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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.30 Rio de Janeiro jun. 2015

 

ESPAÇO ESCOLA

 

Passador, um leitor

 

Passer, a reader

 

 

Luciana Guarreschi*

Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo de algumas referências lacanianas sobre o passador, a autora busca, em Roland Barthes, a possibilidade de expandir a definição de passador. Utilizando-se da teoria barthesiana da leitura, que invoca uma forma ampliada de leitura, de uma imensa trama sonora — o rumor da língua — em que um não-sentido pode dar lugar a um sentido novo, liberto da história dos signos, a autora cria a figura do passador-leitor.

Palavras-chave: Passe, Passador, Barthes, Leitor.


ABSTRACT

Departing from some Lacanian references about the passer, the author searches in Roland Barthes for the opportunity to expand the definition of passer. Through the Barthesian theory of reading, which invokes a broader form of reading, of an immense sound texture — the rumor of language — in which a non-sense can give way to a new sense, liberated from the history of signs, the author creates the figure of the passer-reader.

Keywords: Pass, Passer, Barthes, Reader.


 

 

Muita tinta já correu na tentativa de aproximação e definição desse termo: passador. Deixarei escorrer a minha, sabendo que, assim espero, outros o farão depois de mim. Sabendo que, a cada vez que um analisante se aproxima de um tempo-espaço nunca dantes alcançado, pois inexistente até então, encontra-se, ali mesmo, passador. E aqui já faço uma pequena nota: passador é todo aquele que aí está, independentemente de estar participando do dispositivo institucional "passe", independentemente de ter sido designado e/ou sorteado. Como se sabe, esses momentos podem, ou não, coincidir.

As referências em Lacan sobre o passador são várias, mas não infinitas como nossas repetições, que ainda assim são insuficientes. Não há muito o que ser feito neste sentido, nos aproximamos desta condição passageira e logo nossos olhos não podem ler outra coisa que não essas referências. Procuraríamos ali uma explicação para nossa condição altamente angustiante? Uma preparação para uma possível designação? Um abrandamento do momento? Importa pouco, já que não encontramos o que procuramos: nada de alívio. Tampouco o que acreditamos compreender nos deixa mais preparados. Certo é que há pontos de identificação com algumas referências, ou mesmo com alguns testemunhos de Analistas de Escola que, se nos trazem a certeza do caminho, nunca sua saída.

No melhor estilo picassiano "eu não procuro, acho", acabo por encontrar, quando já não procurava mais, uma imagem que me aproximou novamente, em certa medida, da condição de passadora. Esta certa medida diz respeito à pergunta que Lacan soube bem fazer: Enfim, a partir de quando há analista? Desdobrando: Nas análises que conduzo, onde está esta virada? Mas também: e hoje? Hoje vai ter analista? Hoje "não tá tendo", daqui a pouco pode chegar... Sempre o "a cada vez" a que se referia Freud. Bom, fato é que tal achado me fez procurar novamente, encore.

Lacan, em 1967, define o passador simplesmente assim:

Cada um deles terá sido escolhido por um analista da Escola, aquele que pode responder pelo fato de que eles estejam nesse passe ou que retornaram a ele, em suma, ainda estão ligados ao desenlace de sua experiência pessoal (1967/2003, p. 261).

E para explicar o que seria "nesse passe" é ainda mais simples: "[...] estar no passe em que, precisamente, advém o desejo do psicanalista, esteja ele, ou não, em dificuldade." (LACAN, Um procedimento para o passe, 1967/1997). E para que não restem dúvidas de sua posição, arremata em 1973:

Aqueles que estão ocupando a posição do passador em certos casos, de fato se colocam como analistas: isto não é absolutamente o que nós esperamos deles. O que nós esperamos deles é um testemunho, é uma transmissão, uma transmissão da experiência, uma vez que ela não é justamente dirigida a um velho, a um mais velho (LACAN, J. Intervenção na sessão de trabalho "Sobre o Passe", 3/11/1973 [grifos meus]).

Isto em Lacan. Se nos ativermos ao que foi depois produzido, teremos algumas definições-metáforas: passador como uma placa sensível, como mediador assimétrico, como difusor da música do passante etc.

Sigo então, com o que, para mim, foi um (re)achado, Barthes. E aqui farei referências a diversos artigos dele reunidos num livro chamado "O rumor da língua", lidos a meu bel-prazer.

Começo com um pequeno texto lá contido: "Escrever a leitura" aí está! Essa já poderia ser uma função do passador. Barthes (1970/2012) começa com uma interrogação:

Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de ideias, excitações, associações? É essa leitura, ao mesmo tempo irrespeitosa, pois que corta o texto, e apaixonada, pois que a ele volta e dele se nutre, que tentei escrever (Ibid., p. 26).

Poderia dizer: que o passador tenha desejo de escrever. Barthes faz um experimento. Lendo Sarrasine, de Balzac, escreve sistematicamente essas interrupções. E, sobre esse escrever, diz:

Não falei nem de Balzac nem de seu tempo, não fiz nem psicologia das suas personagens, nem a temática do texto, nem a sociologia do enredo (Ibid., p. 27 [Grifos meus]).

Como fez então, Barthes? Tentou filmar em câmera lenta a leitura desse texto. O resultado?

Não é nem totalmente uma análise, nem totalmente uma imagem. É simplesmente um texto, esse texto que escrevemos em nossa cabeça quando a levantamos (Ibid., p. 27).

Barthes está chamando à ordem uma ênfase ainda por ser dada ao leitor, já que muito falou-se sobre o autor. Lembremos que não estamos muito longe do conhecido texto de Foucault, de 1969, "O que é um Autor?". Barthes está, em 1970, tentando suscitar, como ele chama, uma "teoria da leitura". Para ele, o autor estava ainda sendo considerado o proprietário eterno de sua obra, procurava-se entender o que o autor quisera dizer, mesmo sob advertência de muitos autores de que seríamos livres para ler suas obras como bem entendêssemos. E aqui cabe uma pequena nota para o passante: você será lido como bem, e mal, entenderem seus passadores. É bom estar preparado para tal, pois se nos guiarmos por Barthes: "o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor" (Ibid., p. 64), muitos dedos para com seu testemunho podem impedir o nascimento de um leitor.

Mas que leitor? Relembremos as raízes do verbo ler, sua etimologia porta nuances das quais me sirvo aqui: "Ler era também recolher, colher, espiar, reconhecer os traços, tomar, roubar. Ler denota, pois, uma participação agressiva, uma apropriação ativa do outro."(KRISTEVA, , 2012, p. 176 [Grifos meus]).

É, há de se estar "no ponto" para tal tarefa. O pobre diabo sorteado terá que escolher entre ser pobre ou diabo. Diabólico, roubará o ímpeto dos momentos de passagem, reconhecerá os traços das viradas, tomará o incerto pelo certo. Como pobre pedirá pelo Autor, pelo romance, pela verdade, por mais um sentido, pelas intervenções brilhantes do analista, pela obra, pelo fim, pela origem etc. e etc.

Obviamente não está tudo a cargo do passador leitor, que, para ler, terá que contar com o Texto do passante. Em um outro artigo, chamado "Da obra ao Texto", Barthes delimita, contorna diferenças entre texto e obra. Diz ele:

A obra segura-se na mão, o Texto mantém-se na linguagem: ele só existe tomado num discurso (ou melhor, é Texto mesmo pelo fato de o saber); o Texto não é a decomposição da obra, é a obra que é a cauda imaginária do Texto Ou ainda: só se prova o Texto num trabalho, numa produção. (BARTHES, 2012, p. 67 [Grifos meus]).

E por último, mas não menos importante:

A obra é tomada num processo de filiação. Postula-se uma determinação do mundo (de raça, da História) sobre a obra, correlação das obras entre si e uma apropriação da obra ao seu autor. O autor é o reputado pai e proprietário da obra [...]. Quanto ao Texto, lê-se sem a inscrição do Pai [...]. Nenhum "respeito" vital é, pois, devido ao Texto: ele pode ser quebrado; pode ser lido sem a garantia do Pai (Idid., p. 72).

Assim, é absolutamente necessário que o passante tenha transmutado sua grande obra neurótica em um Texto, aquele em que a linguagem engendra a causa do desejo, demonstrando justamente "que o terror do desejo do qual se organiza a neurose, o que se chama defesa, não é senão conjuração de dar pena" (LACAN, 1971-72/2012, p. 166).

Barthes finaliza:

O Texto é antes de tudo (ou depois de tudo) essa longa operação através da qual um autor (um sujeito enunciador) descobre (ou faz o leitor descobrir) a inidentificabilidade de sua palavra e chega à substituição do eu falo pelo isso fala (BARTHES, 2012, p. 105).

Poderíamos colocar em termos de grandezas inversamente proporcionais: quanto mais obra, menos Texto. Esse sujeito enunciador, o passante, traz sua longa operação à leitura do passador-leitor, atentando-o para essa inidentificabilidade de sua palavra, para o vazio que se encontra na origem, para o que não se presta, nem nunca se prestou, a ser identificável, em que pese todos os esforços da neurose.

Antes de seguir, um outro pequeno apontamento sobre os cartéis do passe: se a escuta do Texto dos passadores-leitores suscita problemas de "classificação" (tragédia, romance, comédia, poesia?) é porque este sempre implica certa experiência do limite. Uma vez que o Texto, diz Barthes:

[...] não é um objeto contável, é um campo metodológico onde se perseguem, segundo um movimento mais "einsteiniano" que "newtoniano", o enunciado e a enunciação, o comentador e o comentante (Ibid., p. 103).

Como escutar esse Texto que coloca-se exatamente atrás do limite da doxa? Se há Texto, ele é sempre paradoxal. Cabe a pergunta: em que pé se encontra nossa comunidade para suportar tais paradoxos?

Volto ao passador-leitor, com Barthes:

[...] uma leitura "verdadeira", uma leitura que assumisse a sua afirmação, seria uma leitura louca, não no que ela inventasse de sentidos improváveis (contrassensos), não no que ela "delirasse", mas por ela captar a multiplicidade simultânea dos sentidos, dos pontos de vista, das estruturas, como um espaço estendido fora das leis que proscrevem a contradição. (Ibid., p. 41 [Grifos meus]).

Cibele Barbará, em um texto publicado em Wunsch n. 14, testemunha de sua posição de passadora-leitora:

[...] sentia como se carregasse em meu corpo uma série de afetos, de letras, de tons e sons que me impressionaram durante os encontros. Já não era algo da ordem da identificação e sim daquele lugar de leitor que algumas vezes experimentamos ao nos depararmos com um poema ou com uma música que nos tocam profundamente.
(BARBARÁ, C. Testemunho a partir da experiência como passadora, http://champlacanien.net/public/4/puWunsch.php?language=4&menu=1).

Entrar nesse texto testemunho, escrever sua leitura não é de maneira alguma interpretá-lo livremente; é, principalmente, e drasticamente reconhecer ali que não há verdade da leitura. Cena inimaginável: ler um poema, um conto e passar a discutir, ainda que consigo mesmo, se algo deveria ter sido assim ou assado? Que tal detalhe pode ser verdade, mas esta outra frase não? Numa leitura sabemos que há "apenas verdade lúdica" e entramos nesse jogo com a mesma seriedade de uma criança enquanto brinca, deixando os afetos percorrerem o corpo, "ler é fazer nosso corpo trabalhar ao apelo dos signos do texto" (BARTHES, 2012, , p. 41).

Não pode haver compreensão, entendimento do Texto testemunho, um passador-leitor aceita deixar-se tomar "por uma inversão dialética: finalmente, ele não decodifica, ele sobrecodifica, não decifra, produz, amontoa linguagens, deixa-se infinita e incansavelmente atravessar por elas: ele é essa travessia." ( Ibid., p. 41).

 

Referências

BARBARÁ, C. Testemunho a partir da experiência como passadora. <http://champlacanien.net/public/4/puWunsch.php?language=4&menu=1>, (último acesso em 18/02/2015).

BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.         [ Links ]

KRISTEVA, J. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 2012.         [ Links ]

LACAN, J. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003,         [ Links ]

LACAN, J. (1967). Um procedimento para o passe. In: Opção Lacaniana, n. 18. São Paulo: abril 1997.         [ Links ]

LACAN, J. (1973). Intervenção na sessão de trabalho "Sobre o Passe", 3/11/1973. Texto não estabelecido.         [ Links ]

LACAN, J. (1971-72). O seminário – livro 19: ... ou pior. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: guareschi.lu@gmail.com

Recebido: 21/02/2015
Aprovado: 21/04/2015

 

 

* Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo.