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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.30 Rio de Janeiro jun. 2015

 

RESENHA

 

As homossexualidades na Psicanálise: na história de sua despatologização

 

The homosexualities in Psychoanalysis: in the course of its 'depathologicalization'

 

 

Raul Albino Pacheco*

Analista Membro da Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns da Escola Lacaniana-Brasil
Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo
Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica-SP

Endereço para correspondência

 

 

Nenhum saber é neutro em relação ao que acontece no campo social, na medida em que os conflitos que opõem as classes, os grupos, as gerações e os sexos fazem-se presentes também nos campos de saber. Não são apenas os poderes político e econômico que se distribuem desigualmente, sendo fácil constatar que a isso se soma também, de maneira correlacionada, a desigualdade na distribuição do poder simbólico.

E, no que diz respeito aos significantes articulados ao sexual, não é necessário perder-se muito tempo buscando-se novos fatos ou argumentos, tal é a massa de evidências e demonstrações já trazidas à luz, que corroboram esta obviedade histórica. Trata-se de algo que atravessa os tempos e sabemos que o mesmo ventre que gestou a democracia não deixou de oferecer alojamento para a segregação: só os varões eram considerados cidadãos na Grécia antiga, estando excluídos da condição de cidadania as mulheres e os escravos. E pode-se reunir a quantidade de evidência que se desejar, para se mostrar que o poder circula por meio de significantes articulados às identidades sociais sexuais.

Esta correlação histórica articulando os significantes sexuais e o poder atingiu (e ainda atinge) o que diz respeito às maneiras de os sujeitos se posicionarem em suas práticas eróticas e preferências sexuais, como se observa nos diferentes graus de resistência e oposição às práticas não heterossexuais, ao longo dos tempos. E que vão da simples ridicularização e menosprezo até a criminalização e punição social mais violenta, chegando à tortura e assassinato: seja a legal e institucionalmente prescrita, seja a que escapa à legitimação da legislação (mas ainda assim tolerada, senão aprovada). Como diz Anderson Schirmer em seu projeto de doutorado (em andamento no Núcleo de Pesquisa, Psicanálise e Sociedade da PUCSP), que investiga a hipótese de que a homofobia constitui um véu para a impossibilidade da relação sexual: "Há na hipótese da legitimidade da diversidade sexual uma ideia de ameaça à fantasia de uma perfeita e natural ordem do mundo sexual, que, derrubada, levaria o mundo ao caos."

E os campos de saber sempre elegeram o tema do sexual como âmbito sobre o qual se pronunciar e, mais do que isso, sobre o qual legislar. Sábios, cientistas e sacerdotes sempre fizeram disso objeto de seus discursos, seja para municiar amos, governantes e instituições com os aparatos simbólicos de sustentação dos aparelhamentos de gozo instituídos, seja, inversamente (para alívio dos que ainda esperam uma contribuição relevante dessa fonte), para trazer uma indagação ou crítica sobre o establishment, como é o caso de Freud, Foucault e Lacan.

Acredito não incorrer em erro ao afirmar que a Psiquiatria, articulada à Ciência da Modernidade, alinhou-se mais vezes com uma doxa social segregacionista e normatizadora (uma orto/doxia), do que com uma visão progressista, transformadora e de tolerância em relação à multiplicidade das identificações sexuais e das posições e estratégias de gozo dos sujeitos. E, com tanto maior razão, o mesmo pode ser dito das religiões, ainda que tenhamos que fazer justiça ao fato de que existem algumas mais tolerantes, como é o caso de certas religiões afro-brasileiras.

Cabe uma pergunta: e a psicanálise, como tem se colocado? O que tem ela a dizer a respeito do assunto? Para fazer justiça aos fatos, a resposta não pode ser absoluta nem universalizante. Embora já em Freud encontremos uma concepção despatologizante das escolhas homossexuais de objeto, as proposições ideológicas estigmatizantes não estão de forma alguma ausentes da literatura psicanalítica. Em uma tese de doutorado defendida no Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade da PUCSP, posteriormente editada como livro — "Homossexualidade e perversão na Psicanálise: uma resposta aos Gay & Lesbians Studies" (2005) —, Graciela Barbero mostrou a presença de uma concepção de desvio da norma e a proposição de uma conexão entre práticas homossexuais e perversão, em diversos autores psicanalíticos. Daí a relevância de indagarmos os membros do nosso próprio campo — nossos colegas psicanalistas — a respeito de uma posição clara sobre algumas questões importantes. Por exemplo: homossexualismo é perversão, desvio, doença? A psicanálise tem algo a dizer sobre homossexualismo, para além dos preconceitos e ideologias sociais? A psicanálise dispõe-se a aprender algo, com os movimentos de visibilidade coletiva dos homossexuais e de identidades sexuais alternativas?

Sejamos mais diretos: é cabível cobrarem a nós, psicanalistas, o mesmo que Canguilhem cobrou dos psicólogos, em sua conhecida conferência de 1956: "O que é a psicologia?"

Dizei-me em que direção tendes, para que eu saiba o que sois. Ou, de outra forma: quando se sai da Sorbonne pela Rue Saint-Jacques, pode-se subir ou descer; se se sobe, aproxima-se do Pantheon, que é o conservatório de alguns grandes homens; mas, se se desce, dirige-se certamente para a Chefatura de Polícia.

Afinal, falar de homossexualidade (ou homossexualidades) não é mero diletantismo. Basta lembrarmos que o atual1 presidente da Câmara dos Deputados do Brasil é autor do projeto de lei PL 1.672/2011, que institui o Dia do Orgulho Hétero, em um protesto evidente contra o Dia Internacional do Orgulho Gay. Este deputado, cuja investigação foi solicitada pelo Ministério Público ao Supremo Tribunal Federal, por suspeita de participação em esquemas de corrupção da Petrobrás ("Operação Lava-jato" da Polícia Federal), costumeiramente posta mensagens segregacionistas e preconceituosas em seu Twitter2 como: "Essa história de casamento gay já está passando dos limites do bom senso e excesso de mídia e de lobby." (17 de maio de 2011). "Chega desse espetáculo deprimente que envergonha a todos nós. Não à república gay." (17 de maio de 2011). "Se eles têm o dia do orgulho gay, por que não podemos ter o dia do orgulho hétero?" (22 de junho de 2011). "Bando de sodomitas, parece que são alunos da sodoministra das mulheres, aquela abortista. Tudo isso é um plano do inimigo e vamos lutar." (29 de maio de 2012).

Por isso tudo é que a publicação da coletânea "As homossexualidades na Psicanálise: na história de sua despatologização", organizada por Antonio Quinet e Marco Antonio Coutinho Jorge, é um fato auspicioso, que traz uma contribuição essencial sobre o tema. Para os psicanalistas lacanianos brasileiros a apresentação dos autores é inteiramente dispensável, já que ambos são expoentes no campo. Mas, mesmo uma resenha publicada em Stylus: Revista de Psicanálise pode chegar às mãos de um leitor pouco familiarizado com o campo e, pensando nesta eventualidade, registro que o psicanalista e psiquiatra Antonio Quinet fez formação na École de la Cause Freudienne e é AME (Analista Membro de Escola) da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano EPFCL-Brasil). É doutor em Filosofia pela Universidade de Paris VIII, professor de pós-graduação em Psicanálise e foi o tradutor da edição brasileira do Seminário 7 "A Ética da Psicanálise", de Lacan, e o revisor técnico da edição brasileira do Seminário 17 "O avesso da Psicanálise" (Jorge Zahar). Autor de inúmeros livros importantes em Psicanálise, fundou a Cia. Inconsciente em Cena, com a qual estreou os espetáculos: "Óidipous, filho de Laios", "Variações Freudianas 1: o Sintoma" e "O ato: variações freudianas 2". O psicanalista e psiquiatra Marco Antonio Coutinho Jorge é membro da Association Insistance e diretor do Corpo Freudiano (seção Rio de Janeiro). É professor da UERJ e foi o tradutor brasileiro de duas obras de Lacan: "Os complexos familiares" e "Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade". Também é autor de vários livros importantes em psicanálise.

A coletânea reúne as apresentações de um colóquio com o mesmo nome do título (além de textos de autores convidados especialmente para a edição do livro), realizado em homenagem a Stonewall, a que a imagem da capa faz alusão. São textos de vinte e três competentes psicanalistas e pesquisadores sobre a sociedade e cultura, divididos em cinco partes: "Ética e preconceito", "O mistério das homossexualidades", "Bissexualidades", Homossexualidades e estruturas clínicas" e "Homossexualidades femininas".

Lembremos que Stonewall foi um 'ato': limite que demarca um 'antes' e um 'depois'. Ocorrido em 28 de junho de 1969, "é o marco histórico do início do movimento de emancipação e liberação dos homossexuais e do combate à homofobia (...) quando os clientes desse bar de Nova York reagiram vigorosamente à batida policial de praxe (...) [e] inauguraram, com tal ato, o movimento gay que se alastraria por todo o mundo." (QUINET e JORGE, 2013, p. 9).

Sempre que se quiser acentuar o aspecto da multiplicidade, atendendo ao rigor conceitual em psicanálise, o termo sexualidade deve vir no plural. Sejam as homossexualidades, as heterossexualidades, as bissexualidades, ou outro significante qualquer que se venha a inventar para se falar do assunto, neste caso, ele terá que aparecer necessariamente no plural, já que as sexualidades são tantas quantas são os próprios seres humanos: "Não existe "O Homossexual" e sim homossexuais, tanto quanto neuróticos, psicóticos e perversos" (QUINET, in QUINET e JORGE, p. 347).

Freud mostrou que a sexualidade humana é desnaturalizada por estrutura, uma vez que aquilo que havia de instintual foi subvertido a partir da entrada no âmbito da linguagem e do registro simbólico, razão pela qual devemos sustentar sem tergiversações que a sexualidade humana, a pulsão e o próprio psiquismo estão em relação negativa com o seu substrato biológico. Como diz Ogilvie:

A carência instintual dá livre curso à relação social e cultural, que vêm a desempenhar um papel para o qual bastam, em todas as outras espécies, as determinações biológicas. (...) Natureza, cultura, subjetividade: é pensando a negatividade que as une sob a forma de sua separação que se confere ao psiquismo uma dimensão própria (1987/1988, p. 97).

Daí se entende a proposição lacaniana de que o corpo-organismo-natureza é subvertido pelo "pisoteio de elefante do capricho do Outro", na medida em que "o desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade" (LACAN, 1950/1988, p. 828).

Da hiância/fenda/fosso em que o sujeito se cria automutilado pelo buraco originado a partir do que dele se destacou (o objeto causa do desejo), surge o traçado centrífugo da pulsão, que o impele, ao longo da vida, na direção dos objetos do mundo. Nunca totalmente absorvido, mas nunca totalmente à parte deles: ex-sistente! (PACHECO FILHO, 2010, p. 38).

Fazendo eco a essas descobertas psicanalíticas, em seu capítulo no livro intitulado "A maldição sobre o sexo", Colette Soler sublinha de forma decidida: "a anatomia decide o estado civil, mas não comanda nem o desejo nem a pulsão" (p. 119).

E Quinet complementa: "o sujeito do desejo é o sujeito do direito à sua forma de gozar" (p. 131). Gozo que não precisa ser motivo de orgulho nem de vergonha, na medida em que "é uma variante da vida sexual": a sua! Disso não decorre que a escolha de objeto homossexual ou heterossexual seja uma opção consciente do sujeito: suas raízes se alojam no inconsciente. Mas a ética da psicanálise pressupõe um sujeito responsável e não um robot inteiramente determinado, razão pela qual a primeira retificação subjetiva, a ser operada em todo processo analítico, visa implicar o sujeito (homo, hétero ou bissexual) com "sua forma de gozo e fazê-lo responsável por sua sexualidade". Neste sentido, é legítimo dizer que existe uma 'escolha' do sujeito em relação à sua forma de gozar, o que deve ser entendido como uma postura ética da psicanálise, "que tira o sujeito dito homossexual do lugar de vítima": seja da sua genética, das vicissitudes da sua história pessoal, dos desígnios do destino ou, ainda, do desejo de seus pais (o Outro parental).

Para entrar na partilha dos sexos, o sujeito empreende uma dupla escolha: a escolha da sua posição sexuada e a escolha do seu objeto sexual. Este último remete à série infinita dos objetos substitutivos do objeto incestuoso, trazendo sempre a marca do ciúme do objeto como propriedade do outro: o que faz do triângulo amoroso uma "condição estrutural", já que o objeto encontra-se no campo do Outro. Por isto é que no encontro amoroso e sexual, como já alertava Freud, é em vão que se espera a completa harmonia.

A mutilação sangrenta do sexo, que Freud chamou nada menos do que de "castração", respinga em todos os momentos da história do sujeito, desde a infância até a velhice. E mancha de púrpura seus encontros eróticos, que são assim tingidos pela transitoriedade e pela insegurança de quem nada tem de certeiro. A única certeza é a amputação originária do outro, que faz da vida um caminhar trágico entre duas mortes: a mortificação promovida pela linguagem e a morte como fim da linha (As homossexualidades na Psicanálise: na história de sua despatologização, op. cit., p. 132).

Pensar a escolha da posição sexuada e do parceiro sexual, contemplando como aí se presentificam, tanto a determinação do simbólico — o automaton da repetição significante —, quanto o indeterminado do encontro casual — o real d'A Coisa, que vem pela tyché —, implica em se recorrer às fórmulas lacanianas da sexuação: o que é feito por vários autores do livro, ao longo dos diversos capítulos. Neles, se exploram as consequências e vicissitudes do fato de que inexiste o ser do sexo complementar: o que conduziu Lacan à sua máxima de que "não há relação sexual". "Não ser o falo" ou "não ter o falo"? Aqui se introduz a escolha entre o "dito homem" — aquele 'todo' submetido à função fálica e o gozo que ela admite — e a "dita mulher" — aquela 'não-toda' submetida à função fálica e que, devido a isto, tem acesso também ao gozo Outro (Ibid., p. 136).

Outro assunto realçado no livro é a questão da chamada "identidade sexual": tema controvertido e complexo, no âmbito da psicanálise, já que o termo "identidade" não constitui um conceito psicanalítico. Não há "gay em análise" e sim um sujeito: "sujeito de desejo, sujeito do inconsciente, cuja unicidade é falaciosamente suposta por meio de suas identificações." (Ibid., p. 344). E é exatamente com fundamento nessa noção falaciosa de identidade sexual que se dividem os seres humanos em supostas (e falsas) categorias identitárias estanques, que, além de contradizerem a singularidade do desejo, servem de instrumento às segregações e criação de guetos, além de alimentarem a "psicologia das massas" pela via das identificações aos ideais. "O desejo pelo outro, ao ser recusado, pode se transformar em ódio." Daí para a frente, "da homofobia ao homoterrorismo é um passo" (Ibid., p. 346), como se constata na já mencionada atuação do presidente da Câmara dos Deputados.

Não menos nociva do que a teorização de um conceito naturalizado e reificado de identidade sexual, apoiado em uma pretensa base biológica, é a patologização pseudocientífica das práticas homossexuais que costuma acompanhá-lo. E que, no mais das vezes, não passa de dissimulação para subestimação, desprezo, ódio ou medo ao que é sexualmente diferente e ao que não se acomodou inteiramente às normas sociais de aparelhamento do gozo. Problema grave, este, quando vem a ocorrer no interior do próprio campo psicanalítico, já que "a leitura que cada analista tem da homossexualidade determina a maneira como ele conduz as análises de todos os seus pacientes, independentemente da escolha sexual e da estrutura clínica" (Ibid., p. 11).

E os capítulos "A história da homossexualidade e a psicanálise organizada", de Jack Drescher, e "A Psicanálise à prova da homossexualidade", de Elisabeth Roudinesco, escritos especialmente para o livro, nos lembram como, ao longo da História, os psicanalistas tanto 'subiram ao Pantheon' quanto 'desceram à chefatura de polícia'. Ainda que Freud não tenha dado seu aval à patologização da homossexualidade — "A pesquisa psicanalítica se opõe, decididamente, a qualquer tentativa de separar os homossexuais do resto da humanidade como um grupo de caráter especial" (Ibid., p. 49) — muitos psicanalistas, sobretudo americanos, não hesitaram em avalizar a inclusão do diagnóstico de 'homossexualidade' na primeira (1952) e segunda (1968) edições do Diagnostic and Statistical Manual (DSM). Em decorrência disto, "homens e mulheres assumidamente gays eram considerados inelegíveis para fazerem formação em psicanálise" (Ibid., p. 51). E mesmo quando a American Psychiatric Association votou a retirada da homossexualidade do DSM-II (1973) e a American Psychological Association e a National Association of Social Workers endossaram a decisão, a maioria dos institutos psicanalíticos norte-americanos não modificou sua posição. Foi apenas em 1991 que a American Psychoanalytic Association adotou uma política de não discriminação da orientação sexual na seleção de candidatos a analista. Daí para a frente as coisas mudariam, e em 1997 a American Psychoanalytic Association "tornou-se a primeira das principais organizações de saúde mental a endossar o casamento gay" (Ibid., p. 56).

Em relação a Lacan, Roudinesco nos lembra de que não apenas ele "tomou em análise homossexuais, sem jamais pretender os reeducar nem os impedir de se tornarem psicanalistas, caso o desejassem", como também aceitou o princípio de que eles pudessem ser integrados "na qualidade de analistas da escola (AE) ou analistas membros da escola (AME)", quando fundou a Escola Freudiana de Paris (EFP) (p. 113).

Mais injustificável fica a patologização de homossexuais no campo da psicanálise, quando se lê a "Carta a uma mãe Americana", de Freud (1935/1953), afirmando que "a homossexualidade, certamente, não é uma vantagem; mas não é nada do que se envergonhar, não é vício, não é degradação; não pode ser classificada como uma doença" (apud Drescher, p. 50). Daí a importância dos capítulos da parte "Homossexualidades e estruturas clínicas" do livro, mostrando que a tentativa de se correlacionar ponto por ponto homossexualismo e perversão é um empreendimento vão: seja porque "identificar todo homossexual à perversão é algo que a clínica desmente" (As homossexualidades na Psicanálise: na história de sua despatologização, op. cit., p. 347); seja porque a perversão como estrutura é uma das formas possíveis de o sujeito lidar com a falta no Outro (a Verleugnung) e não uma patologia; seja ainda porque, embora perversão e homossexualismo possam ser observados em um mesmo sujeito, muitas vezes ambos são inteiramente independentes e autônomos. É isto que Lacan mostra no caso de André Gide, em seu texto "Juventude de Gide ou a letra e o desejo" (1958/1998), cuja perversão não estava vinculada à sua prática sexual com jovens do mesmo sexo e sim à sua prática da letra e seu vínculo de amor com a esposa:

O vazio da ausência da marca fálica do desejo do lado do amor foi preenchido por Gide pelas cartas/letras (lettres), ou seja, sua correspondência com Madeleine, seu Outro do amor único. Essa correspondência constitui um fetiche para Gide, pois as cartas para Madeleine vêm no lugar do falo que falta. (...) Essa letra-objeto fetiche, que é a correspondência com Madeleine, funciona mais como objeto a (do que como significante), semblante de ser para o sujeito Gide. (...) Pois, quando tomada como objeto a, a correspondência destinada a Madeleine faz parte da estratégia perversa de Gide, na medida em que "o perverso é aquele que se consagra a tapar o furo no Outro com o objeto a" (As homossexualidades na Psicanálise: na história de sua despatologização, op. cit., pp. 274-275).

Em seu capítulo "Yukio Mishima: um talento perverso", Maria Helena Martinho busca demonstrar que, de modo semelhante ao que ocorria com Gide, a perversão de Mishima não se devia ao fato de ele ser um homossexual assumido; e sim ao fato de que, em sua vida e obra, até o seu suicídio, ele perseguia a solução da divisão do eu "nas polaridades entre "o corpo e as palavras", "a carne e o espírito", "o amor e o desejo", "a arte e a ação" (Ibid., p. 282). Ao exibir seu seppuku (ritual de suicídio da casta samurai, cortando o abdome com uma espada de lâmina curta), Mishima "oferece à hiância do Outro o mais-de-gozar, o puro objeto que lhe convém, na tentativa de tapar o buraco do real com o objeto a, olhar" (Ibid., p. 295).

Modificando uma frase que o psicanalista Ralph Roughton emprega em situação diversa (Ibid., p. 111), poderíamos dizer que um homossexual perverso tem mais em comum com um heterossexual perverso do que com um homossexual neurótico.

Não seria justo deixar de incluir nesta resenha o devido tributo ao livro por sua "co-memoração" de Stonewall. Ainda que não se possam extrair da psicanálise os fundamentos para uma identidade gay — assim como também não para uma identidade heterossexual —, deve-se considerar que "orgulho gay" (gay pride) e orgulho LGBT representam, antes de qualquer outra coisa, uma vigorosa tomada de posição política dos homossexuais, contra a opressão social e em favor de seu direito ao livre exercício de seu desejo:

O sintagma 'gay pride', orgulho gay, antes de significar que a homossexualidade é alegre e que 'a vida é bela' para os homossexuais, mostra que, antes de Stonewall, ela era vivida com amargura, tristeza e vergonha. As imagens que ficaram de Stonewall são pungentes e transmitem uma alegria incontida daqueles que enfrentam o medo e que reconhecem em si mesmos uma força capaz de não mais se acovardar. Stonewall significou uma verdadeira interpretação psicanalítica para os homossexuais, que 'saíram do armário' para as ruas (Ibid., p. 274-275).

Não parece difícil escolher uma posição política a tomar, se a opção for manter a coerência com a psicanálise: seja com sua descoberta da pluralidade sexual do ser humano; seja com seu exercício de uma práxis que contempla a alteridade do sujeito e fundamenta-se em uma ética orientada pela singularidade do desejo.

Paradoxalmente, essa segurança na escolha de uma direção política sobre o assunto decorre de uma incerteza: aquela que a psicanálise demonstrou ser o cerne da sexualidade humana. Como diz Vera Pollo, no início do seu capítulo no livro:

Desdobrando a assertiva freudiana de que todo ato sexual é "um acontecimento entre quatro indivíduos", o ensino de Lacan nos permite dizer que nenhum ser falante encontra, no ato sexual, o recurso que lhe permita afirmar-se homem ou mulher (Ibid., p. 171).
Se quisermos dar um passo a mais, "sem ter que explorar seu sexo", diremos que a mulher, por representar o Outro absoluto na dialética falocêntrica, será classificada como muda, ao passo que a arara tricolor será classificada "como hetero — pelo fato de a dizerem ser falante"3 (Ibid., p. 180).

Em "Ser e tempo" (1927/1960), Heidegger propõe que a compreensão do ser (ser em geral) constitui uma determinação ontológica do "ser-aí" (Dasein)4. "O 'ser-aí' é um ente que não é simplesmente dado como um ente entre outros. Ao contrário, ele se caracteriza onticamente pelo fato de que, em seu ser, há questão desse ser." (HEIDEGGER, apud ZUBEN, 2011, p. 90). Já que a interlocução crítica com o filósofo alemão é uma das fontes de inspiração lacanianas, talvez possamos concluir esta resenha arriscando a proposição de uma homologia com a determinação ontológica do 'ser-aí'; e dizer que o confrontar-se com as tensões irredutíveis entre harmonia e desarmonia, encontro e desencontro, amor e ódio, completude e falta, inerentes ao vivenciar cotidiano do sexual, constituem uma determinação ontológica do parlêtre. E que, ao contrário dos outros entes vivos sexuados, para quem o sexual é biologicamente constitucional, instintivo, e não traz indagação ou dúvida, o falasser caracteriza-se onticamente pelo fato de que, em seu ser, o sexual seja uma interrogação permanente e infindável!

 

Referências

BARBERO, G. Homossexualidade e perversão na Psicanálise: uma resposta aos Gay & Lesbian Studies. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2005.         [ Links ]

CANGUILHEM, G. (1958 [1956]/1973). O que é a Psicologia? Tempo Brasileiro, n. 30-31, pp. 104-123, 1973.

FREUD, S. (1935/1953). Letter to an american mother. In FREUD, Ernst. L. (ed.) The letters of Sigmund Freud. New York, Basic Books, 1953, 423-4234.         [ Links ]

HEIDEGGER, M. (1927/1960). Sein und Zeit. Tübingen, Max Niemeyer, 1960.         [ Links ]

LACAN, J. (1950/1998). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

LACAN, J. (1958/1998). Juventude de Gide ou a letra e o desejo. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

LACAN, J. (1972/2003). O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.         [ Links ]

OGILVIE, B. (1987/1988). Lacan — A formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.

QUINET, A. e JORGE, M. A. C. (2013). As homossexualidades na Psicanálise: na história de sua despatologização. São Paulo, Segmento Farma, 2013.         [ Links ]

PACHECO FILHO, R. (2010). "Lease your body": a encantação do corpo e o fetichismo da mercadoria. Stylus: Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 21, dez. 2010, p. 37-46, 2010.         [ Links ]

ZUBEN, N. (2011). A Fenomenologia como retorno à Ontologia, em Martin Heidegger. Trans/Form/Ação, Marília, v. 34, n. 2, pp. 85-102, 2011.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: raulpachecofilho@uol.com.br

 

 

* Psicanalista AME da EPFCL-Brasil. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, onde coordena a Rede de Pesquisa Psicanálise e Saúde Pública. Professor Titular da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC-SP, atuando no Curso de Psicologia e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, onde coordena o Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade. Psicólogo pela PUC-SP e Mestre e Doutor pelo Instituto de Psicologia da USP.
1 Em 22 de março de 2015.
2 (E-mail: deputadoeduardocunha@depeduardocunha).
3 LACAN (1972/2003), p. 497.
4 "O termo, na intenção de Heidegger, designa que o homem, enquanto eksistente exposto ao ser, é lugar onde este se manifesta." (ZUBEN, 2011, p. 90) "O ser-aí – o Dasein – não designa propriamente a condição humana, mas o modo específico de ser do homem enquanto presença ek-stática à revelação do ser (Ibid., p. 97).