SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número31(Des)enlaces clínicos: Breves apontamentos sobre o caso HansDo amor de transferência à escrita de uma carta de amor índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.31 Rio de Janeiro out. 2015

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO: LAÇOS E DESENLACES

 

Fazer-se um nome no público: a dimensão do público nas psicoses

 

Making a name in the public realm: the dimension of the public in psychoses

 

 

Beatriz Helena Martins de Almeida*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Fóruns do Campo Lacaniano - FCL-SP
Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo
Curso de Formação em Acompanhamento Terapêutico do Instituto de Desenvolvimento e Pesquisa da Saúde Mental e Psicossocial A Casa, em São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo procura enlaçar duas distintas elaborações lacanianas acerca das psicoses. Argumenta que o sucesso na promoção de um significante Ideal na bateria significante dos delírios ou ainda outras invenções – como pelas artes, e até mesmo as passagens ao ato, desde que façam passar o nome próprio ao público –, podem funcionar como suplência à carência do significante paterno. E, mais ainda, aproveitando a contribuição de Julien, procura a partir de citações de Lacan, enfatizar a importância da função do reconhecimento. Reconhecimento, que por um efeito retroativo desde o campo do Outro, de um nome que se faz público, permite enodar os registros pelo sinthoma e enlaçar efeitos de sujeito no campo social, o que podemos designar como função de autoria, que só se reconhece desde o público. O público faz o artista e promove laço social.

Palavras-chave: Psicose, Falo, Nome próprio, Sinthoma, Laço social.


ABSTRACT

This article sets to outline two distinct Lacanian approaches to psychoses. It argues that a successful promotion of the Ideal signifier in the signifying chain of delirium or other inventions, such as those through the arts, for example, or even the passage to the act, provided they bring the proper name to the public, can function as a replacement for the lack of the paternal signifier. Furthermore, taking advantage of Julien's contribution, and based on Lacan's quotes, it seeks to emphasize the importance of the role of acknowledgement. It is an acknowledgement which, through a retroactive effect from the field of the Other, of a name that is made public, allows the tying up of the registers made by the sinthome, and also the effects of the subject in the social field. We may designate this as the authoring function. An authoring process which is only recognized once it reaches the public sphere. The public makes the artist and promotes the social bond.

Keywords: Psychosis, Phallus, Proper name, Sinthome, Social bond.


 

 

Vou começar com uma citação de Phillipe Julien (1999), que servirá de argumento para nortear este trabalho:

Schreber se curou por uma passagem ao público. Cito Freud: "Contrariamente à apresentação do fantasma de feminilização, o doente não empreendeu nada mais que a publicação de suas memórias, para fazer reconhecer sua missão de redentor". Isto é capital, é a queda do delírio. "Se fazer reconhecer" pelo público graças às memórias escritas. Freud chama isto uma cura e Lacan chama isto ser o sintoma. Então, em sua prática clínica da psicose, é importante que vocês destruam a fronteira entre o psíquico e o social. Vejam o que a prática analítica da psicose nos ensina: não procurem o êxito na vida privada com o psicótico, vocês fracassarão. Estou de acordo com Lacan neste ponto. É uma falsa separação, o psíquico de um lado e o social de outro. [...] É isto a cura. Eu posso dar centenas de exemplos de fim de análise com psicóticos nesta direção que Lacan nos indica: ajudar um psicótico numa participação social e não se preocupar, nem se debruçar sobre a vida privada, quer dizer, sobre o gozo fálico (p. 71).

Continuo citando Julien, para explicitar seus argumentos:

Enfim, o que está em jogo no delírio não é um negócio privado. Trata-se de testemunhar uma mensagem recebida e de comunicá-la publicamente (Ibid., p. 29).

[...] É o caso de Joyce. Ele é. Ser uma personalidade: Joyce conseguiu "fazer-se um nome" no público. Pode-se observar que, hoje em dia, muitos psicóticos não deliram porque conseguiram um êxito profissional e social; e é graças a esta compensação, a esta suplência do sintoma que não há delírio – mas o nome-do-pai está foracluído [...] Só que o reverso da medalha é a vida privada, a vida não pública (Ibid., p. 51).

Sobre [Aimée], dirá Lacan, [...]: esta pessoa tinha seu nome nos jornais, em seguida a um gesto que ela havia cometido contra uma atriz, então, célebre. Ela é um sintoma, fala-se dela publicamente. Então três semanas depois, o delírio desaparece, cai. Vinte dias depois, diz Lacan. Definitivamente. Sim, porque ela ganhou, tornou-se uma personalidade. E Lacan vai publicar a sua história [...], confirmando este ato. [...] É por isso que lhes digo: a desqualificação da vida privada, tão impressionante nos psicóticos, não é um déficit, mas um apelo a uma inserção social bem-sucedida, onde o nome próprio jamais seja reduzido a um nome comum (Ibid., p. 56).

Julien está dizendo "ajudar um psicótico numa participação social", mas não está dizendo só isso, e sim algo mais: "não se preocupar, nem se debruçar sobre a vida privada", "não procurem o êxito na vida privada com psicóticos, vocês fracassarão". Mas por que os psicóticos fracassam na vida privada? E Julien nos dá a resposta, fazendo uma equivalência entre vida privada e gozo fálico.

Para avançarmos com essa questão, proponho retomarmos algo da teorização da constituição do sujeito, no que concerne ao falo.

Freud chamou Complexo de Édipo a operação de constituição do sujeito nas neuroses, Lacan chamou-a metáfora paterna. Em poucas palavras, para Lacan o significante Nome-do-Pai viria a significar o enigma do sujeito diante do Desejo da Mãe, enigma em que o infans se vê concernido, devido às ausências e presenças maternas, que lhe indicam desde o campo do Outro materno a sua insuficiência em saturar tal desejo. Aponta-se aí um para além do desejo materno, que divide a mãe e o sujeito pela falta. O falo é o significante que designa o objeto como inexoravelmente perdido e sempre buscado. Isso é o desejo, que desde então marca a vida psíquica do sujeito. Essa operação de constituição do sujeito é instaurada pelo pai, que no segundo tempo do complexo priva a mãe de gozar de sua cria, e no terceiro tempo oferece à mãe aquilo que ela busca: o falo, permitindo, assim, ao infans, identificar-se às insígnias paternas para ter no momento oportuno os seus próprios objetos. Operação que atravessa a dialética do ser ou ter o falo para se resolver em termos de identificação ao pai. A significação fálica ordena os campos simbólico e imaginário do sujeito, articulando o vazio de objeto à falta significante.

O que define a estrutura psicótica, para Lacan, é a foraclusão do significante Nome-do-Pai; o efeito disso é que não se inscreve para o sujeito psicótico o significante falo, enquanto significante da falta no campo do Outro. Consequentemente, o psicótico não ordena o seu imaginário em termos da falta a ser, ao contrário, apoia-se na imagem do outro, seu semelhante, para dar conta do enfrentamento do que acredita que deva fazer na administração de sua vida cotidiana. O sujeito psicótico busca responder às demandas do Outro se oferecendo como objeto que o completa, conferindo-lhe assim consistência.

No texto A significação do falo, Lacan (1958a/1988) diz:

[...] que o complexo de castração inconsciente tem uma função de nó: [...] numa regulação do desenvolvimento que dá a [...] sua razão, ou seja, a instalação, no sujeito de uma posição inconsciente sem a qual ele não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu sexo, nem tampouco responder, sem graves incidentes [ao desejo] de seu parceiro na relação sexual, ou até mesmo acolher com justeza às [necessidades] da criança daí procriada (p. 692).

Essas palavras de Lacan já demonstram os obstáculos com que vão se deparar os sujeitos psicóticos na vida privada, pela carência da significação fálica, em relação à identificação com o tipo ideal do seu sexo. O que isso quer dizer? Quer dizer que independentemente da anatomia, o sujeito, por meio de seu posicionamento em relação ao falo, pode identificar-se com um tipo ideal masculino ou feminino e definir uma consequente escolha de objeto sexual. Esta operação psíquica, de onde o sujeito sai provido de um Ideal de eu, só é possível pelo advento da castração, que institui o feminino como Outro sexo, como alteridade absoluta. Nesse contexto ganham sentido os aforismos lacanianos: a mulher não existe e não há relação sexual, que apontam para o desencontro fundamental, não há relação de complementaridade entre os sexos. Considerando-se a premissa fálica para todo o ser humano, o sexo feminino resta como o que escapa à representação. A mulher não existe, porque seu sexo não pode ser representado. Não há relação sexual entre um homem e uma mulher, porque cada um, no sexo, está em relação com o falo e não com o outro. Estamos todos, neuróticos, remetidos ao falo enquanto significante da falta, mas, muito embora as mulheres sejam não toda fálicas, pois seu sexo não é passível de representação, ainda assim elas participam do ordenamento fálico.

Julien equivale vida privada a gozo fálico.

Na travessia do complexo edípico pelos sujeitos neuróticos, operação da metáfora paterna como designada por Lacan, os sujeitos saem transformados no que tange à realidade, ao ideal e ao supereu. O sujeito vê sua realidade conformada pela fantasia, identifica-se ao tipo ideal de seu sexo ao preço de uma perda de gozo ao nível do ser, o gozo fica reduzido a um pedaço de corpo, ao que chamamos de gozo fálico. Já as mulheres, essas experimentam o que Lacan designou como gozo do Outro, para além do gozo fálico. Gozo que escapa ao significante, sobre o qual, como indica Lacan (1972-73/1985), não dizem nem uma palavra.

O psicótico dá consistência à relação sexual. Em termos de gozo, o psicótico se mantém em posição de objeto de gozo do Outro, gozado pelo Outro, o que se convencionou chamar de gozo do ser. O psicótico dá consistência à relação sexual, trata-se de uma consistência imaginária, em uma relação de complementaridade: há relação sexual, porque o psicótico é aquele que faz um com o Outro. É nesse sentido, e a clínica nos revela, que muitas vezes um encontro faltoso com o Outro sexo, não simbolizado, acaba por deflagrar um surto em um sujeito psicótico.

Sexo, feminilidade, paternidade, origem e morte são questões universais concernentes à castração, que embaraçam neuróticos e levam psicóticos ao surto, visto que são questões que não prescindem do aparato da significação da falta constitutiva do humano. Na falta da falta, quando não há inscrição da significação fálica, o sujeito precisará inventar, construir saídas para responder a essas questões fundamentais.

Na direção da solução psicótica para a carência do significante paterno, abordarei, a partir de agora, duas elaborações lacanianas diferentes: a metáfora delirante pelo ordenamento do significante Ideal e o sinthoma pelo advento de um nome para o pai, um nome próprio.

Vou começar pela metáfora delirante, mas para isso, é preciso antes retomar a função do falo. Sigamos com Rabinovich (2005):

O falo, então, é situado como regulador do desenvolvimento; função esta que se funda na ideia de uma proporção, de uma medida comum, de uma razão no sentido matemático, que oferece um padrão de medida que lhe permite operar na estruturação dinâmica dos sintomas (p. 11).

O significante fálico designa, nomeia o conjunto dos significados (p. 22).

No nível fálico, inclusive clinicamente, as coisas são razoáveis, têm uma medida comum que traz consigo a possibilidade de uma razão. As coisas se tornam muito pouco razoáveis quando se trata do objeto a, pois o objeto é solidário do número irracional, do incomensurável [...] o falo é a razão – a proporção matemática – das neuroses e das perversões (pp. 48 e 49).

Em relação à saída pela metáfora delirante nas psicoses, Lacan (1958b/1998), no texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, demonstrou que, especificamente no caso das paranoias, a estabilização de um sujeito psicótico após o surto se dá pela substituição metafórica do significante do Nome-do-Pai foracluído por um significante Ideal. Dito de outro modo, ali onde o Nome-do-Pai não se inscreveu pode funcionar em suplência um significante Ideal que ordene a bateria dos significantes do sujeito, ou seja, que ordene o seu delírio de maneira que o sujeito possa referir-se e fazer-se representar a partir do significante Ideal.

Rabinovich (2005, p. 35) salienta que:

Falo e Ideal são marcas diferentes; Lacan fala da marca do ideal, mas a marca do ideal não é a marca desse significante privilegiado, o falo. Em todo caso, o ideal é outro significante privilegiado que executa outras funções, mas não é o significante fálico, é um significante muito mais submetido às variantes da história de cada sujeito. O significante fálico não depende nem varia com a história de cada sujeito. [...] Quando dizemos "falo", remetemos a algo que tem a ver estritamente com a sexualidade, [...] porque o falo é o significante privilegiado da marca pela qual se unem sexualidade e linguagem [...]. Nesse sentido, o significado do falo é uma marca universal, é válida para "todo homem". Os ideais não, podemos dizer que todo sujeito tem que ter um ideal, mas não há um significante que em todas as baterias significantes, qualquer que seja a linguagem que um sujeito use, opere como ideal. As formas que o ideal assume mudam muito mais com as diversas ordens simbólicas e as histórias de cada sujeito do que o referente ao significante fálico.

Não existe o universal das psicoses. O delírio, enquanto fabricação de sentido em resposta à perplexidade que invade sujeitos psicóticos em momentos em que uma crise se deflagra, apresenta-se como excessivo, dissonante e fora de medida em relação à norma fálica vigente. A solução elegante das psicoses se dá pela promoção de um significante Ideal no delírio. Significante forjado no particular da história do sujeito, portanto, não universalizável. Significante consistente e não vazio, e sim, tal qual o sujeito possa fazer-se representar. Aqui reside a dificuldade para o psicótico, pois devido à carência da referência fálica, seu delírio comparece no social como não compartilhável desde o referente comum que faz comunidade: o falo. No entanto, essa operação da metáfora delirante não prescinde – tal como no chiste – do reconhecimento advindo do Outro, em sua função de ratificar a mensagem e promover o acesso ao laço social. "Fazer-se um nome no público".

De que se trata nesses testemunhos delirantes? Não digamos que o louco é alguém que vive sem o reconhecimento do outro. Se Schreber escreve essa obra enorme é justamente para que ninguém ignore a respeito do que ele sofreu [...]. Isso se propõe justamente como um esforço para ser reconhecido. Já que se trata de um discurso publicado, um ponto de interrogação é suscitado pelo que pode bem querer dizer, nessa personagem tão isolada por sua experiência que é o louco, a necessidade de reconhecimento. O louco parece à primeira vista distinguir-se por não ter necessidade de ser reconhecido. Mas essa suficiência que ele tem de seu próprio mundo, sua autocompreensibilidade que parece caracterizá-lo, não deixa de apresentar alguma contradição (LACAN, 1955-56/1988, p. 93).

Essa citação de Lacan permite entender a contradição observada na clínica com pacientes psicóticos. Se por um lado é possível observar, por parte desses pacientes, reclusões voluntárias que resultam, por vezes, em pedidos de internação como maneira de se defenderem da invasão do Outro – visto que sua posição estrutural é a de objeto de gozo do Outro –, por outro, não à toa, há um fenômeno bastante comum: psicóticos recorrendo aos órgãos públicos para fazerem reivindicações de todo tipo. Todas as manifestações nas psicoses são tentativas de fazer laço social, tentativas de o sujeito incluir sua maneira pouco razoável e excêntrica de forjar efeitos de subjetivação, tentativas essas, que, no entanto, se endereçam ao Outro, como esclarece Quinet (2006, p. 54):

A direção do tratamento na esquizofrenia vai no sentido daquilo que não se efetuou para ele e que ele mesmo se esforça em realizar. Daí o clínico não dever a qualquer custo eliminar os sintomas do sujeito [...]. O outro passo que devemos dar é considerar todos os fenômenos dos pacientes como tentativas de estabelecimento de algum vínculo com o outro. Nesse sentido, são tentativas de fazer laço social [...] deve-se respeitar a singularidade especial desses sujeitos, que por vezes inventam sintomas bem especiais para lidar com esse fora.

E esse fora diz respeito tanto ao espaço social quanto à foraclusão. Os sujeitos psicóticos inventam sintomas para lidar com esse fora, introduz-se assim uma outra elaboração de Lacan como solução para as psicoses: o sinthoma.

As articulações de Lacan, posteriores ao texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses", permitem avançar a clínica das psicoses: do efeito estabilizador da substituição metafórica do significante do Nome-do-Pai foracluído pelo significante Ideal à suplência pelo sinthoma.

No Seminário O Sinthoma, Lacan (1975-76/2007), por meio das elaborações dos nós borromeanos, refaz sua teoria em relação às estruturas subjetivas, falando não mais em metáfora paterna e foraclusão do Nome-do-Pai, mas em nomes-do-pai, no plural, em que cada sujeito tem que forjar sua solução singular para amarrar os registros real, simbólico e imaginário, o que pode ser feito a partir de um quarto nó, que Lacan chamou: sinthoma.

Nesse seminário, Lacan aventou que James Joyce, o escritor, teria uma psicose que não se desencadeou pelo artifício de ser o sinthoma. Lacan tomou Joyce como paradigmático para suas elaborações a respeito das pluralizações do nome-do-pai. Joyce, autodesignando-se "O artista", teria se virado com a carência paterna, forjando ele mesmo, não o nome-do-pai, mas, o pai do nome.

No nó de Joyce, Lacan localizou uma falha no enodamento do imaginário, que permitia que este facilmente se desfizesse. A escrita joyceana estaria, então, amparada no cruzamento do simbólico com o real, possibilitando uma invenção fora do sentido. Nesse caso, o ego – ego de artista – seria o quarto nó que amarraria os registros no lugar da falha.

Lacan, a respeito de Joyce:

Por que não conceber o caso de Joyce nos termos seguintes: Seu desejo de ser um artista que fosse assunto de todo mundo, do máximo de gente possível, em todo caso, não é exatamente a compensação do fato de que, digamos, seu pai jamais foi um pai para ele? Que não apenas nada lhe ensinou, como foi negligente em quase tudo.

[...] O fato de que possamos colocar assim um monte de nomes implica apenas o seguinte – fazer entrar o nome próprio no âmbito do nome comum (Ibid. p. 86).

Lacan indicou que, por uma invenção, o sujeito pode fazer-se um nome. Nome próprio, visto que se basta em si mesmo, fora do sentido. E não um nome comum preso ao sentido. Fazer-se um nome em suplência à carência do significante paterno, de maneira a poder arranjar-se com os registros é o efeito de autoria que Lacan chamou ser o sinthoma. O importante dessa elaboração é que Lacan, não se atendo somente à solução pela paranoização, ou seja, pelo advento da metáfora delirante por meio do trabalho sobre o delírio, abre para a pluralização das soluções nas psicoses. Trata-se, portanto, de inventar.

É interessante notar como essas duas elaborações diferem em relação ao sentido. Na primeira solução, pela metáfora delirante, faz-se recurso a um acréscimo de sentido, o delírio confere sentido que serve de referência ao sujeito. Já na segunda elaboração, o caminho parece inverso, a solução se dá fora do sentido, pelo nome próprio que prescinde de apoio no sentido. No entanto, ambas as elaborações são articuladas ao público.

Ainda acerca da dimensão do público nas psicoses, é importante lembrar que Lacan realizou apresentação de pacientes durante aproximadamente trinta anos. Para ele, a apresentação de pacientes tem um lugar privilegiado na teorização e na transmissão do tratamento das psicoses. Portanto, podemos considerar as elaborações a respeito do tema como paradigmáticas para a clínica das psicoses.

Sobre o papel do público nas apresentações de pacientes, acompanhemos Porge (1996, p. 32):

O público encarna um terceiro que se interpõe na relação dual: interpõe-se à medida que nenhum dos dois atores [paciente e entrevistador] tem o controle. Se controle deve haver, isso não passará pelo enfrentamento dos dois atores, mas pela tomada pela palavra de algo em que o público será lugar de realização de uma intenção (como no Witz segundo Freud) que não é formulado antecipadamente e que não é controlável por nenhum dos dois interlocutores.

[...] O público não encarna tanto uma função de decifração do dizer, quanto uma função de reconhecimento [...]. "O espírito enquanto processo social" serve de título a Freud em seu livro sobre o Witz.

Relembremos as palavras de Phillipe Julien: "ajudar um psicótico em uma participação social" a "se fazer reconhecer pelo público". Nesse sentido, as apresentações de pacientes ressaltam a importância da dimensão do público no tratamento das psicoses, orientado para o laço social. O público, como no chiste, ratifica desde o campo do Outro os efeitos de surpresa que esse encontro inédito pode permitir advir.

Não por acaso, as entrevistas terminam em torno do tema dos planos para a saída da internação e para o futuro, isto é, na perspectiva de uma participação social. Seja pelas soluções de ordem prática em relação à família, moradia, trabalho e tratamento, bem como pela valorização dos significantes em torno dos quais pode emergir o significante Ideal que vai lastrear o imaginário, ou mesmo, de maneira mais eficaz, em torno de algo em que o sujeito possa fazer-se nome no campo social.

Acompanhemos Soler (2009), em Os nomes da identidade:

Gostaria de interrogar em que Lacan se apoia, em 1975, quando desliza do Nome do pai ao Pai do nome, porque não creio que seja apenas o gosto pelos jogos de palavra que o tenha inspirado. O "fazer-se um nome", que aparentemente deixa todo o peso do nome no próprio sujeito, não deve enganar-nos quanto à inexistência da autonominação, o que quer dizer que um nome próprio, embora sintoma, é sempre solidário a um laço social. Vejam o homem dos ratos. Podemos dizer que rato vem do seu inconsciente como o nome de um gozo alocado em sua relação fantasmática com a dama e o pai, mas foi preciso Freud para designá-lo como homem dos ratos e lhe dar, assim, seu nome de ingresso na análise. Do mesmo modo, Joyce o sintoma é Lacan quem nomeia. Aliás, o mesmo acontece com o nome que ele se deu primeiramente: o artista, que precisou ser confirmado pelo público, digamos, pelo século. Sem este laço, ele teria sido apenas o megalomaníaco que Yeats percebera ao encontrá-lo no início de sua juventude. Em todos os casos, é necessário que aquilo que vou chamar de oferta à nominação para designar a inscrição do sujeito seja recebida por um Outro. É o mesmo que dizer que o nome está à mercê do encontro incalculável. Ele então participa da contingência – exatamente como o amor (p. 174).

[...] O dizer de nominação tem função borromeana. Ele enoda as três consistências, e correlativamente prende o real em um nó social, imaginário-simbólico. De um só golpe "ele faz nó e nós", se posso dizê-lo (p. 175).

De um só golpe, ao fazer nó – enodar algo do real ao imaginário e ao simbólico –, se faz nós, laço social.

Para finalizar, uma vinheta clínica que o corrobora.

Em uma ocasião em que abordei esse tema em uma apresentação do Seminário da Rede Clínica no FCL-SP, um colega, Fernando Silvério Alves1, relatou-me um pequeno fragmento clínico que, além de me permitir avançar com a questão, agora ilustra este trabalho:

João é um jovem que passou por uma primeira internação na adolescência quando cursava o ensino médio. Devido à gravidade do quadro e dos transtornos característicos de uma esquizofrenia, interrompeu os estudos. Após um período no hospital psiquiátrico, começou a ser atendido no serviço de saúde mental do município onde mora. Manteve-se relativamente estável por um certo tempo quando numa segunda crise, mais grave dessa vez, mostrou-se violento e foi internado novamente.

Ao sair da segunda internação, voltou a participar de algumas atividades do CAPS, porém seu isolamento e seu mutismo tinham se acentuado quando passei a atendê-lo. Com uma expressão facial vazia não respondia ao que lhe era perguntado.

Porém, um dia ao dizer-lhe "bom dia", ouço: "good morning class" saindo de sua boca, ao que respondo imediatamente "good morning". Continuo a conversa com mais duas ou três perguntas em inglês que o fazem "vir para a conversa". João pergunta-me se eu falo inglês e se interessa por saber como determinadas expressões são ditas nesse idioma.

A partir daí, começa a se interessar por saber o que falavam algumas músicas em inglês que tinha gravadas em seu MP3 e passamos então a procurá-las na internet e ouvi-las. Cabe lembrar que sua mãe trabalhava em casa e que o rádio ficava ligado o dia todo. Assim, além das músicas em inglês, algumas das quais foram baixadas e gravadas em seu MP3, começou a pedir para ouvir as que tocavam durante o dia na programação da rádio local.

Seu interesse pelas músicas e pela programação da rádio fez com que fosse proposto um karaokê semanal no CAPS e uma visita à emissora.

Um ponto fundamental de todo esse movimento para o João foi descobrir que podia participar da programação da rádio pedindo para que uma determinada música fosse tocada e oferecida às pessoas que ele quisesse. Seu nome era assim citado, tornando-se público e reconhecido por aqueles que ouviam e comentavam o seu pedido.

Foi criada para ele uma conta de acesso ao site da rádio para que os pedidos fossem feitos, além dos pedidos feitos pelo telefone. João conhece atualmente os profissionais que trabalham na emissora com os quais mantém contato.

Nota-se ter havido, a partir daí, uma expansão paulatina dos seus laços sociais. João passou a participar de algumas atividades e cursos fora do ambiente institucional. Atualmente movimenta-se sozinho pela cidade ajudando sua mãe nas compras para a casa e para o trabalho dela.

Abriu um perfil numa rede social onde mantém contato com amigos de dentro e fora do CAPS.

Não houve mais internações.

Neste artigo procurei enlaçar duas distintas elaborações lacanianas acerca das psicoses. Argumentei que o sucesso na promoção de um significante Ideal na bateria significante dos delírios ou ainda outras invenções – como pelas artes, e até mesmo pelas passagens ao ato, desde que estas façam passar o nome próprio ao público –, podem funcionar como suplência à carência do significante paterno. E, mais ainda, aproveitando a contribuição de Julien, procurei a partir de citações de Lacan enfatizar a importância da função do reconhecimento. Reconhecimento que, por um efeito retroativo desde o campo do Outro, de um nome que se faz público, permite enodar os registros pelo sinthoma e enlaçar efeitos de sujeito no campo social, o que podemos designar como função de autoria, que só se reconhece desde o público. O público faz o artista e promove laço social. É o que se pôde constatar pela vinheta clínica apresentada: de um só golpe "ele faz nó e nós".

 

Referências

JULIEN, P. As psicoses – um estudo sobre a paranóia comum. RJ: Companhia de Freud, 1999.

LACAN, J. (1958a). A significação do falo. In: __________. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. RJ: Jorge Zahar Editores, 1998. p. 692 a 703.         [ Links ]

__________. (1958b). De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses. In: __________. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. RJ: Jorge Zahar Editores, 1998. p. 537 a 590.         [ Links ]

__________. (1955-56). O seminário, livro 3: As psicoses. Tradução de Aluísio Meneses. RJ: Jorge Zahar Editores, 2ª ed., 1988. 366p.         [ Links ]

__________. (1972-73). O seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução M. D. Magno. RJ: Jorge Zahar Editores, 1985. 248p.         [ Links ]

__________. (1975-76). O Seminário, livro 23: O Sinthoma. Tradução Sérgio Laia. Segunda edição. RJ: Jorge Zahar Editores, 2007. 201p.         [ Links ]

QUINET, A. A psicose e o laço social – esquizofrenia, paranoia e melancolia. RJ: Jorge Zahar Editores, 2006.

PORGE, E. A apresentação de doentes. Pulsional – Boletim de novidades, Apresentação de doentes. São Paulo, n. 87, pp. 19-40, ano IX, 1996.

RABINOVICH, D. A Significação do Falo – uma leitura. Tradução André Luis de Oliveira Lopes. RJ: Companhia de Freud, 2005.

SOLER, C. Os nomes da identidade. Tradução Vera Pollo e Sônia Borges. Trivium – Estudos Interdisciplinares, Psicanálise e Cultura. Rio de Janeiro, pp. 171-177, ano I, edição I, segundo semestre 2009. Disponível em <//www.uva.br/trivium/edicao1/conferencia/os-nomes-da-identidade.pdf>. Acesso em 01 jun. 2015.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: almeidabia@gmail.com

Recebido: 12/07/2015
Aprovado: 10/08/2015

 

 

* Psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo. Coordenadora da Rede de Pesquisa sobre as psicoses de Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo. Coordenadora, supervisora clínica e professora do Curso de Formação em Acompanhamento Terapêutico do Instituto de Desenvolvimento e Pesquisa da Saúde Mental e Psicossocial A Casa, em São Paulo.
1 Fernando Silvério Alves é psicanalista, participante de Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo (FCL-SP). O pequeno fragmento clínico citado me foi enviado por Fernando, a quem muito agradeço.

Creative Commons License