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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.31 Rio de Janeiro out. 2015

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO: LAÇOS E DESENLACES

 

Do amor de transferência à escrita de uma carta de amor

 

From transference love to writing a love letter

 

 

Ingrid de Figueiredo Ventura*

Fórum do Campo Lacaniano - SP
Pontifícia Universidade Católica - São Paulo
Universidade Federal do Pará

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do amor de transferência, o analista é convocado a ocupar a posição de semblante de objeto a como o lugar daquele que contém o agalma, objeto precioso que irá inaugurar o lugar onde o desejo do sujeito é posto em causa. Este lugar só é possível de ser ocupado a partir do desejo do analista. No percurso de uma análise, o analisante empreende uma busca por um saber sobre a sua verdade, pois o desejo se revela à medida que nada se sabe. No entanto, entre saber e verdade há uma disjunção em função da barreira do gozo, de modo que o sujeito se depara com o muro de linguagem que representa a própria castração e a inacessibilidade da verdade. O trabalho de análise contém uma aposta de acesso ao real, isto é, de transposição do muro, que só pode ocorrer pela via da fantasia fundamental. Em L'étourdit (1972), Lacan propõe a psicanálise como um aturdimento que endereça o sujeito ao equívoco ab-senso, colocando em questão o regime discursivo de lalíngua que opera para além da função fálica, de modo a tocar o Outro gozo. Essa possibilidade aponta para o que Lacan nos diz quando afirma que devemos ir além do inconsciente pelo equívoco no Seminário L'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre (1976-77). Este trabalho interroga acerca dessa aposta de transposição do muro de linguagem, em que saber, verdade e gozo estão articulados. Esta questão nos endereça à hipótese de que é possível valer-se do princípio da inexistência da relação sexual para essa travessia, de modo a produzir ou escrever uma carta/letra de amor ao final de uma análise que considere a ressonância do desejo. Talvez essa seja a via para a emergência de um desejo totalmente inédito, que é o desejo do analista.

Palavras-chave: Amor, Transferência, Gozo, Princípio da inexistência da relação sexual, Desejo do analista.


ABSTRACT

From the transference love, the analyst is convened to occupy the position of object a countenance as the place that containing the agalma, a precious object that will open where the desire of the subject is questioned. This place can only be occupied from the analyst's desire. In the course of analysis, the analysand undertakes a search for a knowledge about its truth, because the desire is revealed as nothing is known. However, between knowledge and truth there is a disjunction depending on the jouissance barrier, so that the subject is facing the language wall that representes its own castration and the inaccessibility of truth. The analysis work contains a real-access bet, that is, the wall transposition, which can only occur by means of fundamental fantasy. In L'Étourdit (1972), Lacan proposes psychoanalysis as a bewilderment that addresses the subject to the misconception of ab-sense, questioning the discursive regime of lalangue that operates beyond the phallic function in order to touch the Other jouissance. This possibility points to what Lacan tells us when he says that we must go beyond the unconscious by mistake in the Seminar L'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre (1976-1977). This paper questions about this bet of transposition of the language wall where knowledge, truth and jouissance are articulated. This question lead us to the hypothesis that it is possible to rely on the principle of inexistence sexual relationship for this crossing, in order to produce or write a love letter/ letter of love in the end of an analysis that considers the resonance of desire. Maybe this is the way for an emergence of a totally new desire, which is the desire of the analyst.

Keywords: Love, Transference, Jouissance, Principle of inexistence sexual relationship, Analyst's desire.


 

 

No começo era o amor, como nos diz Lacan no Seminário A transferência (1960-61/2010). Essa afirmação transmite que o analista deve servir-se de Eros para que a experiência analítica seja possível.

Esta relação é bem ilustrada por Lacan quando retoma O Banquete, de Platão. Nesse diálogo, Alcibíades acredita que Sócrates detém um saber sobre o enigma do amor e do seu desejo, situando-o como o detentor do agalma, objeto indefinível e precioso. No entanto, Sócrates se recusa a mostrar a metáfora do amor, afirmando que nada sabe, pois a sua essência é o vazio.

A relação entre Alcibíades e Sócrates é análoga ao estabelecimento da relação transferencial em que o analista é convocado a ocupar o lugar de sujeito suposto saber diante da demanda de saber e de amor que lhe é endereçada pelo analisando, ou seja, o analista é situado como o sujeito detentor de um saber sobre o inconsciente. A recusa de Sócrates tem todas as características de uma interpretação analítica, de modo a endereçar Alcibíades ao seu próprio desejo desencadeado.

O desejo é sempre desejo do Outro, para o qual se endereça uma demanda de amor por reciprocidade. Porém, o que se encontra é apenas uma suposição, pois em relação ao desejo do Outro nada se pode saber, apenas supor.

É quando Sócrates se esquiva da demanda de Alcibíades que se torna possível reenviá-lo ao seu próprio desejo, encarnando o lugar do agalma, objeto precioso, assim como o analista em uma análise, que se situa na posição de semblante desse objeto causa de desejo, de modo a mostrar a própria divisão do sujeito, ou seja, a sua falta-a-ser.

O amor de transferência traz consigo uma relação de alienação necessária ao Outro, o qual o analista encarna, mostrando um aspecto de resistência que, paradoxalmente, permite a interpretação. É aí que vemos o enlaçamento entre o desejo do sujeito e o desejo do analista (LACAN, 1964/2008).

Assim, para que essa relação transferencial aconteça, é preciso que haja desejo do analista. Esse desejo é também um ponto fundamental, pois se situa na tensão existente entre a identificação idealizante (I) e o mote por onde o sujeito é levado a desejar, isto é, pela via do objeto causa de desejo (a), visto que o analista, ao se colocar no lugar de semblant, provoca o aparecimento de um sujeito barrado. Lacan enfatiza que, se a permissão para a identificação no plano do ideal do eu é a noção de sujeito suposto saber, o desejo do analista é justamente o contrário, pois provoca um corte para que o processo de identificação seja ultrapassado em direção ao atravessamento da fantasia. Essa é a mola fundamental da análise: a conservação do distanciamento entre o lugar da identificação idealizante e o lugar de objeto a.

É somente em transferência que o sujeito pode elaborar uma questão acerca do seu desejo. É partir da operação pelo desejo do analista, situando-se no lugar de não resposta, que o analista cai da posição de sujeito suposto saber, confrontando o analisando com o saber do inconsciente e com o impossível do seu desejo.

No Seminário O saber do psicanalista (1971-72), Lacan abordou o saber em sua relação com a verdade e o gozo, situando a verdade como o não saber. Isso toca na questão do saber que o psicanalista sustenta a partir do lugar que ocupa ao situar o seu discurso entre saber e verdade.

Nesse seminário, Lacan coloca em discussão a incompreensão de seu ensino e se a sua fala estaria endereçada aos muros, interrogando a sua repercussão. Não por acaso se vale do significante mur, o qual é homófono a alguns outros dos quais lança mão para construir e transmitir o que propunha. Traz-nos o muro como aquilo que comportaria a própria linguagem.

Com tal formulação, acrescenta que nesse muro temos a presença dos discursos e que para além dele haveria a possibilidade de construir um sentido. Além disso, ressalta que o muro (mur) pode tornar-se um muroir, neologismo construído com os significantes mur (muro) e miroir (espelho).

No momento dessa construção, recorre a um poema de Antoine Tudal:

Entre o homem e a mulher
Há o amor.
Entre o homem e o amor
Há um mundo.
Entre o homem e o mundo
Há um muro
.

Lacan ressalta o amor que está entre o homem e a mulher e o situa em um tubo que se revira sobre ele mesmo, fazendo referência às figuras topológicas da garrafa de Klein e da banda de Moebius, de modo a situar o homem do lado direito desse tubo e a mulher do lado esquerdo. A partir desse ponto, prossegue sua formulação, de modo a articular que o mundo que há entre o homem e o amor seria o próprio mundo no sentido bíblico. Em seguida, recupera o muro existente entre o homem e o mundo como o reviramento na junção entre a verdade e o saber, situando-o no lugar da castração, levando o saber a manter o campo da verdade como inalterado.

E, finalmente, relaciona o amor (amour) com o muro (mur). Articula que não se pode falar de amor, mas se pode escrever, denotando uma impossibilidade e uma inacessibilidade. Assim, nessa tentativa de escrita do amor, surgiria a carta de amor (lettre d'amour), ou (a)muro ((a)mur). Como já disse no Seminário sobre A carta roubada (1956/1998), esta sempre chega ao seu destino: geralmente chega tarde demais; raras vezes chega a tempo. Assim, parece-nos que para além do amor na relação entre o homem e a mulher, temos a carta/letra de amor, ou seja, para além da própria castração e do gozo fálico, o que toca o Outro gozo, o Heteros. A articulação da possibilidade de escrita de uma carta/letra de amor ao final de uma análise, a partir da transposição do muro de linguagem, considera também a sua função de reverberação. Esse ponto pode ser abordado a partir da lógica.

Para tal discussão, é importante analisar o estatuto do dito e do dizer, na passagem do princípio de não contradição aristotélico ao princípio da inexistência da relação sexual, conforme proposta por Lacan.

De acordo com o autor, a operação analítica pode ser manejada a partir de um enigma construído, o qual está em relação com o sentido. Essa formulação nos aproxima do texto "O aturdito" (1972/2003), no qual dá um passo a mais e nos aponta uma direção a partir do equívoco ab-senso e da homonímia, propondo a psicanálise como aturdimento e o princípio da não relação sexual em contraposição ao princípio de não contradição de Aristóteles, que sustenta que uma proposição A ou não A é verdadeira. O princípio da inexistência da relação ou proporção sexual para a linguagem, ao qual o sujeito da enunciação está submetido, derroga a não contradição. Essa lógica pode ser sustentada pelos trabalhos de Lupasco (1935, apud NICOLESCU, 2009) sobre a filosofia do terceiro incluído, e entra em um debate com a abordagem transdisciplinar, fundada sobre a noção de níveis de realidade. Não se trata de ser possível afirmar uma coisa e seu contrário, o que, por uma anulação recíproca, acabaria com a possibilidade de uma abordagem científica da realidade. Na lógica do terceiro incluído, trata-se de sustentar que A e não A podem ser verdadeiras e podem dar conta de paradoxos, como o paradoxo do mentiroso. Na medida em que se diz "eu minto", já se está falando a verdade. Nesse caso, haveria uma unificação não fusional que só pode ser compreendida a partir da noção de níveis de realidade. Há um estado T, de transcendente, em que se trata de reconhecer que, em um mundo de interconexões irredutíveis (como o mundo quântico, por exemplo), executar um experimento ou interpretar os resultados experimentais reverte, fatalmente, em um recorte do real que afeta o próprio real. A entidade real pode, assim, mostrar aspectos contraditórios que são incompreensíveis e absurdos, do ponto de vista de uma lógica que exclui a contradição e se pauta no "ou isso ou aquilo". Essas contradições deixam de ser absurdas em uma lógica estabelecida sobre o postulado "e isso e aquilo", ou ainda, "nem isso nem aquilo" (NICOLESCU, 2009). Nessa lógica lupasciana, não haveria uma rejeição do princípio de não contradição, pois apenas seria questionada a noção de absolutismo. Como Nicolescu (2009, p. 4) sustenta:

Lupasco [...] formula seu "postulado fundamental de uma lógica dinâmica do contraditório": "A todo fenômeno, ou elemento, ou evento lógico qualquer e, portanto, ao julgamento que o pensa, à proposição que o exprime, ao signo que o simboliza: e, por exemplo, deve sempre estar associado, estrutural e funcionalmente, um antifenômeno, ou antielemento, ou antievento lógico, logo um julgamento, uma proposição, um signo contraditório: não e". Lupasco especifica que e somente poderá ser potencializado pela atualização de não e, mas não desaparecer. Do mesmo modo, não e somente poderá ser potencializado pela atualização de e, mas não desaparecer.

Muitos lógicos e filósofos ficaram chocados com esse novo postulado que coloca em tensão a palavra "proposição", própria do campo da lógica, com "fenômeno", "evento", próprios do campo da física. De acordo com Nicolescu (2009), estaria sendo fundada uma nova lógica de ordem ontológica. O terceiro incluído aparece de forma fundamental, pois "o quantum lógico que faz o índice T intervir está associado à atualização da contradição, enquanto que os outros dois quanta lógicos, fazendo intervir os índices A e P, estão associados à potencialização da contradição" (p. 4). Por exemplo, na lógica binária do princípio de não contradição, o ser é e o não ser não é, portanto as premissas A e não A não podem ser verdadeiras e mutuamente excludentes. Porém, se isto for transferido para um campo de porcentagem, há um grande problema. Supondo que o ser é, seja um organismo vivo, e o não ser não é, seja um organismo morto, como propor que ele está morrendo? Na lógica binária é impossível, porém, na lógica do terceiro incluído não, pois se pode afirmar que ele é vivo e morto. Assim, essa proposição torna-se verdadeira.

Transportando para a lógica lacaniana da inexistência da relação sexual, pode-se sustentar que partindo de uma significação absoluta de uma proposição, que pode ser a proposição da escrita da fantasia fundamental, o dizer equivoca em uma situação analítica, suspendendo o sentido e produzindo um ab-senso na linguagem, colocando em tensão o valor de verdade. Logo, é possível articular com a lógica do terceiro incluído.

Sobre a questão do dito e do dizer, Barbara Cassin (2013) faz uma interessante articulação com os sofistas, sustentando que podemos falar somente pelo prazer de falar. Essa afirmação contraria o princípio de não contradição e acentua que o sujeito pode ou não estar implicado no discurso que pronuncia, isto é, pode haver uma suspensão do sentido e do valor de verdade. A filosofia aristotélica promoveu o ato de expulsão dos sofistas com o advento de tal princípio, pois na sofística, o dizer e o dito gozavam do mesmo valor, comportando um discurso performativo implicado na base do sujeito. Assim, a performance seria a medida do verdadeiro. Para considerar tal discussão e sua articulação com o saber, a verdade e o gozo, pode-se valer da afirmação de Lacan (1971-72) de que se situava na posição de analisando quando pronunciava o seu ensino, onde também estava em jogo uma performance de fala, de modo a destacar que a sua fala era distinta de seu discurso. Essa formulação remete à questão do dizer.

Lacan (1972/2003) nos endereça a um caminho que vai além do enunciado, baseado na presunção da primazia do dizer que se pode acessar pela via do discurso analítico: "Que se diga fica esquecido atrás do que se diz e no que se ouve" (p. 448). Com base nisso, teríamos a língua como integral de uma série de equívocos. Reconhecemos que os equívocos intratáveis, o que remete ao indecidível, não podem ser pensados com base na lógica aristotélica, só podendo ser abordados partindo de uma lógica que derroga a não contradição. Assim, incluindo o terceiro em uma lógica que comporta a contradição, é possível transcender a lógica clássica e binária, e incluir uma terceira possibilidade, de modo que haja uma coexistência de opostos, como no exemplo da física quântica em que a luz pode ser onda e partícula ao mesmo tempo. Ao se produzir uma possibilidade nova, torna-se indecidível a verdade. Esses equívocos só podem ser pensados com base na lalíngua, termo cunhado por Lacan em um ato falho: em vez de se referir ao Vocabulário de Psicanálise, refere-se ao Dicionário de Filosofia intitulado Lalande. Nesse momento, cunha o termo lalangue, acentuando que este nada tem a ver com a retórica e a dicção do dicionário, pois se relaciona com uma vertente contrária de modo a romper com o significado das palavras.

Lalíngua engendra uma proliferação de sentidos, ou seja, ela expele o sentido. Isso salienta que não há relação sexual para a linguagem, pois ela é dependente do significante, de sua primazia, ou seja, que há um rompimento com a significação do falo [Die Bedeutung des Phallus], que assume um valor de verdade para o sujeito, fixado pelo princípio de não contradição. Assim, é possível que A e não A sejam proposições contraditórias e verdadeiras, de modo que o sujeito pode apresentar uma proposição negativa em seu enunciado de fala e, no nível da enunciação, existir uma proposição afirmativa, no caso do "inconsciente, isso fala" (LACAN, 1973/2003) ou "eu, a verdade, falo" (Ibid., 1956/1998).

Baseado no princípio da inexistência da relação sexual, considera-se uma nova relação com o gozo, de modo que não se trata apenas do gozo fálico, mas também do Outro gozo que diz respeito a um inapreensível e a uma inacessibilidade do real do sexo que está fora da linguagem e que remete ao dizer, que Lacan desenvolveu como o lado mulher em suas fórmulas da sexuação no Seminário Mais, ainda (1972-73/2008).

Haveria uma operação com o gozo fora do regime fálico e com outro sujeito colocado em causa. No entanto, uma questão então é imposta: que relação há entre lalíngua e a fala? Lalíngua parece funcionar com base em um regime de separação vocálica, colocando em questão a letra, baseada na prevalência da função sonora. Esta é diferente do regime discursivo patriarcal que opera por meio da função referencial, em que as consoantes têm primazia.

Assim, essa nova relação com o gozo baseada em lalíngua tensiona o valor de verdade. E sobre essa questão, Lacan nos traz em "Televisão" (1973/2003, p. 508): "Sempre digo a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam palavras. É por esse impossível, inclusive, que a verdade tem a ver com o real". Assim, percebemos a articulação entre o dizer e a verdade, pois para sustentar a verdade é preciso dizê-la, mesmo que sempre falte uma palavra, pois há o registro do real que impõe uma impossível no dito.

Considerando o novo regime discursivo de lalíngua, onde a função sonora tem prevalência sobre a função referencial, nos indagamos: é possível transpor o muro de linguagem e escrever uma carta/letra de amor ao final de uma análise? Nesse novo regime, onde o equívoco suspende o sentido, e aí nos encontramos em uma fenda do fora do sentido, ou seja, do real, parece ser possível transpor o muro de linguagem em direção à produção de um sentido novo, pois diante do indecidível da verdade que se coloca para o sujeito, é preciso que se decida um sentido pela via da aposta.

Além disso, pode-se sustentar que essa operação está em relação com a função poética da linguagem tal como formulada por Jakobson (1960/1969). Tomemos alguns exemplos de função poética retirados de algumas estrofes da música Joana Francesa, de Chico Buarque: Je me dit loucura e de torpor / D'accord / O mar, marée, bateau. Em Je me dit loucura e de torpor, podemos escutar Je me dit, que pode significar Eu disse em francês, e Geme, do verbo gemer, em português. D'accord, em francês, que significa De acordo, e Acorda, do verbo acordar. O mar, marée, bateau, tanto pode ter o sentido de O mar, maré, barco, como O mar me arrebatou. Só há decisão de sentido quando se recorre à escrita dos versos. Lacan nos anuncia que a psicanálise pode se utilizar da homofonia em direção ao equívoco quando lhe convém, o que é calculado pelos poetas, como no caso de Chico Buarque. A topologia pode nos ajudar a pensar sobre tal questão, na tentativa de articular lógica e poética.

Em seu estilo ao longo de seu ensino, Lacan fez uso da palavra poética. Talvez por isso, a queixa de muitos de que não se fazia compreender. Em 1929, ele escreveu um poema chamado Hiatus Irrationalis em que há um verso que diz: "Mas, se todos os verbos na goela definham / Coisas, vindo do sangue ou da forja tenham, / Natureza – no fluxo elemental vagueio" ou "No cego e surdo mal, no deus de senso findo". No momento desse escrito, ele parece já estar falando da insuficiência da palavra para dar conta do sentido ou, como nos diz Bousseyroux (2013, p. 4), "que prelúdio, que presságio assim se profere! Hiatus irrationalis, hiato de um sem razão, hiância de um extrassenso, o esp de um laps – é bem isso o inconsciente do qual, bem mais tarde, Lacan reinventará o real".

No mesmo ano em que publica Hiatus irrationalis, há a publicação do seu artigo intitulado O problema do estilo, na revista surrealista e batailleana Minotaure, em que fala de uma possível solução teórica para o problema do estilo, incluindo o do artista. Com este exemplo de articulação, Bousseyroux (2013) assinala que podemos conceber o estilo lacaniano como poético. E este, para Lacan, seria indispensável para a psicanálise, o que é demonstrado pelas várias referências que faz sobre a poesia em sua obra. Além disso, Bousseyroux (2013) nos traz a questão sobre a possibilidade de uma solução teórica por meio da topologia para o estilo poético lacaniano.

O próprio Lacan (1976/2003, p. 568) afirma: "Eu nasci poema, mas não poeta". Isso é diferente de dizer "eu sou próprio à identificação ao sintoma", como aquilo, de acordo com Bousseyroux (2013), "que tangencia a relação nativa do falasser com 'lalíngua'" (Ibid., p. 6), que parece ter a ver com o final de análise. Lacan, ao dizer que não é poeta o suficiente, mas sim poema, faz referência a uma questão topológica e não ontológica, afirmando que seu poema assinado como Lá-quand, brincando com a homofonia em relação ao seu nome próprio, indica o significante como indício que responde ao real.

Isso pode dar indicações do que em lalíngua é poema, por ser a intercessora do saber inconsciente, visto que não ascende ao S1, o significante-mestre, mas possibilita operar sobre o Um encarnado em lalíngua, indicando que aí se goza. "Lalíngua nos faz nascer poema", nos fala Bousseyroux (2013). Ao nascermos, somos poema como falasser. No entanto, não há ainda poeta, pois o que se apresenta é o saber sem sujeito do inconsciente-lalíngua. Trata-se de um poema sem sujeito.

Destarte, trata-se de um indício de que com base no equívoco ab-senso, promovido pelo princípio da inexistência da relação sexual para a língua (Bousseyroux, 2013), há uma desobediência em relação ao regime de não contradição. No Seminário As formações do inconsciente (1957-58/1999), Lacan indica o chiste como um deslocamento entre a verdade e o sentido, produzindo um efeito de não sentido, o que foi retomado no Seminário L'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre (1976-77), quando aponta o chiste como uma possibilidade para irmos além do inconsciente, em direção ao ab-senso, produzindo, talvez, um desejo inédito, que é o desejo de analista, a partir da ressonância do desejo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: ifigueiredoventura@gmail.com

Recebido: 20/02/2015
Aprovado: 10/08/2015

 

 

* Psicanalista em formação. Membro do Fórum do Campo Lacaniano-SP. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Pará-UFPA. Especialista em Teoria Psicanalítica pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia-FIBRA. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA. Doutoranda em Psicologia Social pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Integrante do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Sociedade da PUC-SP e do Laboratório de Clínica do Sujeito: Sintoma, Corpo e Instituição – UFPA.

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