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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.31 Rio de Janeiro Oct. 2015

 

CONFERÊNCIAS

 

Um amor mais digno1

 

A more dignified love

 

 

Jorge Ivan Escobar Gallo*

Membro da Escola e do Fórum de Medellín
ESE Metrosalud

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Uma expressão de Lacan: "um amor mais digno", tomada da "Nota italiana", serve de título a este artigo. O drama do amor é quase uma constante entre os sujeitos que demandam uma análise, a cura promete para o amor outro estatuto, longe da promessa de Eros de fazer de dois um. Este artigo resulta dos dois efeitos que a passagem por uma análise teve para este sujeito no campo do amor, como um dos efeitos terapêuticos da cura apresentada em seu testemunho diante do dispositivo do passe. Testemunho que deixou como resultado a nomeação de A.E.

Palavras-chave: Amor, Digno, Cura, Passe, Testemunho, Efeitos terapêuticos e éticos.


ABSTRACT

A more dignified love", expression by Lacan taken from the Italian Note, serves as the title of this article. Love drama is something common among subjects who demand an analysis; the cure promises to love another statute, far from the Eros' promise of turning the two into one. This article is the result of both effects that the analytical experience provoked in a subject in the field of love, as one of the therapeutic effects of the cure presented in his testimony before the pass device. A testimony which left as result the naming of A. E.

Keywords: Love, Dignified, Cure, Pass, Testimony, Ethical and therapeutic effects.


 

 

O drama do amor faz parte da tragicomédia de todos os seres falantes e é quase uma constante na maioria dos pacientes que chegam a um analista, ao qual demandam um saber sobre seu padecimento na espera de uma solução para o infortúnio apresentado de maneira tão frequente dentro dessa gama de situações, emolduradas entre inibição, sintoma ou angústia, e que configuram o espectro do padecer humano. De modo muito constante, aparecem as desgraças do amor, convertendo-o no principal indutor e motivador que leva, homens e mulheres, à análise.

Na minha clínica, quase cem por cento dos analisantes decidiram ir à análise motivados pela precariedade e pelos contratempos que o fenômeno do amor lhes ocasiona. Quando recordamos os casos clínicos de Freud, podemos observar que a clínica freudiana não era alheia a mesma realidade.

Não podemos esquecer que a psicanálise, ao encarar o campo do inconsciente que colocou em evidência, testemunha, como assinala Lacan em "Televisão", na Pergunta V, uma maldição sobre o sexo, a qual produz os infortúnios no amor. Está aí a histeria para nos relembrar que suas dificuldades deixam-se ver primeiro no amor.

No meu caso, o drama amoroso foi também assunto de primeira ordem. Um fracasso repetido sempre esteve empurrando as retomadas que fiz de análise. Ao final, a análise acabou por conduzir a algo em relação a ele, que hoje posso incluir dentro da lista dos efeitos da cura, colocados no passe, ao lado dos efeitos terapêuticos, que chamamos clínicos e que involucraram algum alcance ético, sem esquecer o efeito didático ou epistêmico, que a Escola pondera quando sanciona um testemunho com a nomeação.

A psicanálise não promete o amor e não pode prometê-lo, pois o amor está sujeito, à mercê da contingência, do azar do encontro de dois sujeitos, em seus dois inconscientes. O amor, simples e claramente, pode acontecer ou não. A análise, porém, produz uma cura de amor, ou melhor, a cura que uma análise levada a seu término produz tem consequências sobre o amor. Essa é a tese de Lacan. Não é circunstancial que nos tenha colocado a promessa de um amor mais digno (LACAN, 1973a/2003, p. 315) em um texto, "Nota Italiana", em que propunha, aos psicanalistas italianos, o dispositivo do Passe. Mas como entender a cura de amor? Não é que o amor não sirva mais ou que chegue a carecer de importância ou que, quiçá, o objeto de amor perca seu valor e seu brilho, e que um objeto valha o mesmo que outro. Não é nesse sentido. A análise – assim como em última instância não cura o sintoma, e sim transforma-o até o ponto de endurecê-lo em sua face real – tem para o amor a promessa de dignificá-lo, e não a de erradicá-lo. Se o amor é signo de um sujeito – como o sintoma definitivamente também o é – depende de um efeito da linguagem. É impossível aspirar a curar a estrutura. O que se pode é modificar a posição do sujeito frente a ela. Nesse sentido, a transformação do vínculo amoroso no pós-análise trata-se de uma dignificação. É um fato constatável em minha cura e foi referido manifestamente no passe: a pesquisa sobre o sintoma conduziu-me a retificar a posição frente ao desejo, frente ao real de meu gozo e teve consequências muito gratificantes, a meu ver, na dimensão do amor.

Fui ao passe, após várias tentativas e depois de uma modificação substancial, com o entusiasmo obtido por ter terminado uma longa análise e ocorrido em razão da última e definitiva tentativa, em relação as outras saídas, por assim dizer, fracassadas. Desprender-se do inconsciente produz um afeto especial, com matiz de um entusiasmo realmente único, que nunca tinha experimentado na vida. Foi o que pude constatar, associado aos benefícios que da cura pude registrar. Dezoito meses depois de ter passado pelo dispositivo e há quase um ano de ter recebido a nomeação, quando reflito sobre o balanço e as consequências da cura, deduzo que o nomeado tenta responder ao que muitos analisantes, no decorrer de suas curas, perguntam-se sob a forma kantiana: o que é possível esperar? Essa é uma das obrigações adquiridas, implicitamente, pelo AE. É assim que entendo a esperança lacaniana frente ao nomeado, de fazer avançar o discurso, que testemunhe, ante sua comunidade, formada por analistas, analisantes e também pelos que não o são, ante as demais comunidades analíticas e ante outras disciplinas, os efeitos do dispositivo analítico. O passe deve ser pensado, creio que foi a ideia de Lacan, em uma perspectiva epistemológica, tentando assegurar o rigor à psicanálise nos tempos da ciência, rigor a uma experiência relacionada a ela, mas que não responde ao ideal do modelo experimental científico.

O passante testemunha o que pôde obter, o alcance efetivo de sua cura. É o saldo do balancete final que o leva à via do testemunho. Esse, ao menos no meu caso, pode-se situá-lo em três níveis.

O efeito didático: a análise me empurrou na via de ser analista. Fui realmente surpreendido, no ponto em que assinalei que o era, quando havia feito o trânsito da posição de analisante à de analista. Somente o fato de adverti-lo e a conjuntura de seu advir justificavam testemunhá-lo ante a Escola. O passante está assegurado de um saber, e não se trata de um saber qualquer. Saber de seu inconsciente, um saber a que chamamos S2, com o qual o sintoma recobria-se, mas também um saber sobre o objeto pulsional, matéria-prima do fantasma e trama substancial do sintoma, além de uns pedaços de saber, que Lacan chamou de S1, produtos da operação. Constituem todos a armação com a qual cada um confecciona seu destino, mas, em adição e de modo fundamental, o passante assegurou-se do ponto de falha que há no saber, que irrompe, em um momento do final, como certeza.

Os efeitos clínicos são variados. Hoje posso assegurar, como fiz diante dos passadores, o efeito terapêutico da cura ante o sintoma. Um sintoma vindo do pensamento, ao qual se impunha um juízo, e não o melhor dos juízos, constituído no que consegui cristalizar como sintoma no início da cura, acabou por ceder, deixando descoberto um gozo pulsional separador do Outro, ao qual terminei por aderir como princípio de distinção que me confere uma impressão digital subjetiva. A angústia cedeu quando se tornou sujeito do desejo e, quatro anos depois, não retornou.

Gostaria de insistir, em função da temática de nosso encontro, sobre outro efeito na via do terapêutico e em relação ao amor, que, na conjuntura de meu caso clínico, ressaltei no dispositivo do passe.

A possibilidade do encontro amoroso estava dada a partir de um traço exigível no objeto, associado a um elemento de linguagem inconsciente, tomado do pai, que condicionava a possibilidade de desejar e gozar de uma mulher. Não haver consentido com isso, fez-me errar de maneira reincidente nesse campo, com consequências mais do que prejudiciais à pessoa e ao sujeito. Enfrentar a neurose levou-me até lá, não havia escapatória. Admiti-lo e consenti-lo teve necessariamente consequências clínicas terapêuticas que permitem que hoje desfrute da companhia de uma mulher, com os efeitos subjetivos inerentes a isso, com consequências éticas às quais fiz alusão no passe, que hoje posso registrar indubitavelmente.

Os efeitos éticos: orientar-se frente ao real traz para o sujeito consequências impensadas, até que se deem, e que posso resumir em uma porção do desejo. Assumir um gozo próprio que incessantemente escapulia e punha do lado do Outro, mas também reconhecer-se na posição sexuada, a partir de um gozo fálico articulado a um objeto pulsional, não qualquer, e evidenciando, mais além do limite da função fálica, esse Outro do sexo inalcançável, o Outro feminino, eterno enigma, ao qual termino por admitir e tolerar na aventura, sempre errática para mim, no encontro com o Outro da diferença, até antes da cura. Assumir a identidade sexual a partir de uma forma de gozar, e mais além do sexo biológico do partenaire, consentir e suportar a Outridade feminina também teve consequências éticas ao definir-me como heterossexual, aspecto importante para quem, no momento da demanda de análise, a dúvida angustiante sobre sua condição sexuada o havia levado à busca urgente de seu próprio inconsciente.

A promessa analítica no terreno do amor introduz algo novo (LACAN, 1973b/2003, p. 550-556). Na página 555 dos Outros Escritos, na "Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos", Lacan nos esclarece isso de novo. Não é mais que a introdução da transferência. Nessa, trata-se de um amor, precisando-nos que é tão ilusório como qualquer outro, mas, graças ao dispositivo, o vínculo transferencial ganha uma forma nova ao implantar ali uma subversão. Essa consiste em introduzir um partenaire, o analista, que opera enquanto objeto, e não enquanto sujeito, estando ali despojado de seus sentimentos, de seu desejo como sujeito. Com a característica particular que frente a esse amor que ali surge esse objeto, esse partenaire do amor, o analista, tem a possibilidade de responder, o que não se dá em suas outras formas. O amor, essencialmente, não pede resposta. O amor demanda amor, e sempre mais, porque parte dessa falha que a linguagem, o que chamamos de Outro, introduz no sujeito. Por isso, o amor é recíproco, dá-se de sujeito a sujeito, entre inconscientes. O analista, na cura, não entra como tal, não há uma relação intersubjetiva entre analisante e analista. O vínculo transferencial introduz uma disparidade; ali está o sujeito, seu eu, a imagem do analista, o Outro da linguagem e o objeto que causa o desejo, do qual o analista faz semblante. Na transferência, trata-se de um amor que interroga o sujeito. Esse novo partenaire, criado por seu artifício, abre-lhe a possibilidade de resposta, revelando, entre outras coisas, a ineficácia e a impotência do amor para alcançar a unidade, o mito delirante de uma presumida fusão dos dois partenaires do amor que tenderia a alcançar a dita unidade, e ilumina o sujeito sobre a ignorância que comporta o amor, pois como a paixão desconhece e ignora o desejo, a análise o denuncia ao apontar esse pedaço, essa impossibilidade mesma que faz de causa para o desejo. Em outras palavras, o analisante percebe, em carne própria, o desacerto de Eros para fazer Um, a partir do dois do casal no amor, mas é socorrido por um amor que não falsifica, que não ignora que, em essência, no amor trata-se da exaltação de si mesmo e que põe em evidência seu aspecto narcisista.

Utilizei-me desta expressão de Lacan, tomada da "Nota Italiana", de 1973, em que ele precisa que o saber em jogo, para o analista, é que não há relação sexual que possa pôr-se em escrita. É o que assinala o saber inventado por Freud a partir dos feitos do inconsciente, e ali é enfático ao precisar como a análise, ao aumentar os recursos e revelar do amor sua cara real, permite prescindir dessa incômoda relação para fazer que o amor seja mais digno.

O termo papear não é um termo qualquer. É um falar indiferente e sem importância, falar muito e sem substância, jogar conversa fora, o que, no seminário Mais, ainda, chama disco "urscourant", disco sem mais, fazendo referência ao que gira e gira sem objetivo, sem consequências. Na Colômbia, dizemos "votar corriente", um discurso sem consequência para o sujeito por não tocar o real. Um amor mais digno faz ressoar o "das Ding" alemão, que conhecemos como a Coisa, como o real puro. Um amor esclarecido pelo real, um amor menos falador, menos apologético e exaltador do objeto, que reclama menos e que reconhece no partenaire não só um objeto erótico, mas também um sujeito que deseja e, no meu caso, pude, por sua vez, admitir que está habitado pela mais profunda e incompreendida alteridade.

Por último, gostaria de assinalar que apesar, como indica Lacan expressamente no seminário A Transferência, de a psicanálise não se ocupar da "organização de palestras para a união sexual, nem de fazer viver o corpo na dimensão da nudez e da captura pelo ventre" (LACAN, 1960-61/1992, p. 253), obter o desinflamento fálico que a travessia do fantasma provê ao sujeito, ao advertir a falta no Outro, o faz mais propenso ao ato, incluindo o ato do amor, dotando-o, ao menos para o obsessivo, de uma genitalidade menos ordinária e de qualidade muito maior. O ato do amor, ao menos para o homem, é a colocação em ato de sua perversão poliforma de macho. A dignidade que a análise provê ao sujeito permite o anodamento, em um mesmo objeto, do imaginário do amor, sustentado na unidade da imagem do partenaire, do simbólico do desejo articulado ao significante e do real do gozo da pulsão. Para gozar do corpo de uma mulher, para poder fazer amor com ela, é obrigatório apropriar-se da castração e, no ponto limite da função fálica, abordá-la como objeto do desejo; ela no lugar do objeto que o causa, como suplência do gozo que falta.

 

Referências

LACAN, J. (1960-61). O seminário, livro 8: A transferência. Versão brasileira de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.         [ Links ]

__________. (1973a). Nota Italiana In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.         [ Links ]

__________. (1973b). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: jorgee@une.net.co

 

 

Tradução: Maria Claudia Formigoni
Revisão da tradução: Ida Freitas
* A.E. 2013-2016. Membro da Escola e do Fórum de Medellín. Médico geral da ESE Metrosalud.
1 Trabalho apresentado em Campo Grande, Brasil (novembro de 2014)

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