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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.31 Rio de Janeiro out. 2015

 

ENSAIOS: A ESCOLHA DO SEXO

 

Homensexual e heteridade

 

Homensexual and heterity

 

 

Antonio Quinet*

Internacional dos Fóruns-Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil
Fóruns co Campo Lacaniano-Rio de Janeiro
Universidade Veiga de Almeida
Cia. Inconsciente em Cena

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende demonstrar, com Lacan, que A homossexualidade não existe, pois para haver sexo, precisa de ambos os sexos. Tomando os textos "O Aturdito" e o Seminário Mais, ainda, de Lacan, ambos do início dos anos 1970, demonstra-se, por meio da fórmula da sexuação, que não importa de que lado se está na partilha dos sexos, a sexualidade do ser falante é sempre da ordem do Heteros, para além da diferença anatômica dos sexos. Para haver sexualidade entre homem e mulher, ou entre dois homens ou entre duas mulheres, é preciso haver o elemento hetero que é a relação entre um elemento do todo fálico com um elemento do não-todo fálico.

Palavras-chave: Heteros, Semblante, Homossexual, Sexo.


ABSTRACT

Based on Lacan, this article seeks to demonstrate that homosexuality does not exist, as for sex to take place, both sexes are needed. Taking the texts "L'Étourdit" and in the "Seminar Encore", both by Lacan, from the early 1970s, it is demonstrated through the formulae of sexuation that it does not matter on which side in division of the of the sexes one is, the sexuality of the parlêtre is always of the order of Heteros, beyond the anatomical difference of the sexes. In order for sexuality between man and woman, two men, or two women to exist, the presence of the hetero element is crucial, which is the relation between a fully phallic element and a non-fully phallic one.

Keywords: Heteros, Semblant, Homosexual, Sex.


 

 

Lacan usa o termo hommosexuel, com dois "emes", e não com um "eme" só da grafia correta de homosexuel, para mostrar que essa palavra é derivada de homme, homem, fazendo a equivalência entre o hommosexuel e o semblable, o semelhante do estádio do espelho, ou seja, o pequeno outro. Dessa forma, a tradução correta de hommosexuel é homensexual ou Homo sexualis como se diz Homo sapiens.1 Assim, o amor do homem pelo homem (seja mulher ou homem) é homossexual. Esse deslocamento muda a perspectiva de abordagem da homossexualidade e a generaliza como o amor pelo semelhante. Homensexual é o amor do mesmo.

 

Monólogo de almor, de Marie Caroline

Amo a alma. Acho que todos devem amar a alma. Almemos! Aliás, cada um que faça o que quiser! Eu, eu almo a alma. Minha alma alma a alma. Não é essa alminha desencarnada que Platão inventou e que a Igreja Católica se apropriou para fazer comércio de indulgências. Não! Essa é a alma que vocês acham que podem salvar em troca de algumas orações e de algumas boas ações. Essa alma, queridos, não existe! É pura alegoria da rejeição do corpo! A alma que eu almo é a forma de matéria feita corpo. É a alma que eu encontro no meu parceiro, na minha parceira. É a alma que não tem sexo, mas não deixa de ter corpo. É a alma que quando encontro no outro me faz amar, me faz almar.

Ai essa alma! Ai meu almor! Quando eu a encontro eu almo.

Quando a encontro me encontro. Eu mesma! Moi-même! Eu mesmo! Je même!

Eu me mesmo! Je m'aime!

Me amo na sua minh'alma!

E saio, saio, saio de mim mesmando, em si mesmada e me amo, te amo, me amo, me mesmo, ti mesmo.

Lacan (1973/2003, p. 450) utiliza em "O Aturdito" também o hommo (com dois emes) na palavra homologar: "(...) se homenloga que todos os homens são mortais". Lacan redefine que o homo é o próprio do humano que tem amor erótico pelo semelhante – seu igual, o outro especular. Lacan, ao equivaler o homo a homem, aponta o equívoco entre o semblante (semblant, o faz-de-conta) e o semelhante (semblable, parecido): estatuto do homem é justamente o do (hommosexué) – homensexuado ou homo sexualis, aquele que ama a quem se parece. O Heteros "(...) erige o homem em seu estatuto, que é o de Homo sexualis (hommosexuel)" (LACAN, 1973/2003, p. 468). Longe de contradizer ou de opor hétero e homo, Lacan os articula e faz do Heteros a condição da sexualidade humana.

Com essa nova significação das palavras relativas à escolha do parceiro de sexo, Lacan indica que para haver o real do sexo, enquanto tal, é preciso de Heteros, enquanto que o amor narcísico é homemsexual. Em outros termos, todo ato sexual – seja homem com homem, mulher com mulher ou homem com mulher – ocorre devido à Heteridade.

 

 

Com essa acepção, Lacan põe por terra tanto a concepção da mulher como um "segundo sexo", quanto as teorias sobre a homossexualidade como uma esquiva da confrontação com o Outro sexo.

Como situar as homossexualidades a partir das fórmulas da sexuação? Nada impede que um homem, se inscrevendo do lado do todo fálico (dito homem), tenha uma escolha de objeto homossexual ou heterossexual, assim como também se inscrevem desse lado, diz Lacan, as mulheres histéricas, que também podem ser hetero ou homossexuais ou ainda bissexuais.

Um homem inscrevendo-se do lado do não-todo (dito mulher), na posição de La barrado F, pode escolher seu parceiro do lado do todo fálico a partir do significante fálico (Φ) encontrado no corpo desse outro ou em posição social, ou em qualquer outro atributo fálico. Essa relação (La barrado F → Φ) pode fazê-lo feminizar-se, como aparece na caricatura do afeminado. Ele pode também, ao se inscrever do lado do todo fálico como sujeito desejante (), e portanto viril, escolher seu parceiro reduzindo-o ao objeto a localizado no Outro lado. A cultura gay acabou tipificando e caricaturando essa posição na exageração dos caracteres viris até os chamados barbies. A feminização e a virilização estruturais é devida às posições na partilha do sexo. Há também um tipo de prática homossexual que, longe de constituir um casal ou uma parceria erótica, é feita de encontros fortuitos e anônimos em que o sujeito só se interessa pelo pênis, não importa de quem, situando assim essa situação inteiramente do lado do todo fálico ( → Φ).

Da mesma forma o homossexualismo feminino. Uma mulher pode situar-se no lado do todo fálico e eleger sua companheira como objeto sexual ( → a). A caricatura dessa posição é o sapatão, a mulher virilizada. Essa posição reproduz o par mãe-filha, na medida em que essa falta pode representar o objeto a para a mãe. Ela pode também situar-se do lado do não-todo La barrado F e buscar o falo (Φ) do lado do todo fálico – são as mulheres que procuram a proteção de outra mulher como se busca um pai ou a mãe fálica – figuras do Outro que tem o falo. São as mulheres que, como a jovem homossexual, diz Freud, condensam nessa escolha as tendências homossexuais e heterossexuais.

Há mulheres que procuram na outra mulher o Outro gozo (La barrado F → S ()) dentro de uma relação que não é propriamente sexual no sentido do encontro erótico de corpos, pois o falo não se encontra presente. É aí uma relação fora-do-sexo. Muitos casais femininos se formam em uma relação sem sexo e de autêntico amor.

A segunda lógica, a que Lacan propõe para se pensar o sexo feminino, é uma lógica distinta da lógica do Um e do todo. O não-todo do lado feminino caracteriza o Heteros – outro em grego. A lógica do não-todo é a lógica da Heteridade.

Por não ter o quantificador lógico da exceção que contraria a função fálica, a lógica do Heteros não constitui um Universo, não se fecha em uma Heteridade, ou seja, não faz grupo nem massa organizada. Não é uma lógica da "medida por medida", da competição, da luta para saber quem tem o maior, quem tem mais. Heteros é o âmbito do incomensurável. E do um a um, um mais um mais um que não se fecha em um todo.

A lógica do gozo Outro nos abre para as declinações do Heteros como heteronomia, heterodoxia, heterogeneidade e até mesmo heterossexual, o qual Lacan (1973/2003, p. 467) define como "(...) aquele que ama as mulheres, qualquer que seja seu sexo próprio". Essa frase de Lacan em "O aturdito" é suficientemente ambígua para não se fechar nenhuma porta da diversidade sexual. Assim, "aquele" pode ser tanto um homem, biologicamente falando, ou uma mulher, sejam eles homo ou heterossexuais no sentido da escolha objetal. Assim como pode ser de qualquer sexo quem está no lugar de "mulheres" desta frase. A frase aponta, portanto, que o amador pode ser XX ou XY e que "mulheres" também podem ser XX ou XY sendo esta posição definida por aquele que é amado, independentemente do sexo. Pois é o Heteros que suporta o sexo, seja ele como for. Para haver sexo é necessário a diferença do outro – não se faz sexo com o mesmo.

Heteros se opõe ao poder instituído da lei e das normas, ditado pelo Um do significante-mestre da lógica fálica. O Outro, em relação ao instituído, é sempre o Diferente. Eis o que caracteriza a Heteridade. E a Homensexualidade é o amor narcísico, o amor pelo Mesmo e não pelo Diferente. Por outro lado, a relação de objeto própria do sujeito desejante, independentemente do sexo, está sempre no lado do todo fálico, ou seja, só se deseja um objeto como homem. O que é outra forma de reafirmar com Freud que a libido é masculina.

Como vemos, em todos esses casos, para haver sexualidade entre homem e mulher, ou entre dois homens ou entre duas mulheres, é preciso haver esse elemento hetero que é a relação entre um elemento do todo fálico com um elemento do não-todo fálico. A conclusão: A homossexualidade não existe. Para haver sexo, precisa de ambos os sexos. Estamos falando aqui de posição sexuada. A sexualidade do ser falante é sempre da ordem do Heteros, para além da diferença anatômica dos sexos. A Heteridade comanda a sexualidade e coloca em circulação o "heterotismo". Sempre serão necessários dois sexos para que o sexo exista. Mais além da escolha sexual, a experiência analítica nos leva a questionar: será que existe uma fixidez em uma posição ou outra das fórmulas da sexuação? O que a clínica nos mostra é que o ser-para-o-sexo pode circular entre as posições como o faz nos discursos que constituem os laços sociais. Eis por que o analista, seja XX ou XY, ocupa uma posição que tem suas afinidades com o lado não-todo das fórmulas da sexuação.

 

Referências

LACAN, J. (1973). O Aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 448-97.         [ Links ]

__________. (1972-73). O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.         [ Links ]

QUINET. A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: antonioquinet@gmail.com

Recebido: 05/06/2015
Aprovado: 10/08/2015

 

 

* Psicanalista, membro da IF-EPFCL Brasil e da FCL-Rio de Janeiro, professor da Universidade Veiga de Almeida e diretor da Cia. Inconsciente em Cena.
1 Atenção para a tradução errada na edição brasileira de Outros Escritos (LACAN, 1973/2003, p. 450), assim como de O Seminário, livro 20: Mais, ainda... (LACAN, 1972-73/1982, pp. 113-4), perdendo-se toda a importância desse termo em Lacan. "(...) Tanto que, com efeito, a alma alma a alma, não há sexo na transação. O sexo não conta neste caso. A elaboração de que essa transa resulta é homossexual (homensexual), como é perfeitamente legível na história" (p. 113). E, em seguida: "(...) a histeria, ou seja, bancar o homem, como eu disse, por serem por isso, hommosexuelles ou homo sexualis ou fora-do-sexo (...)" (p. 114).

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