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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.31 Rio de Janeiro out. 2015

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO: LAÇOS E DESENLACES

 

Laços e desenlaces: reviravoltas na clínica psicanalítica

 

Linkings and unlinkings: overturns in psychoanalytical clinic

 

 

Dominique Fingermann*

AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil
Collège de Clinique Psychanalytique du Sud-Est (France)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto propõe um recorrido da questão dos laços e desenlaces e suas diversas reviravoltas ao longo da experiência analítica. A resposta de analista constitui uma ocasião excepcional, por fazer laço com aquilo que se apresenta como desenlace fundamental: o sintoma singular da existência de cada sujeito particularmente tocado e enlaçado pela lei do significante. Se a transferência constitui um falso laço necessário à exploração do sintoma, a "intervenção sobre a transferência" configura um radical Dizer-que-não aos ditos da demanda, mas permite uma ressonância do Um-Dizer do sinthoma, possibilidade única de enodamento com a estrutura RSI.

Palavras-chave: Laço, Discurso, Transferência, Sinthoma, Dizer.


ABSTRACT

The text proposes a recurrence of the question on related to linkings and unlinkings and their various overturns along the psychoanalytical experience. The answer of the analyst becomes an exceptional occasion for creating a bond with what presents itself as a fundamental outcome: the singular symptom of existence of each individual particularly touched and entwined by the law of the significant. If transference is a false link necessary to the exploration of the symptom, the "intervention over transference" configures a radical Say-not to the sayings of the demand, while it allows for a resonance of One-Saying of the sinthoma, a unique possibility of enoding with the RSI structure.

Keywords: Link, Discourse, Transference, Sinthoma, Saying.


 

 

1. Atualidade: os laços em questão

A questão dos laços e desenlaces é um problema da atualidade, basta constatar à nossa volta os estragos e as novidades que propõem a economia de mercado, o discurso que rege os laços na contemporaneidade. Vale observar que o Discurso Capitalista constitui paradoxalmente um discurso sem laço, já que o circuito insaciável de produção dos objetos "alimenta" e retroalimenta autisticamente os "proletários" desse discurso, em vez de pôr em causa a falta do objeto, no laço com o outro: um laço chamado desejo. A ciência postula, calcula, o mercado vende; a ciência calcula, o mercado vende... e o objeto falta. Não podemos ignorar que os analisantes do século XXI que nós recebemos são dominados, atravessados, atravancados por esse discurso contemporâneo, embora, ao recebê-los, sustentaremos os giros dos quatro discursos que a estrutura condiciona.

Podemos elencar algumas das particularidades dos laços na atualidade:

– a precariedade dos laços determinados pelo Discurso do Capitalista que sujeita os humanos à condição de proletários isolados e condenados ao gozo desenfreado dos gadgets;

– a novidade dos laços oferecidos pelos tempos atuais, quando todas as composições são possíveis e mesmo politicamente corretas (hetero, bi, homo, pansexual, swing, ou simplesmente homoafetivo);

– a praticidade das "oportunidades" distribuídas pelo mesmo discurso, acumpliciado ao discurso da ciência "facilitando" os encontros (e os desencontros) com parceiros eróticos, com filho, com o óvulo congelado, com espermatozoide seleto etc., e/ou com os aplicativos permitindo achar seu táxi, seu nerd, sua septuagenária, seu bi, seu trans, seu tetraplégico etc.

Lacan alertou de diversas maneiras sobre o futuro da ilusão da ciência em relação aos laços; não esqueçamos a sua advertência quando, no final da "Proposição...", ele evoca os campos de concentração como paradigma do efeito de segregação do discurso atual:

[...] Abreviemos dizendo que o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação (LACAN, 1967/2003, p. 263).

A universalização introduzida e produzida pela ciência e os mercados globalizados conduz a remanejamentos dos grupos sociais até os processos de segregação, dos quais os campos de concentração anteciparam o modelo.

A ética da psicanálise, que dirige e orienta a clínica que dela procede, esbarra com os efeitos do discurso da contemporaneidade, mas barra o mal-estar específico dessa civilização quando mantém a subversão do sujeito barrado e eleva a sua causa à dignidade de agente de um novo discurso, um novo laço que preserva o "efeito revolucionário" do sintoma (LACAN, 1969/2003, p. 378).

A ética própria ao discurso analítico determina e causa os "laços e desenlaces da clínica psicanalítica". Proponho-me a desdobrar os tratamentos lógico-éticos dos laços na experiência de uma análise e sua relação com os desenlaces que ela proporciona, e o novo enodamento que ela venha eventualmente a acolher.

 

2. No começo, há desenlace

A clínica psicanalítica, ou melhor dizendo, o discurso psicanalítico e a experiência que este proporciona, apresenta uma chance de resposta àquilo que não faz laço e que chega a se manifestar no mundo como inibição, sintoma, angústia, isto é, como avatares de um sujeito, dividido entre corpo e significante, entre gozo e sentido, entre real e semblante.

Essa resposta de analista, da qual nós, analistas, temos a responsabilidade (response-abiltity), constitui um laço extraordinário, excepcional, por fazer laço com aquilo que se apresenta como solidão radical, desenlace fundamental: o sintoma singular da estúpida e inefável existência de cada sujeito particularmente tocado e enlaçado pela lei do significante. Há um desenlace fundamental: a marca de gozo, que isola, mas distingue Um que ex-siste como incomparável.

Como chegam as pessoas aos consultórios dos analistas antes de se tornarem analisantes? Como falar desse começo, crucial, dessa passagem radical entre um desenlace fundamental e o laço transferencial que não acontece se não entrar, por chance, um psicanalista? Evoquemos o primeiro passo no laço analítico de alguns futuros, eventuais analisantes:

– Gabriel, quatorze anos, bom filho, explica com extrema sutileza como as coisas não são evidentes assim como deveriam ser. Como o amigo não é amigo, como o pai é demais, como a irmã pequena deveria ficar sempre pequena, como as provas cessaram de ser um desafio para constituir uma tormenta, como o jogo não tem mais graça por configurar uma obsessão, como os devaneios que fazem companhia atrapalham, como a sensação de inadequação e de perda dos aconchegos faz da vida um mistério, um constante desassossego. A adolescência, diz ele, não é tanto um problema quanto uma solução, pois oferece formas reconhecíveis e aceitas pelo discurso ambiente; não, o problema é anterior, desde que me conheço por gente, explica, contando a sensação corporal de desamparo quando de uma entrada em uma escola nova, e era pequeno demais para ler no quadro a sua inscrição e o local de sua classe. A análise, para ele, configura um laço possível para sua estrangeiridade, e sua sensação de desenlace generalizado.

– Said, cinquenta e oito anos, industrial abastado. Análise? Para pegar firme! Onde? Não sabe, e queria saber o que falta quando nada falta: dinheiro, poder, beleza, saúde, mulheres... Há um saber que não se sabe, mas procura um lugar, embora não quisesse perder muito e, milionário conhecido, pede um recibo do preço da sessão. As suas falcatruas o condenam a uma solidão sem recursos: análise, lugar possível para seu exílio.

– Madalena, vinte e oito anos, psicóloga jovem, bela e promissora, mas... o que fazer com essa ausência que atormenta e se desloca e se aloca em todos os assuntos da vida: profissional, amoroso, financeiro? Fazer análise, de verdade: como se fosse uma última chance para cingir esse real que estorva e se põe atravessado no corpo, na inteligência, nos laços!

– Esther, quarenta e nove anos, professora universitária em frangalhos, já sabe tudo, tantos anos de análise! O que não sabe? Ela, que passou a vida achando que "iam" flagrar que não sabe de nada. O que não sabe, pode salvar? A análise pode proporcionar um lugar, um enlaçar novo com o não saber.

Desarvorados, desamarrados, desenlaçados e, apesar de suas lamentações e/ou fanfarronadas, o primeiro encontro com o psicanalista não deixa de evidenciar onde, desde quando, como, algo "mais forte do que eu" cessou de fazer laço: com o outro, com os sentidos da vida, ou "simplesmente" no laço com o corpo próprio.

Desde os primeiros ditos, declinando desencontros, tédio, falhas e outras faltas de sentido, vislumbra-se o lugar de uma singularidade surpreendente, um lugar de onde emerge um Dizer que ex-siste, algo que se excetua dos ditos e, no entanto, os fomenta. É nesse lugar de desenlace radical que se destaca como um ponto de urgência, que responde "de l'analyste"; algo da função analista, da sua presença, faz laço, engajando esse estranho diálogo, aí mesmo, nesses pontos emergenciais, para que o sintoma de suas vidas ordinárias se torne analisável e possa vir, em um primeiro tempo de engancho, a constituir-se como sintoma analítico.

Portanto, uma coisa é certa: a "disposição" do analista precede a entrada em análise, isto é, precede a articulação do sintoma analítico com o sujeito suposto saber. É a disposição do analista no seu devido lugar no Discurso Analítico que produz esse laço, "dispositivo pelo qual o real toca no real".

Said, Gabriel e Esther no ponto original de seu ab sens arriscam transformar o pior em dizer (du pire au dire, diz Lacan).

Tomaram a palavra. Decisão, coragem, que nessa passagem ao ato não se contenta com o lamento dessa solidão existencial. Vieram, antes de tudo, Dizer, e falar de algo que não tinha cabimento, não fazia mais laço com mais ninguém. No começo era o desenlace que, em vez de se abismar, se arrisca a Dizer. Laço.

O que faz laço?

3. O que faz laço?

Laços de família, laços afetivos, laços do amor... não é preciso avançar muito na consideração destes exemplos para concluir sobre a ambiguidade da palavra laço: um laço conecta dois ou mais entre si, salva da solidão, conforta, assegura, tranquiliza, mas também o laço amarra, acorrenta, constrange, limita, incomoda: desconfortável.

Freud orientou sua escuta da fala dos analisantes em torno dos conceitos fundamentais que sua "práxis da teoria" extraiu, particularmente atento à forma como se aparelhavam, como se enlaçavam: os laços do eu com o outro, os laços com os sentidos da vida e os laços com o corpo próprio. Vejamos como o quadro esquemático da sexualidade no "Rascunho G", em 1895, é paradigmático da psicanálise enquanto teoria-prática do enlaçamento daquilo que não faz relação. O esquema antecipa os conceitos de pulsão, representação, fantasma, escrevendo nesse quadro sútil, o necessário enlaçamento do corpo, da representação, do outro e da falta de satisfação.

 

 

Os conceitos de sintoma, pulsão, identificação, Ideal do Ego, Ego Ideal, transferência, amor etc. permitiram-lhe não somente rastrear as dificuldades nos laços que apresentavam os seus analisantes, mas proporcionar a sua leitura dos fenômenos coletivos em O Ego e o Id (1923), Mal-estar na civilização (1929), Futuro de uma ilusão (1927) etc. Sem falar de como os mitos que desenvolveu lhe proporcionaram uma abordagem do real em jogo na estrutura: os mitos da pulsão, do Édipo, de Totem e Tabu, diversas versões do enlaçamento do real. Sabemos como a clínica psicanalítica logo forçará o surgimento, no seu arcabouço teórico, daquilo que "não se liga", a pulsão de morte, de onde se articulam conceitos fundamentais como repetição, resistência, Reação Terapêutica Negativa etc. Lacan dirá que o "Dizer de Freud" pode se enunciar como "não relação sexual": não há relação, por isso, há laço!

Lacan, sabemos, privilegiou a matemática, a topologia e a lógica para sua abordagem do real em jogo na estrutura. Desde os primeiros esquemas e grafos, a questão do laço do Um com o Outro se faz premente. O enlaçar, da fala, da imagem, do desejo, da fantasia, e finalmente do discurso, do semblante, dos gozos, do sintoma, do Dizer etc. constitui a urgência da sua práxis da teoria até os últimos rastros dos quais dispomos.

No decorrer de seu ensino, Lacan usou diversos recursos para explicitar as ambiguidades do laço e sua função na psicanálise, o laço do íntimo com o êxtimo, articulando sempre a estrutura do sujeito com o seu devir na experiência da psicanálise. Todos os recursos gráficos e lógicos apresentam a estrutura do sujeito desde os seus laços fundamentais com o Real, o Simbólico e o Imaginário: os esquemas L e R, os espelhos conjugados, o grafo do desejo, os toros da demanda e do desejo, o cross cap, a garrafa de Klein, o grupo de Klein, a escrita dos discursos, os nós borromeanos etc.

Desde sempre podemos dizer que ele procurou uma forma de formalizar e articular a "inacessibilidade do dois" e a distinção do Um.

 

A escrita dos discursos

Os laços sociais decorrentes da lógica do significante estão particularmente dedicados a escrever o que em cada um produz desenlace, e a menção dos dois traços paralelos // embaixo, entre o lugar da produção e o lugar da verdade, escreve o desenlace singular em cada discurso, o seu real particular.

 

O nó borromeano

Parte do princípio do desenlace radical das três diz-mansões do fala-ser, real, simbólico, imaginário, para concluir quanto à função enlaçadora de uma quarta "consistência", subvertendo o sintoma, fazendo da sua função radicalmente revolucionária de emergência real (por definição fora de laço) uma função excepcional de enodamento.

Foi necessário para Lacan um tempo extenso de seu ensino para chegar a esta conclusão e explicitá-la. Quanto tempo, quantas voltas, demoram as análises para produzir essa conclusão, ou melhor, este termo, já que no final das contas se trata mais de uma decisão existencial do que de uma conclusão lógica?

 

4. As voltas dos discursos

A psicanálise é uma experiência à qual se chega pelo sofrimento do desenlace (com o corpo, o outro, a significação fantasmática) e que prossegue pela demanda que faz apelo ao outro – portanto, laço.

Uma brecha aberta na homeostase fantasmática aponta emergencialmente para a separação do sujeito e do objeto que lhe serve para suportar e tamponar a sua divisão, na medida do possível. Por algum motivo, fica escancarada a disjunção entre e o objeto "a". Uma emergência, um triz, um cisco desestabiliza. Recordome de uma pessoa que procurou análise por causa de um cisco de camarão que havia se enfiado em seus dentes e tinha causado uma crise de pânico, abalando o equilíbrio deste homem monstruosamente egocêntrico e inabalável!

• O Discurso do Mestre escreve essa disjunção entre o objeto e o sujeito; a produção de objetos "mais-de-gozar" não têm comum medida com o sujeito barrado que funda a verdade oculta, causa do movimento do significante mestre S1 em direção ao outro significante S2, fundamento da transferência. O real do Discurso do Mestre é esta disjunção flagrada, deflagrada: desenlace.

 

 

• Fazendo causa desse impossível, o Discurso do Analista põe o "a" como semblante e coloca em cena o sujeito como seu outro, impossível de alcançar, mas interlocutor. Giro na estrutura:

 

 

A cada mudança de discurso, um "novo amor" (LACAN, 1972-73/1985, p. 26), uma nova promessa de laço.

Interpelado, convocado assim pela função analista, o sujeito pode entrar em análise, colocar em funcionamento o discurso analisante, dito Discurso Histérico: no começo de uma análise há transferência, que usa o laço significante para que S1 produza um saber S2.

 

 

A transferência parte do desejo, , que procura no outro o significante mestre S1 de seu gozo oculto "a"; investida que produz um saber S2 como mais-de-gozar. No entanto, este topa com um real, a impossibilidade de fazer com que esse saber toque no corpo, elucide os mistérios do "corpo falante", que funda a sua verdade recalcada.

Diante da sua impotência ressentida, o seu desenlace próprio (a // S2), vemos como o Discurso Histérico pode provocar a resposta do discurso canalha pelo deslize () que curto-circuita a impotência, colocando S2 como agente de um discurso que enlaça o outro com um saber sobre o gozo.

 

 

A não ser que o Discurso do Analista, por chance, se apresente e coloque o objeto recalcado em causa.

 

 

"(...) desse discurso psicanalítico há sempre alguma emergência a cada passagem de um discurso a outro" (LACAN, 1972-73/1985, p. 26).

• Os discursos, para Lacan, consistem em uma escrita, que escreve tanto o laço quanto o desenlace fundamental aos quais a estutura do significante confina; os discursos apresentam os diversos "tratamentos do real" possíveis a partir da estrutura, cada um "fracassando" em um real particular.

"Há sempre um dos laços que é rompido" (LACAN, 1976-77/inédito, aula de 10/05/1977).

• A roda dos quatro discursos "ocupa" o espaço transferencial da análise. Como ressalva, o trabalho analítico propriamente dito, trabalho analisante, se sustenta desde o Discurso da Histérica, na medida em que esteja "dirigido" pelo ato do analista que faz laço a partir do objeto que fundamentalmente falta e não faz laço, como desdobra a escrita do Discurso do Analista.

 

5. No começo há transferência

Falar de "Laços e desenlaces na clínica psicanalítica" consiste em falar da transferência e da intervenção sobre a transferência que dá um fim a este laço tão particular.

Parece óbvio dizer que a transferência é o paradigma do laço analítico e que suas interrupções se qualificam como desenlaces. É mais intrigante pensar que ela é construída em torno de um laço amoroso, diz Freud, cujo objetivo fundamental, o fim da análise, é o seu próprio desenlace: basta lembrar como Freud, no final de uma análise, aponta para a liquidação da transferência.

Propomos colocar isso à prova: a transferência é mesmo um laço e, ao procurar seu fim, se procuraria um desenlace?

Partindo da premissa: a transferência é o laço específico que condiciona e configura a experiência analítica, consideramos a questão: o que, na transferência, "faz" laço entre os parceiros?

Não se trata de um laço intersubjetivo, entre dois sujeitos, como precisa e retifica Lacan em diversas ocasiões: a escrita dos Discursos, que permite configurar diversos tempos transferenciais, confirma essa "não intersubjetividade" da transferência.

– Para Freud, antes de se tornar o laço amoroso autêntico que ele descreve como "motor e obstáculo" ao trabalho, a transferência consiste, antes de tudo, em uma transferência de representação, isto é, de significante; algo, um valor de gozo, desliza ou se condensa, se transfere de um para o outro: metáfora e metonímia.

Verificamos essa matriz da transferência na escrita do Discurso do Mestre: S1→S2, cuja "histerização" procede da transferência do sujeito ao significante articulado na cadeia .

– A transferência não é, senão, esse deslizamento significante e sua consequência de produção de um objeto "mais-de-gozar", que se distingue por não pertencer à cadeia, ou seja, por ser algo que não se encadeia.

Lacan formalizará esse laço, oriundo da própria estrutura do significante, como "Sujeito Suposto Saber", vetor de uma demanda inesgotável. Mais tarde, ele completará dizendo: "aquele a quem suponho um saber, eu o amo", pois a suposição de saber fomenta uma demanda, que é sempre uma demanda de amor.

– O amor – autêntico segundo Freud; amor novo, segundo Lacan – procede da promessa do saber – articulação de significantes – que permitiria enlaçar o objeto que não se articula, nem encadeia, nem enlaça, mas embutido na promessa de saber do inconsciente, confere ao outro suposto um brilho especial agalmático.

– A demanda, laço próprio da transferência, é orientada pelo desejo, ou seja, pelo objeto faltante que causa o seu movimento.

– O fantasma reveste esse objeto que falta e fixa a sua consistência a partir das substâncias ocasionais dadas pelos objetos pulsionais e suas ocorrências para tal sujeito.

– A demanda, por fim, revela a sua armadilha: "eu te peço recusar o que te ofereço porque não é isso" (LACAN, 1971-72/2011, p. 81).

– Portanto, a respeito da questão "a transferência é mesmo um laço?", podemos concluir com as palavras de Colette Soler: "é um falso laço!"; a transferência é um amor verdadeiro, mas é um falso laço (SOLER, 2011-12/2012).

Pois tanto a demanda quanto o amor, e o desejo formatado pelo fantasma, se dirigem ao outro para lhe surrupiar o seu bem próprio, as diversas modalidades do objeto, e ainda declama "não é isso!". A transferência é um falso laço, porque não faz laço entre um e outro parceiro do jogo, mas sim entre o sujeito e o objeto.

Desde 1951, Lacan afirmava que não se tratava na transferência de um laço com a pessoa do analista, mas "dos modos permanentes segundo os quais ele constituía seus objetos" (LACAN, 1951/1998, p. 224).

 

6. Intervenção sobre a transferência

A intervenção sobre a transferência é a interpretação na sua dimensão fundamental de ato. A interpretação por princípio descontinua a transferência: contra a transferência, ela silencia a demanda de amor, de sentido, de complemento da significação fantasmática, desfaz todos os falsos laços.

Há um radical Dizer-que-não (LACAN, 1972/2001, p. 453) que fomenta qualquer dito interpretativo.

Mais do que denúncia, é silêncio, corte, suspensão. Podemos então inferir que se a transferência faz laço (falso), a interpretação suspende o laço, produz o desenlace?

A interpretação intervém sobre a transferência descontinuando, cortando etc. os ditos da demanda; produz um desenlace do falso laço programando a queda do Sujeito Suposto Saber, o desenlace transferencial.

No entanto, e isso desde os primeiros passos de uma análise, o analista por chance, responde. Se o Desejo de analista, por princípio não responde aos ditos da demanda, responde sim, ao Dizer da demanda do analisante.

O Dizer da interpretação faz laço com o Dizer da demanda do analisante...

"Um analista verdadeiro não pretenderia outra coisa, senão fazer que esse dizer sustente o lugar do real, até se provar outro melhor" (Ibid., p. 477).

Em face do Um Dizer do Um sozinho: um encontro possível, com "do" analista. "Será que o Um-dizer, por se saber Um-todo-só, fala sozinho? Não há diálogo, disse eu, mas esse não diálogo tem seu limite na interpretação, por meio da qual se garante como no tocante ao número, o real" (LACAN, 1973b/2003, p. 548).

Qual é o objetivo dessa operação?

A satisfação, diria Lacan no "Prefácio à edição inglesa do Seminário 11".

A operação analítica, via a não complacência com a demanda de falso laço transferencial (isto é, o manejo da transferência), trata de produzir uma conclusão, uma realização, uma dedução, em primeiro lugar, da inacessibilidade do dois, da comprovação da "não relação sexual".

Essa operação de corte pode produzir uma satisfação (satis-fazer) enquanto interrompe a insatisfação da procura insaciável de um Dois que complete e conforte, a demanda de reduzir o hiato (impossibilidade) entre o S1 e o S2. A "travessia" da fantasia faz parte dessa operação "realizar" que "não há...", que não há resposta ao Um no Outro: "não há relação sexual". Em segundo lugar, a conclusão, dedução do "Há Um", "Ya d'l'Un", durante tanto tempo fonte do "horror de saber", pode, sim, pacificar a intranquilidade de Um que procura sua resposta no Dois. Há, sim, algo que o Um-Dizer da demanda localiza sem apreender. Algo singular que não faz laço com o Outro, mas permite que as três consistências do fala-ser se contem como Um. O sinthoma faz laço, faz o enodamento dos três, RSI, desde essa marca singular que não se cicatriza.

A intervenção sobre a transferência pode produzir e/ou conduzir à báscula do pior no Um do Dizer.

Trata-se de um novo laço consigo mesmo, "reconhecimento" do sintoma, que se autoriza "de si mesmo", em se fazer conhecer e não temer em causar o outro: laço entre sinthomas que o amor e a escrita podem muito bem encenar.

O Dizer da interpretação é um "dizer que não" à demanda, mas não é da ordem da negação, ele repercute o dizer do Um sozinho que se infere de todas as demandas, o Dizer da demanda. A interpretação produz um desenlace com a demanda, mas conecta, faz laço com o Dizer da demanda que ele repercute quando fundamentalmente equivoca e faz vacilar, precisamente atordoa qualquer sentido.

O disparador do Dizer que fomenta as demandas é o ponto de incidência traumático do Outro (da alteridade, S de A barrado, Outro que não responde), ponto traumático da incisão da ausência de sentido.

O Dizer da interpretação proporciona uma ressonância para este lugar traumaticamente singular do encontro de Um com o não sentido.

Embora silencioso, ou muito pouco eloquente, o dizer do analista é "uma presença que responde", diz Soler, faz signo de um real, limite ao não diálogo", "testemunha de um real que lhe seja próprio" (LACAN, 1973c/2003, p. 556).

O desenlace flagrado no início das análises produz uma suposição de saber que torna o sintoma analisável até que da sua insistência irremediável se destaque o seu incurável, e que da intervenção sobre a transferência, pelo Dizer da interpretação, se produza o advento, a identificação da estrutura dupla face:

– Não há relação sexual.

– Há Um, existente.

Para que esse Um se sustente, seja suportável enquanto tal, ele precisa funcionar como Dizer, que embora fora dos laços da demanda dirigida ao Outro, enlace, enode o Inconsciente Real com o inconsciente linguagem e nisso detenha invisivelmente os corpos (LACAN, 1972-73/1985, p. 125).

 

7. O laço do sintoma

"O real que é algo com o qual de uma maneira expressa, digo eu, não temos relação" (LACAN, 1976-77/inédito, aula de 11/01/1977).

O real não faz laço: "seu estigma, o do real como tal, consiste em não se ligar a nada. Pelo menos é assim que concebo o real" (LACAN, 1975-76/2007, p. 119).

O sintoma, ou seja, o que temos de mais real, poderia fazer laço? Que aberração! O sintoma, por definição, mas sobretudo por experiência, não tem nada a ver comigo, é mais forte do que eu, não se conecta, não faz sentido, não se enlaça. Embora a neurose e a análise se dediquem a enrolá-lo nos diversos sentidos de uma suposta mensagem dirigida ao Outro (isso não obsoleta o texto de Freud "Os sentidos do sintoma", que retrata precisamente o sentido neurótico do sintoma), ele permanece irresistivelmente fora de razão, fora do sentido, a não ser seu sentido real. Eis, então, a sua graça irresistível: ele é indicador daquilo que resiste fora do senso comum.

Colette Soler (2011-12/2012) disse: "O sentido do sintoma é o real, signo do real, da não relação, mostra uma realidade particular fixada traumaticamente".

No seu Seminário O Sinthoma, Lacan explicita essa dimensão de forma singular do sintoma: "O sintoma central, claro, é sintoma feito da carência própria da relação sexual. Mas é preciso que essa carência tome uma forma. Ela não toma uma forma qualquer" (LACAN, 1975-76/2007, p. 68).

Desde seu ponto de origem traumático o sintoma não vai cessar de escrever a forma original com a qual a carência toma forma. O sintoma, acontecimento de corpo, enlaça desde a origem o furo, o signo e a forma corporal.

É uma aberração, sim, mas que enlaça o corpo, fazendo das três dimensões Um corpo.

O sintoma é laço, "o laço, o laço estreito do sinthoma, é algo que se trata de situar o que o sinthoma tem a ver com o Real, o Real do Inconsciente, se o Inconsciente for real" (Ibid., p. 98).

Laço enigmático, diz Lacan, que denota esse enigma, o cúmulo do sentido.

"Estabelecer o laço enigmático do imaginário, do simbólico e do real implica ou supõe a ex-sistência do sintoma" (Ibid., p. 21).

 

 

Assim, aquilo que se apresenta como o que se tem de mais real, "acontecimento de corpo", realidade moterial que por definição não se conecta, não se enlaça, pode vir a "satisfazer", fazer cessar, a busca incessante da sua razão, no Outro.

Uma fixão de real que satisfaça a busca identitária de sentido do fala-ser: identificação do sintoma, ao sintoma.

"O saber, de um real do Um-todo-só [Un-tout-seul], todo só onde se diria a relação" (LACAN, 1973b/2003, p. 547).

No fim das voltas, então, ocorre o fim do laço transferencial analítico, início do laço sintomático.

Por fim, concluímos com Colette Soler: poder-se-ia (contingência) "fazer laço social com aquilo que está separado, disjunto", e em vez de falar de intersubjetividade, poder-se-ia apostar em uma inter-sintomacidade?

No fim: pode ser que a impudência, o Um-dizer sem vergonha, "impudence du dire", faça laço entre os ímpares díspares.

"A partir do dizer que 'há Um', fazer disso uso para fazer psicanálise" (LACAN, 1973b/2003, p. 547).

Assim, por fim:

Não Há relação.

Há laço, que leva em conta o real impossível.

Há nó, com o real que ex-siste.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: dfingermann@gmail.com

Recebido: 12/07/2015
Aprovado: 10/08/2015

 

 

* Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Ensinante no Collège de Clinique Psychanalytique du Sud-Est (France). Autora do livro Por causa do pior (Iluminuras, 2005), em coautoria com Mauro Mendes Dias, e organizadora do livro Os paradoxos da repetição (Annablume, 2014).

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