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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.30 Rio de Janeiro jun. 2015

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS

 

Transexualidade e Sexuação

 

Transexuality and the formulae of sexuation

 

 

Elisabeth da Rocha Miranda*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Internacional dos Fóruns (AME) Fórum-Rio de Janeiro
Colegiado de Ensino de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ
Pontifíca Universidade Católica-RJ
Conselho Editorial da Revista Marraio
Conselho Editorial da Revista Affecctio Societatis

 

 


RESUMO

Neste trabalho discutimos a posição do transexual em contraponto com o discurso capitalista e com a ciência. No texto, questionamos a posição do transexual antes da possibilidade de mudança do corpo, promovida pelas novas técnicas cirúrgicas e perguntamos: em um tempo anterior a essa oferta cirúrgica não havia sujeitos transexuais? Como disse Lacan, a oferta cria a demanda, e o resultado dessas intervenções por um lado não livra o sujeito neurótico da castração que é simbólica e marca uma inadequação estrutural entre corpo e sexo social, e por outro também não opera a castração para um sujeito psicótico ainda que em alguns casos possa funcionar como suplência.

Palavras-chave: Transexualidade, Discurso capitalista, Ciência castração.


ABSTRACT

In this work we discuss the transsexual's position as opposed to the capitalist discourse and science. We question the transsexual's position before the possibility of body change made possible by new surgical techniques and ask: in a time prior to this surgical offer, were not there transsexual subjects? As stated by Lacan, the offer creates the demand and the outcome of these interventions, on the one hand, do not free the neurotic subject of castration, which is symbolic, and marks a structural mismatch between body and social gender and, on the other hand, do not operate the castration for a psychotic subject either, although in some instances it may function as a replacement.

Keywords: Transexuality, Capitalist discourse, Science castration.


 

 

Fui surpreendida em minha prática clínica por uma jovem de 19 anos que veio me ver com uma demanda precisa: queria um atestado psicológico que autorizasse a realização da tão sonhada cirurgia de ablação dos seios. Diz precisar de alguém que a escute e entenda que ela não é uma mulher. "Estou aqui porque preciso de uma indicação cirúrgica e me disseram que você poderia me dar. Sabe o que é ser um homem e ser obrigado a viver em um corpo de mulher? Quero me livrar dos seios para ter um pouco de dignidade, onde já se viu um homem com seios? Isso é monstruoso." Sabemos que a anatomia não identifica os sujeitos como homem ou mulher, por isso mesmo a inquietação quanto ao ser sexuado é a regra para todos. Tal inquietação pode levar os homens a se verem obrigados a fazer a mostração para garantirem sua posição de macho enquanto que as mulheres recorrem à mascarada.

Mas não só, essa inquietação quanto ao ser sexuado também passa pelo travestismo chegando ao extremo na transexualidade.

A afirmação de Rafaela é de uma certeza cristalina, no entanto, sabemos que a clínica com sujeitos neuróticos prima justo por uma certa vacilação quanto à posição sexuada. O neurótico não tem uma certeza a respeito de sua identificação sexual. Não quero dizer que ele vacile diante da pergunta do Outro; homem ou mulher, mas sim que o sujeito se apresenta com inquietações quanto ao que é ser um homem e uma mulher. Frequentemente ouvimos queixas como: sou mulher, mas não sei o que fazer com isso. O que se espera de uma mulher? O que é ser um verdadeiro homem? Estarei à altura de ser um verdadeiro homem? Questões legítimas na medida em que a significação fálica nos dá apenas um parecer ser homem ou mulher. Trata-se de semblante, somos semblantes e assim velamos o real do sexo, real do gozo.

A certeza de Rafaela de que era um homem, me fez de início pensar que pudesse se tratar de um sujeito psicótico. A psicose é uma estrutura que comparece com frequência nos transexuais, onde se observa o empuxo à mulher preconizado por Lacan. Segundo alguns autores, entre eles Catherine Millot, na estrutura psicótica a transexualidade pode funcionar como suplência à foraclusão do significante Nome-do-Pai mantendo a estabilidade do sujeito. É o que diz um transexual que trabalhava como cabeleireira: "Quando adolescente meus pais adotivos me internaram duas vezes; depois que botei seios e me assumi como sou, uma mulher, me acalmei. Muitas amigas operadas surtaram e isso me dá medo, não vou me arriscar, piro e perco o bofe". Os sujeitos psicóticos que apresentam o delírio da transexualidade podem se beneficiar da cirurgia de mudança de sexo por encontrar aí uma estabilização como no caso da cabeleireira, mas isso não é uma regra, pois a cirurgia pode também desencadear um surto psicótico. Vale lembrar que a transexualidade não é um fenômeno elementar da psicose, e pode aparecer em qualquer estrutura.

No decorrer das duas entrevistas, Rafaela me pareceu um sujeito histérico. Digo que me pareceu porque não se tratava de um sujeito em análise, mas como a estrutura edípica estava presente, a certeza de ser um homem em um corpo de mulher era, no caso, assegurada pela fantasia neurótica. Nessas duas entrevistas pude antever algo da fantasia desse sujeito que apontava para "ser para sua parceira o homem que o pai não soube ser para a mãe". Além da mostração dirigida ao pai, a rivalidade com ele e com o irmão também apontavam para uma neurose.

A pergunta histérica sou homem ou sou mulher? não passa pela inadequação entre gênero e corpo. O corpo histérico é o lugar onde se representa a vida sexual do sujeito denunciando seu sintoma. As histéricas bancam os homens e vice-versa sem que haja a necessidade de mudanças no sexo biológico. Seria então Rafaela um sujeito neurótico que apresenta o sintoma transexual? Rafael, como esse sujeito se autonomeia, relata o terrível sofrimento que o acompanha desde a infância: "Eu sempre fui um menino com dificuldades de ser aceito nos grupos. Adoro futebol, mas nunca consegui pertencer a um time ou ter uma turma, ou não me chamavam ou me excluíam por eu não ter uma aparência de menino". Sua tragédia — como ele se refere ao fato de ter nascido em um corpo errado — chegou ao insuportável na adolescência. "Eu não sofria tanto por não namorar as meninas, porque muitos também não namoravam; o pior era a vergonha de menstruar, de ter seios que escondia com todas as minhas forças. Nunca mais fui à praia, piscina. Vivia me escondendo de mim mesmo porque meu corpo me causava raiva e horror. Tomei hormônios e me livrei dos sangramentos e agora quero me livrar desses peitos." Rafaela, Rafael ou Rafa, como lhe chamam, diz não necessitar de uma cirurgia transformadora da genitália, não lhe faz falta um pênis e à sua parceira também não.

O termo transexual foi introduzido por Harry Benjamin (1885-1986)1 para designar uma síndrome particular definida pelo psiquiatra americano Robert Stoller (1924-1981). Para o autor é transexual uma pessoa anatomicamente normal que tem o sentimento de pertencer ao sexo oposto e deseja mudar de sexo, porém ciente de seu sexo biológico, sem a manifestação de distúrbios delirantes.

Rafaela tem tal convicção do erro da natureza do qual foi vítima, que seu único interesse é a cirurgia, sua técnica, seus resultados e principalmente como consegui-la. Sua demanda não é de análise, "sente-se bem", só quer um laudo para poder retirar os seios. Percebendo que eu não poderia ajudá-la em seu objetivo, não voltou mais ao consultório.

Os avanços da medicina e da técnica cirúrgica e os estudos endocrinológicos nos permitem perguntar: antes desses avanços não havia transexuais? Eles conseguiam obter orgasmo sexual com a genitália com a qual nasceram? O ódio ao órgão viril, o pênis, e a existência deste impediam que esses sujeitos para além da forma de seus corpos se sentissem mulheres? A presença de seios impedia que as biologicamente mulheres se sentissem homens? O que é ser uma mulher? Ou um homem? Até que ponto o discurso capitalista, contaminando a ciência, promete um corpo que possa se adequar à posição sexuada do sujeito, se é que tal adequação é possível? A oferta cria a demanda, e o discurso capitalista é voraz em sua fúria de promover a ciência que a cada ano faz surgirem novas técnicas para mais e mais cirurgias, oferecendo à modernidade um circo de horrores, cruel ao prometer um ideal impossível. Nessa direção lembramos que as cirurgias plásticas, tão bem-vindas quando se trata de reparação e até mesmo de estética, ultrapassam seus limites realizando — já que a oferta cria a demanda — um rejuvenescimento sem fim, propondo a eternização da bela forma. Atualmente, até a genitália feminina é alvo de cirurgias estéticas, pois é possível sempre e sempre deixá-la com mais turgor e mais... não se sabe o quê. Assim, o recurso às cirurgias também no caso do transexualismo deve ser abraçado dentro dos limites do discurso que barra o gozo do tudo pode. O discurso do capitalismo que rege o tudo é possível é o discurso que tenta anular a barreira da castração impondo o imperativo do gozo que se realiza como imperativo de consumo dos objetos que se produzem no mercado. As cirurgias sem barra são consumidas e consomem os sujeitos que passam a achar que com a mudança do sexo anatômico se tornarão homens ou mulheres "como se deve ser", quando sabemos com Freud que a inadequação é de estrutura. Se a clínica com transexuais aponta para a não adequação radical entre sexo e gênero, paradoxalmente o empuxo às cirurgias faz da transexualidade a via para a amarração do sexo com o gênero, ou seja, da anatomia masculino X feminino com a construção social do masculino X feminino de acordo com as normas e ideias de sociedade.

Considerando-se que o corpo é esculpido pela linguagem e habitado por um sujeito do inconsciente, quando se diz eu tenho um corpo, diz-se porque a linguagem é quem dá esse corpo. É um corpo marcado, erogenizado pelo outro que transmite a linguagem. O filhote humano nasce em uma prematuração neurológica que tem seus efeitos no a posteriori, e o símbolo, como ordem da linguagem antecede a ela, logo a primeira subjetivação do ser humano dá-se pelo viés da imagem do corpo. O corpo apresenta-se como carne a ser significantizada pelo Outro da linguagem, para se tornar um corpo deserto de gozo, um corpo enquanto perda. A partir daí, o real existe fora: o simbólico — lugar do Outro, do tesouro de significantes e da falta — também está aí a priori; é no imaginário, a partir do simbólico e do real, que o sujeito se vê, por uma primeira vez, como um esboço do Eu.

Lacan, em 1972, diz: "Desde o nascimento existe uma diferença inata e muito natural entre o menino e a menina... Essa pequena diferença corresponde ao que há de real no fato de que na espécie que se autodenomina homo sapiens os sexos parecem dividir-se em dois números mais ou menos iguais de indivíduos... Esses indivíduos se distinguem bem mais cedo do que se espera. No entanto, é preciso reconhecer que somos nós que os distinguimos, não são eles que se distinguem" (LACAN, 1971-1972, pp. 15-16). O filho do homem é recebido com dizeres tais como: "Ah! É um verdadeiro homenzinho, logo se vê que é completamente diferente da menina" (Ibidem, p. 16). Essa distinção foge à lógica, uma vez que para se reconhecerem como seres falantes é preciso rejeitar essa distinção, e isso se dá por meio das identificações e ainda é só porque o ser é falante que existe o complexo de castração. O tipo característico do homem e da mulher se constituirá a partir de algo completamente diferente, a saber, da consequência, do preço que terá adquirido, no desenrolar da vida, a pequena diferença (Ibidem, p. 16). Desenrolar que se dá com ou sem a vivência edípica.

Essa pequena diferença é justo o que é recusado ou reivindicado na transexualidade, e para resolver o problema esses sujeitos recorrem às cirurgias e à endocrinologia. Trágico equívoco na medida em que da pequena diferença o que importa são as consequências dela, ou seja, as identificações, as provas, o "experienciar", o viver a experiência desta pequena diferença. A questão não é o transexualismo, mas a forma de abordá-lo pela via cirúrgica. Definir sexo e gênero ou adequar um ao outro não acrescenta nada a respeito das modalidades de gozo, do que se faz na cama, e nem de uma certeza de se estar na posição feminina ou masculina; no campo da "identificação sexual" o que domina é a vacilação, a pergunta.

Nesse ponto, retomo ao que Lacan em seu seminário "... ou pire..." chama de "erro comum". Lacan diz que "[...] para aceder ao outro sexo é necessário pagar o preço, o da pequena diferença, que passa enganosamente para o Real, por intermédio do órgão, justamente no que ele deixa de ser tomado como tal, e, ao mesmo tempo, revela o que significa ser órgão. Um órgão só é instrumento por meio disso em que todo instrumento se baseia: é que ele é um significante. É como significante que o transexual não o quer mais, e não como órgão. No que ele padece de um erro, que é justamente o erro comum. A paixão do transexual é a loucura de querer livrar-se desse erro, o erro comum que não vê que o significante é o gozo e que o falo é apenas o significado. Existe apenas um erro, que é querer forçar pela cirurgia o discurso sexual, que na medida em que é impossível, é a passagem pelo real" (Ibidem, p. 17).

Erro do discurso comum, do discurso dominante sobre a sexualidade que confunde o órgão com a função. O falo é o significante que dá a significação, mas o gozo é da ordem da letra, da marca que comporta o real sexual.

Os ditos tratamentos pela via de cirurgias e hormônios falam de uma certa onipotência médica que pensa poder adequar o corpo ao gênero e corrigir um erro da natureza. Precisamente no campo da sexualidade, onde toda determinação é essencialmente desnaturalizada, lembremos Freud em 1905 em seus "Três ensaios sobre a sexualidade". Pertencer a um sexo é uma questão significante. Se não há o significante que represente a mulher no inconsciente, tampouco há o significante que represente o homem, há um só operador que permite a partir do inconsciente dar conta da diferença sexual e esse operador é o falo.

Consideremos três propostas de elaboração na teoria psicanalítica da diferença entre os sexos: a primeira proposta é de Freud, quando marca a diferença entre o ter e não ter — castrado/não castrado; a segunda é a diferença entre o ter e o ser, postulada por Lacan nos anos 1958-1960; e a terceira é a diferença que Lacan introduz com a lógica de um gozo todo e do não-todo fálico. Se a realidade do inconsciente é a realidade sexual, nem toda realidade sexual passa pelo significante. Assim, em 1958 Lacan sustenta que se todo analisável é sexual, nem todo sexual é analisável; quer dizer, há um real da sexualidade que não passa pelo simbólico, que é traumático e permanece no registro do real escapando tanto à questão de gênero como de sexo, mas que, no entanto, é marcado pelo gozo no real do corpo/carne e que independentemente da forma física, determina uma forma de gozo.

Lacan propõe o campo do gozo e emprega o termo sexuação, colhido da biologia, para acentuar a dimensão de processo de tal função sexual. A sexuação para Lacan é a especificidade das relações do sujeito com o gozo.

Os transexuais cuja estrutura é psicótica, onde há a foraclusão do significante nome-do-pai, estariam fora da partilha dos sexos. Na neurose a certeza de ser homem ou mulher é assegurada pela fantasia, e o sujeito transexual ou não, estará ou do lado esquerdo das fórmulas da sexuação, lado de um gozo fálico, masculino; ou do lado direito não-todo fálico, feminino. Logo, não há a possibilidade de um terceiro sexo como quer a teoria Queer. Essas posições não dizem respeito ao gênero, mas à posição sexuada de um sujeito, posição de gozo. Sendo assim, nada impede que um sujeito do sexo anatômico masculino, de gênero igualmente masculino, experimente um gozo feminino e se coloque na posição feminina. Por que, então, a questão transexual de corpo trocado, se o acesso às posições feminina e masculina é aberto a todos e independente da forma anatômica? Pergunta que permanece em aberto e que a meu ver deve ser respondida no singular de cada caso, porque não existe a categoria transexual. A transexualidade pode ser um fenômeno na psicose, mas também um sintoma quando estamos na neurose. Para todo ser de fala a sexualidade é desnaturalizada e tem como consequência o mal-estar e uma certa inadequação; e quando ela é radical, como no caso da transexualidade, é preciso ouvir o sujeito e não apenas acatar o fenômeno ou sintoma para resolvê-lo cirurgicamente.

As fórmulas da sexuação são as fórmulas das identificações sexuais. Em tempos atuais há uma exacerbação do trans que se comprova com a teoria Queer, entre outras. Esses movimentos propõem uma concepção sexual que faz da relação gênero/sexo algo que se pode mudar como se muda de roupa. Na origem dessas teorias estaria uma oposição à norma heterossexual predominante e à dominação masculina? A norma hétero e a dominação masculina sempre se sentiram ameaçadas pelo feminino, pelo que escapa à norma fálica.

Outro ponto importante a ser considerado antes de se partir para a cirurgia é o horror ao pênis, que alguns sujeitos transexuais psicóticos e neuróticos revelam e que é, na verdade, horror à ereção, forma de gozar masculina, presentificação do desejo no macho. A imagem do órgão viril ereto revela para alguns sujeitos um real insuportável e que no caso da psicose não é simbolizado. Alguns sujeitos transexuais, homem para mulher, afirmam que não necessitam da ablação do pênis, basta o tratamento com hormônios para que não tenham ereção.

Freud diz que não se nasce mulher, torna-se, mas também não se nasce homem, é preciso construir pela via dos semblantes um parecer ser homem ou mulher. Um transexual masculino, ao se construir como mulher, supõe saber mais o que é ser mulher do que qualquer outra mulher, demonstrando que o suposto original é apenas uma construção. Não há uma identidade sexual de base, ao sujeito dividido se acrescentarão os atributos masculinos ou femininos, mas nenhum atributo proporcionará uma identidade sexual. A identidade é construída, ela é "a cristalização das identificações" (16/11/1976), das fixações de gozo, da inserção da castração; de sua negação, sua recusa radical ou de seu desmentido. Há em torno do significante falo a construção de semblantes do ter ou do ser; e os transexuais fazem um parecer ser mulher ou homem para esconder o que é sabendo que não é, eles seriam o semblante por excelência.

Léa T., modelo e transexual, em entrevista à Marília Gabriela, ao ser perguntada se tinha conhecimento de que após a cirurgia de ablação do pênis perderia a sensibilidade por problemas mecânicos, responde que sim, mas não lhe importa o orgasmo sexual e acrescenta: "Vou gozar de ser mulher". Gozar de ser mulher para esse sujeito não seria experimentar o gozo outro que pode acontecer a qualquer um — independentemente da anatomia — que ocupe o lugar do significante da falta no Outro, mas sim gozar de "não ter mais o atributo masculino para esconder e, aí sim, ser uma mulher por inteiro". Sabemos que as mulheres, uma a uma, gozam falicamente, ou seja, do lado masculino e podem experimentar o gozo outro, do lado não-todo fálico. Não se trata, portanto, de ser uma mulher do lado não-toda que certifica que nenhuma mulher é toda, mas sim ser a mulher aquela que Lacan afirma não existir.

A posição transexual consiste na tentativa e no sentimento de se querer toda, inteiramente mulher, mais mulher que todas as mulheres e valendo por todas é o que nos mostram os chamados SHE-Male que se dizem e sentem superiores às mulheres biológicas. No caso de um sujeito psicótico querer ser a Deusa Branca, a mulher que não existe, pode funcionar como suplência; poderíamos paradoxalmente colocá-la do lado masculino onde há a exceção, onde existe ao menos um que não está submetido à castração, lugar do Pai freudiano da horda primitiva e por aí compreendemos que a mulher é um dos nomes do Pai.

Se, como muitos sujeitos neuróticos e transexuais afirmam, eles sabem que não são mulheres e também não se sentem homens, estariam eles fora da partilha, nem do lado homem nem do lado mulher na tentativa de fazer existir terceiro sexo?

Não há um saber prévio a respeito da sexualidade. Se há partilha dos sexos, e o saber de que se trata no inconsciente é o não saber sobre o sexo, não há saber sobre essa partilha, há semblante. Se por um lado o real do sexo escapa ao saber, por outro há um saber fazer com esse real por meio do semblante de ser homem ou mulher.

Outra entrevistada e igualmente transexual e modelo, Carol Marra afirma que seu namorado, um político gaúcho, precisou ser muito homem para assumi-la como sua mulher. Será que eles também sabem o que é ser muito homem?

Na década de 1970 o preconceito era muito acirrado, mas o discurso capitalista que promove o "consuma-se" sustentava o sonho das cirurgias ainda precárias e mutilantes, realizadas para os brasileiros na maioria das vezes no Marrocos. Hoje, na Tailândia onde as cirurgias são igualmente comuns e costumam ser bem-sucedidas, o preconceito permanece, pois os transexuais tornaram-se a atração maior pelo fascínio que exercem. Chamados de "seres raros" ou "Lady-Boy", eles são a cereja do bolo na prostituição local e internacional, na qual ganham dinheiro para poder continuar a série de cirurgias transformadoras que tornam o corpo feminino para então se tornarem "verdadeiras mulheres". Já as mulheres transexuais, por não poderem se identificar à mulher, ficam impossibilitadas de serem mulheres.

Não se trata, para os sujeitos psicóticos ou neuróticos e transexuais, da certeza de se sentir homem ou mulher em um corpo trocado; a certeza de que se trata é de que o remédio para o mal-estar da transexualidade seria a cirurgia e a endocrinologia.

Nada de transexual sem o cirurgião e o endocrinologista. O desejo do sujeito é abolido em prol da posição de objeto do gozo do Outro da ciência. Esses sujeitos acreditam que trans-formados conseguiriam abolir o mal-estar inerente ao ser de fala que por definição é inadequado, fruto de uma subversão da natureza. Penso que a psicanálise teria um importante papel na questão por oferecer ao sujeito neurótico uma escuta do desejo e fazer surgir o que ele demanda quando pede a cirurgia. No caso de sujeitos psicóticos a própria demanda, a luta e a espera pela transformação podem servir de barreira impedindo um surto, a cirurgia também pode vir a fazer suplência, mas volto a dizer: a cirurgia também pode deslanchar uma psicose.

A clínica comprova que o pós-cirúrgico não livra transexuais da castração. Se estamos diante de um neurótico operado, isso não o livrará de uma certa inadequação imposta pela castração, que é simbólica, e nos coloca a possibilidade de um gozo limitado e sempre inadequado na medida que nunca é o que se espera, não importando qual forma física habitemos e muito menos qual o objeto que escolhemos. Se estamos diante de um psicótico, a cirurgia também não opera castrando-o simbolicamente e evitando o surto; muitas vezes a cirurgia também não se estabelece como suplência.

Fica a aposta na psicanálise e o cuidado com as intervenções cirúrgicas.

 

Referências

BENJAMIN, Harry (1966). The Transexual Phenomenon. New York: Editor Julian Press, 1966.         [ Links ]

FREUD, Sigmund. (1905). "Tres Ensayos de teoria sexual" In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores Vol.7.         [ Links ]

LACAN, Jacques. (1962-1963). O Seminário livro 10: a angústia. Rio de Janeiro, Editora Zahar 2005.         [ Links ]

__________. (1972-1973). O Seminário livro 19: ou pior... Rio de Janeiro, Editora Zahar 2012.         [ Links ]

__________. (1972-1973). O Seminário livro 20: Mais ainda... Rio de Janeiro, Editora Zahar        [ Links ]

Marília Gabriela entrevista Léa T. e Carol Marra à disposição no YouTube.         [ Links ]

MILLOT, Catherine. (1992). Extrasexo: ensaio sobre o transexualismo. São Paulo, Editora Escuta, 1992.         [ Links ]

 

 

Recebido: 25/02/2015
Aprovado: 21/04/2015

 

 

* Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e da Internacional dos Fóruns (AME) Fórum-Rio de Janeiro. Membro do Colegiado de Ensino de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise UERJ com a tese intitulada O gozo no feminino. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise UERJ com a tese A debilidade mental nas estruturas clínicas. Professora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica — PUC-RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Marraio — publicação de Formações Clínicas. Membro do Conselho Editorial da Revista Affecctio Societatis, da Universidade de Antioquia como parecerista. Autora de diversos artigos publicados no Brasil, França, Espanha, Colômbia e Austrália. Organizadora do livro A clínica do ato com Georgina Cerquise (7 Letras, 2013).
1 BENJAMIN, Harry. Médico alemão que imigrou para os EUA, é autor do livro The Transexual Phenomenon. New York: Julian Press, 1966.