticas sexuais.

No que se refere à dimensão histórica, os diferentes discursos deram lugar a produções simbólicas, a códigos de conduta, a uma certa narrativa, com as quais organiza modos e maneiras de relação de um sexo com o Outro. Digamos que o Outro social fabrica semblantes, mas esses não definem o que é um homem ou uma mulher. Não têm um caráter identitário, nem tampouco determinante quanto àquilo que em psicanálise chamamos posição sexuada.

Entre essas produções simbólicas estão a mitologia, a religião, a arte, a literatura, e também as leis que exerceram um biopoder sobre os corpos e sobre a hegemonia de um sexo em relação ao outro.

Dizia que essas produções permitem o uso de certos semblantes para a relação entre os sexos — já que não há outra maneira de fazê-lo que seja sem o semblante, seja a parada masculina ou mascarada feminina — mas o assunto delicado é que, quando se atravessa o umbral do quarto, esses semblantes caem e fica o casal frente a frente, em sua nudez: sem fórmulas que lhes permita encontrar a maneira de que haja uma união que faça desaparecer a diferença sexual, pois essa é da ordem de um Real. O amor tende ao Um, a fazer do dois, um. Mas, o encontro sexual, mesmo mediatizado pelo amor, sempre vai acabar com esse sonho de Eros, vai confrontá-lo com esse impossível.

É aqui, em relação a isso que se goza na cama, que teremos que começar a falar da dimensão a-histórica da sexualidade do humano falante, pois o gozo sexual — o gozo que experimenta o sujeito, mas também o gozo do corpo que se goza —, não é histórico, e aí não entram os efeitos de discurso. Quiçá possamos falar de uma dimensão histórica no fantasma enquanto serve de embreagem para fazer gozar a esse corpo, já que, em sua trama imaginário-simbólica, a cenografia e o texto desse fantasma estão feitos de experiências vividas ou imaginadas na infância. Mas, nesse cenário do fantasma, também há um furo, uma dimensão de real que escapa ao histórico, que é um resto daquilo que não é simbolizável e faz com que o corpo goze parcialmente em torno das bordas de seus furos. Esse é o polimorfismo da sexualidade. De modo que é um corpo que se goza, aí não está o sujeito, está a pulsão acéfala. Também podemos dizer que há algo na fala que se goza, que não é da ordem do gozo do sentido e que é a parte que escapa ao sentido. É o que Lacan chama alíngua. Um corpo que se enlaça a outro corpo para um gozar-se do corpo e um gozar-se da língua imbricados. Esse gozo não é o gozo do fantasma.

Pode-se falar de uma dimensão histórico-temporal da pulsão? Poder-se-ia considerar, levando em conta a contingência de acontecimentos vividos pelo sujeito em determinado momento, que fazem com que uma pulsão tenha predominância sobre outra, ou que haja certas fixações passionais.

Quanto à linguagem, goza-se da maneira como essa nos foi infundida pelo Outro, como diz Lacan em sua Conferência de Genebra sobre o sintoma. Há um modo de falar que inclui o fraseado, o ritmo, a respiração, que passam pelo ouvido e que compromete o corpo. Então, a maneira pela qual o sujeito foi falado pelo Outro produz efeitos de ressonância em nosso corpo. A pulsão como "eco no corpo de que há um dizer" conecta com esses efeitos de ressonância. Assim, em relação ao Outro, é preciso diferenciar o que é a mensagem do que é a melodia, a canção dos pais.

As palavras ressoam no corpo e isso produz efeitos: por um lado, esburacam esse corpo, criando a caixa de ressonância que não é nada mais que um vazio que permitirá, mediante suas bordas, que a palavra continue tendo efeitos de ressonância no corpo. Relembremos a definição que há pouco dei sobre a pulsão em Lacan: "eco no corpo de um dizer", em que o dizer é justamente aquilo que não se alcança com a palavra, que está entre as palavras; é o que impulsiona a que se diga na medida em que há uma impossibilidade de alcançar, de capturar com as palavras tudo o que se quer dizer. Entre ambas as coisas, há um grande gradiente, uma diferença. Sempre haverá uma possibilidade de equívoco. Esse dizer tem efeitos no corpo. Ou seja, essa impossibilidade ressoa no corpo, produzindo um efeito de eco, que é a pulsão. Sem esse dizer, a pulsão sofrerá avatares curiosos. Uma amiga e colega, que está no final de sua análise e que padeceu de muitos sintomas em seu corpo, comentava como as palavras de sua mãe sempre haviam ressoado muito nela e como, agora, já não ressoam nada. Suas palavras já não lhe dizem nada e, coincidindo com isso, seus sintomas corporais estavam desaparecendo.

Ao mesmo tempo, o lugar do Outro de onde saem as palavras, é um lugar furado por essa mesma impossibilidade. É justamente por esse furo que flui o dizer. Assim, tanto no lugar do Outro quanto no corpo — que Lacan os acabará fazendo equivalentes — há furos, e é nesse furo onde algo ressoa.

 

II

Entro agora no debate entre a psicanálise e as teorias de gênero sobre o que contribuem quanto às identidades sexuais e ao valor de troca da realidade que atribui à sexualidade.

A partir dos anos 80, os posicionamentos feministas apontam a eliminação da diferença sexual. O significante diferença sexual é substituído pelo de gênero, que é uma categoria um tanto neutra. Segundo Joan Copjec, isso produziu "sujeitos de papel, sem viço, sem corpos, sem órgãos sexuais no sentido psicanalítico" (CEVASCO; COPJEC; ZUPANCIC, 2013). É a dimensão sexual o que se abandona, mesmo que se fale de práticas sexuais. Deixa-se de questionar o que é o sexo, pergunta crucial como eu dizia no início deste meu trabalho.

Para as teorias de gênero, dentre as quais está a teoria queer, a diferença sexual é problemática, porque se considera hetero-sexista. Homem e mulher são considerados categorias, e supõe-se uma relação necessária e obrigatória entre eles. Recusam a classificação dos indivíduos naquilo que consideram categorias universais fixas: homem, mulher, homossexual, travestismo, transexualidade, sempre e quando se considera que estão sujeitas a restrições por uma cultura.

O conceito de performatividade foi cunhado por Austin e, posteriormente, reelaborado por Derrida. Ele fala de atos de fala, para indicar que neles há não só uma vontade individual, mas também são ações repetidas de atos reconhecidos de maneira convencional. A filósofa e feminista Judith Butler parte desses trabalhos de Austin e Derrida, aplicando-os aos estudos de gênero e fazendo uma revisão do próprio conceito de gênero:

O corpo não é uma realidade material fática ou idêntica a si mesma; é uma materialidade carregada de significado (...) e o modo de manter esse significado é fundamentalmente dramático. Quando digo dramático refiro-me a que o corpo não é simplesmente matéria, senão uma contínua e incessante materialização de possibilidades. Não somos simplesmente um corpo, mas nos fazemos nosso próprio corpo e, de fato, fazemos nosso próprio corpo de modo distinto de como fazem seus corpos seus contemporâneos e de como o fizeram seus predecessores e de como o farão seus sucessores (BUTLER, 2004).

A ideia é que o gênero possa deixar de ser entendido como algo que emana de uma suposta essência natural, universal e estável (homem ou mulher), e possa começar a ser entendido como algo construído, como algo que resulta do que fazemos, de como nos posicionamos no mundo e do efeito que os entornos sociais e culturais têm sobre nós. Nesse sentido, pode-se dizer que tanto "gênero" quanto "sexo" são conceitos performativos, isto é, são realidades que se produzem por meio do comportamento e do discurso. Quando um bebê nasce e se diz "é uma menina", não se está constatando um fato natural e essencial, e sim atribuindo-lhe um papel cultural que faz com que, a partir desse momento, esse ser que acaba de nascer seja considerado uma "menina" (BUTLER, 2002; DERRIDA, 1989).

Desse modo, o que Butler acaba sugerindo é que, se aquilo que gera realidades como o gênero são o comportamento e as ações, bastaria apropriar-se desse dito comportamento, adotar certas atitudes autorizadas socialmente, para lograr ser o que cada um deseja ser em cada momento? A afirmação de que "fazemos nosso próprio corpo" não sintoniza com o discurso do self made man capitalista, com a pretensão de fazer-se mestre do próprio corpo, empresário e gestor das inversões de gozo? É, por acaso, o sexo um conceito ou seria um Real?

Nomear uma menina como tal ao nascer e dar-lhe um nome é marcar esse corpo Real com um nome próprio. Não se pode negar a dimensão de real que esse corpo tem, o que não é o mesmo que dizer que a "anatomia é o destino". É claro que na medida em que "menina" é um significante já entra na cadeia discursiva e imediatamente porta uma série de significados associados a ele, o que não subtrai a dimensão de real desse corpo. Tampouco a cadeia discursiva dará a essência do que é enquanto menina.

Ligar a ideia de gênero a como nos posicionamos no mundo é, a meu ver, confundir a dimensão de sujeito com a de ser sexuado. Na psicanálise, falamos de posição sexuada em relação ao modo de gozar. Tem-se a maneira macho, em que todo o gozo passa pelo falo, e a maneira fêmea, na qual não todo gozo passa pelo falo, o que não quer dizer, contudo, que não passa pelo falo, e que deixa lugar a um suplemento de gozo. Essa diferente posição não é algo escolhido por vontade, não é algo consciente.

Judith Butler lê Lacan. Sua ideia de sujeito é, em parte, lacaniana, pois fala do sujeito da linguagem, e, em parte, aristotélica, como ela mesma diz, porque considera que o sujeito é político já que é um ser linguístico (zoon logon ekhon). Porém, no que se refere à constituição do sujeito, Butler contempla apenas a alienação, e não a separação. Sob meu ponto de vista, esse é um ponto fraco de sua teorização, pois considera o sujeito como totalmente à mercê dos efeitos de discurso que, segundo ela, são efeitos de censura (BUTLER, 2004b). Para a autora, a censura não só é privativa como também produtiva, porque produz "sujeitos de acordo com normas implícitas e explícitas". "Devir sujeito significa estar sujeito a um conjunto de normas explícitas que regulam o tipo de fala que será interpretado como a fala de um sujeito." Sujeito alienado ao discurso do Outro. Não há espaço então para a dissidência do sintoma, que é a resposta do sujeito diante daquilo que não encaixa de suas pulsões no Outro.

O sujeito não é um sujeito somente sob o influxo do Outro do discurso, com seus efeitos de censura, entre outros. É também um sujeito separado do Outro. O sintoma de que parte a psicanálise tem uma face de alienação significante, mas também outra face de separação, que tem a ver justamente com a dimensão pulsional. Isto é, de algum modo podemos dizer que o sujeito do sintoma é subversivo, pois produz mudanças subjetivas e, ao mesmo tempo, objeta algo do simbólico. De fato, a histérica é quem mais mostra, com seus sintomas, aquilo falido do poder do mestre ou, o que dá no mesmo, denuncia sua castração. Creio que essa dimensão do sintoma é obliterada na teoria queer. A sexualidade é pensada unicamente como efeito coercitivo do social sobre o sujeito.

Butler busca responder a pergunta sobre qual é a relação entre corpo e discurso por meio de sua teoria da performatividade: o corpo é uma espécie de materialidade que consiste em uma série de normas corporais, e o que faz que seja norma é sua reiteração, de modo que justamente por isso é possível que haja ressignificações ou alterações. Isso é interessante, mas o problema é que a sexualidade fica reduzida a algo da ordem imaginária, negando sua dimensão de Real.

Contudo, parece-me correto o postulado queer de não confundir o gênero com o sexo. Em relação a isso, a figura da drag é, para Butler, paradigmática, pois oferece uma promessa crítica que não tem a ver com a proliferação de gêneros, e sim "com a exteriorização do fracasso dos regimes heterossexuais em regulamentar ou conter completamente os próprios ideais". A drag não se opõe à heterossexualidade. É uma "alegoria" crítica aos atributos que performativamente aplicam-se à heterossexualidade. A drag mostra na cena que nem as identificações nem os semblantes bastam para dizer o que é um homem ou uma mulher. Há aí um nãotodo, uma falha. Falha que pode ter consequências políticas para as teorias queer.

Quanto ao que chamam heteronormatividade, estabelecem que essa, de modo forçado, faz com que os sujeitos repitam e imitem os fantasmas e os significados que foram sendo construídos em torno do que é ser homem ou mulher, de modo que não haveria escolha do sujeito em função de uma obrigatoriedade em relação à heterossexualidade. Ou seja, não se escolhe livremente a encenação de gênero heterossexual.

A identidade sexual tem, para Butler, um caráter de imitação. Há papéis que de maneira teatral cada sexo assume mediante a imitação. Ou seja, papéis que foram criados com anterioridade e que carregam determinada significação. A autora chama isso de performance do gênero. Isso não ocorre apenas com a performatividade heterossexual, pois também há o trejeito dos gays e transexuais, e as lésbicas "caminhoneiras" (masculinas) ou femininas, na medida em que imitam e repetem condutas com determinado significado fechado. O gênero é efeito de um sistema normativo, coercitivo que determina quais são os atributos próprios a cada sexo.

Butler questiona o próprio conceito de identidade na medida em que é instrumento de regimes reguladores e, portanto, exercem controle sobre o erotismo, certa normatividade. A teoria queer, não podemos esquecer, é uma teoria política.

Para mim, constitui um problema o salto que se dá de um cenário normativo a um cenário privado onde se goza, pois o Outro não ocupa todo o espaço da subjetividade porque, entre outras coisas, é um Outro em falta.

Isto é, o gênero (masculino ou feminino) que se tenha não diz da posição masculina e feminina, mesmo que a teoria queer não fale nesses termos. Sexualidade e identificação não são exatamente o mesmo. A identificação não cobre totalmente a sexualidade, pois há nela um componente que escapa ou que não entra na identificação, o objeto a, a dimensão a-histórica de que falava no início. Precisamente porque falta é que nossa sexualidade não é animal. Tampouco as práticas sexuais, quaisquer que sejam, dizem o que é um homem ou uma mulher.

Falar de homossexualidade gay ou lésbica não diz nada do sujeito quanto à sua identidade, mesmo que haja sujeitos que se apresentem "sou homossexual", como há outros que dizem "sou toxicômano". Para um analista essa afirmação não diz nada sobre o sujeito sintomático, pois essa falsa identidade com a qual se nomeia é um álibi para tampar o que encobre, a falta a ser, a falta em gozar e o impossível do não há relação sexual. Em todo caso, pode dizer do sexo de seu objeto eleito, mas nada mais.

Butler propõe que nos convertemos em homens e mulheres por meio da repetição de atos que dependem de convenções sociais. A definição de queer rejeita as classificações de gênero e práticas sexuais. Queer refere-se de modo pejorativo a bicha, gay, homossexual; estranho, esquisito, torto; mas também desestabilizar, importunar. Isso tem uma conotação política de desestabilizar as normas que podem parecer fixas.

Estou de acordo com Butler que não há escolha voluntária ou egoica de gênero, mas por outros motivos. Trata-se de uma escolha que não é uma escolha quanto ao sexo do objeto eleito, já que essa virá por acréscimo, mas é uma escolha de gozo, em que não é que o sujeito escolha, mas que o próprio sujeito vê-se implicado nessa escolha.

Os primeiros encontros com o gozo marcam o sujeito e sempre têm para ele um caráter de hétero. Encontros que são da ordem da contingência. Logo, não são nem necessários, nem obrigatórios, nem prescritos. Logo, estão por fora da coerção do Outro do discurso que ordena. É também da ordem da contingência o encontro com a castração do Outro. Assim, pode-se falar em todo caso de uma determinação da contingência. Somos produtos da contingência. Ao sujeito não lhe resta alternativa a não ser ver como fazer com isso que foi uma marca em seu ser de gozo e que goza pese a ele, sem ele. Freud já sabia que a oposição ou objeção a isso que leva a uma direção paga-se com o preço do sintoma.

Lacan, a partir dos anos 70, precisamente para se separar do lugar de um suposto discurso patriarcal no qual as feministas o estavam situando, e também separando-se da perspectiva freudiana, indo mais além do pai enquanto aquilo que faz norma, começou a elaborar sua teoria sexual, na qual não fala de homens e mulheres, senão de maneiras de gozar ao estilo macho ou fêmea, tenha-se o corpo que se tenha. Para Lacan, homem e mulher são significantes. Isso não é a diferença anatômica a que Freud se referia, mas tampouco pode deixá-la de lado, pois é uma contingência nascer com determinado sexo. O corpo não é todo, mas fará, por exemplo, que nos deem um nome de mulher ou de homem e que nos tratem de uma maneira ou de outra.

Lacan estabelece que o pensamento é um enviscamento com o imaginário. Diz que se o homem não tivesse corpo, não só não pensaria como também não estaria profundamente capturado pela imagem desse corpo. Ou seja, há uma cola, um enodamento, poderíamos dizer, entre o pensamento e o corpo. Há uma captura pela imagem do corpo. Lacan nesses anos traduz o registro do imaginário ao corpo. O homem "corpo-reifica seu mundo, o faz à imagem de seu corpo, e não tem a menor ideia do que sucede nesse corpo" (LACAN, 1975). Ademais, acrescenta que esse corpo vai adquirir seu valor pela via do olhar e que a maioria daquilo que pensa o homem se arraiga aí.

Então, temos um enodamento entre o pensamento e o corpo, e, ao mesmo tempo, esse corpo necessita o olhar para adquirir peso libidinal. Faz desse corpo um corpo desejante, algo diferente de um corpo organismo. É a libido que se transfere no olhar que faz com que se fixe o S1 nomeando meu corpo como um, validando que essa imagem que o espelho me devolve, efetivamente, é o que será meu corpo. Isto é, para a constituição do corpo faz-se necessária a intervenção do Outro e, concomitantemente, certa predisposição para aceitar essa aspiração do Outro, como a chama Colette Soler em "De un trauma al Otro". Mas também diz Lacan que "o homem pensa com a ajuda das palavras, e é nesse encontro, entre essas palavras e seu corpo, que algo se esboça" (LACAN, 1975).

Outra das coisas que a teoria queer questiona é que as práticas sexuais não dizem do ser que as pratica, ou seja, não confunde prática com identidade sexual. Segundo a feminista Beatriz Preciado, do ponto de vista queer, não tem sentido falar de homossexualidade ou de homossexuais como realidades objetivas ou posições estruturais estáveis. Não haveria por que praticar sempre o mesmo tipo de sexualidade, pois haveria uma decisão de adotar algumas práticas ou outras em função de lutas estratégicas, interesses, contextos históricos e políticos. Isso é o que Luis Izcovich chama gozar de maneira semblante.

De fato, não há nenhuma classificação diagnóstica das diferentes práticas sexuais. Até aí há conformidade com a psicanálise, pois as estruturas não se estabelecem em função da maneira de gozar, mas em função da resposta do sujeito à castração. Quanto às práticas sexuais, a norma que as rege não é a norma coercitiva hétero, mas a regência do gozo ao modo masculino ou feminino, que se serve do fantasma para poder gozar, e esse é sempre igual, mesmo que as práticas sexuais variem. Variar de prática sexual é vestir o mesmo santo com outro vestido. No que se refere à lei, é sempre a mesma: a lei da castração que torna impossível alcançar o Outro, o Outro desse corpo com o qual eu me abraço, seja esse corpo do mesmo sexo ou não.

Com a análise, a maneira de gozar muda? Sim, mas não por que a prática sexual mude. Essa poderá ou não mudar, mas não será a causa da mudança, e sim a consequência.

Uma análise levada a seu fim permite atravessar o fantasma, o que quer dizer ter ido longe o suficiente para constatar e verificar que o objeto de que se serve o fantasma é um tampão ao real. Um curinga. Saber disso e tomar posição diante disso, faz que salte como tampão e que o sujeito confronte-se com os três impossíveis: não há Outro do Outro, não há metalinguagem e não há relação sexual. Impossível do sentido, a significação e o sexo. Isso implica uma aproximação ao fato de que o falo não diz tudo do sexo. O homem poderá gozar de maneira mais tranquila porque deixará de estar tão inclinado a obter com o falo a resposta a seu ser de homem, admitindo que não é senão um semblante, o qual lhe permite uma aproximação ao hétero do Outro sexo. Além disso, constata que o que ele possui como órgão não é o falo, mas o que, às vezes, faz-se de substituto. O falo está sempre fora, como signo daquilo que sempre escapa da linguagem e à linguagem, quando se trata de capturar a coisa em si, o Real, e isso como universal que rege uns e outros.

Quanto à mulher, descobrirá que o abandono de sua querela fálica, seja pela via da reinvindicação fálica de uma justiça distributiva dos sexos, seja pela via da negação da diferença entre os sexos, o abandono de sua pergunta sobre o que é ser uma mulher — como se houvesse uma essência a ser descoberta que lhe desse uma resposta definitiva —, o desprender-se da esperança e da crença de que a solução está no falo e a aceitação de que nela há algo do gozo que a desdobre em si mesma. Tudo isso pode permitir-lhe um acesso diferente à sua sexualidade, mais livre, menos sobrecarregada do falo.

 

Referências

BUTLER, Judith (2002). Cuerpos que importan. Barcelona: Paidós, 2002.         [ Links ]

BUTLER, Judith (2004a). "Performative acts and gender constitution" In: BIAL, Henry (ed.) The Performance Studies Reader, Routledge, Nueva York (Disponível em: <http://granerbcn.cat/glosario-06-performatividad-ii-segunjacques-derrida-y-judith-butler>, Acesso em 27/04/2015).         [ Links ]

BUTLER, Judith (2004b). Lenguaje, poder e identidad. Madrid: Síntesis, 2004.         [ Links ]

CEVASCO, Rithée; COPJEC, Joan; ZUPANCIC, Alenka (2013). Ser para el sexo: Dialogo entre filosofia y psicoanálisis. Barcelona: Ediciones S&P, 2013.         [ Links ]

DERRIDA, Jacques (1989). "Firma, acontecimiento, contexto" In: Márgenes de la filosofia. Madrid: Cátedra, 1989.         [ Links ]

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LACAN, Jacques (1970-1971). El seminário — Libro 18 — De un discurso que no fuera del semblante. Buenos Aires: Ed. Paidós, 2009.

LACAN, Jacques (1972-1973). El seminário — Libro 20 — Aún. Buenos Aires: Ed. Paidós, 1981.

LACAN, Jacques (1975). "Conferencia de Ginebra sobre el síntoma" In: Intervenciones y textos, 2. Buenos Aires: Ed. Manantial, 1988.         [ Links ]

SOLER, Colette (2007). De un trauma al Otro. Medellín: Asociación Foro del Campo Lacaniano de Medellín, 2007.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: oliva2@cop.es

Recebido: 19/12/2014
Aprovado: 21/04/2015

 

 

Tradução: Maria Claudia Formigoni
* Psicóloga especialista em Psicologia Clínica. Psicanalista, AME da EPFCL. Docente do Colegio de Psicoanálisis de Madrid e Membro do FPM.