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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.31 Rio de Janeiro Oct. 2015

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS: LAÇO SOCIAL

 

Relação do sujeito e seu ser frente à ditadura do Um

 

The relationship of the subject and his/her being before the dictatorship of the One

 

 

Gioconda Espina*

Universidad Central de Venezuela
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Foro de Venezuela

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de algumas proposições de Martin Heidegger em O ser e o tempo (1927), especialmente sobre a relação do ser e do Um, estabelecemos sua conexão com o que diz Lacan nas lições 23 (03/06/1959) e 26 (24/06/1959, última lição) do Seminário 6 sobre O desejo e sua interpretação (1958-59), especialmente quando se refere à relação do fantasma como suporte do desejo do sujeito e como o que o analista deve ter presente ante o sujeito que fala.

Palavras-chave: Ser, Sujeito, Desejo, Um, Um.


ABSTRACT

Departing from some propositions by Martin Heidegger in Being and Time (1927), especially regarding the relationship of the Being and the One, we establish their connection with what Lacan asserts in lessons 23 (06/03/1959) and 26 (24/06/1959) the last lesson of Workshop 6, on Desire and its interpretation (1958-1959), mainly when it comes to the relationship of the ghost as support for the subject's desire, and what the analyst should keep in mind before the speaking subject.

Keywords: Being, Subject, Desire, One, One.


 

 

Martin Heidegger retoma a pergunta que caiu no esquecimento e que desvelou Platão e Aristóteles e conservou-se até a lógica de Hegel: a pergunta sobre o ser que, agora, reformula em O ser e o tempo como a urgente pergunta pelo sentido do ser. A pergunta pelo sentido do ser exige acesso aos entes, que são muitas coisas: "tudo aquilo de que falamos, (também) o que somos (e) a maneira de sê-lo" (1927/2014, p. 16). A esse ente que somos nós mesmos e que tem a possibilidade de perguntar, o designa como "ser aí". A existência, acrescenta, decide-se por obra do "ser aí". Esse "ser aí" não está nem no passado nem no futuro, mas "sendo". De modo que o tempo é "o genuíno horizonte de toda compreensão e toda interpretação do ser" (Ibid., p. 27). O ser aí, o ser do homem, o ser vivente, define-se por sua faculdade de falar e "dizer de" e "dizer quê".

A fala (que é a acepção de logos que Heidegger assume, mesmo que haja outras acepções da palavra) "permite ver" a partir daquilo de que se fala e o faz ao proferir sons, vozes, vocábulos, palavras; "permite ver" algo junto a algo e, porque permite ver, pode ser o logos verdadeiro ou falso. É preciso livrar-se, diz Heidegger, do conceito de "verdade" como concordância. Aqui, "o ser verdade do logos" quer dizer "tirar de seu ocultamento ao ente de que fala e permite vê-lo, descobri-lo como não oculto" (Ibid, p. 43). Igualmente pode-se dizer do "ser falso" do logos. Assim, não se pode considerar o logos (a fala) como o lugar da verdade. Isso, como lembrarão, Lacan exemplificará depois quando diferencia os ditos do sujeito, que mascaram seu desejo, com seu dizer.

O que a fenomenologia (definida por Heidegger como o método da ontologia) permite ver é algo oculto ou "que volta a ficar encoberto ou que somente mostrase desfigurado, (não) é tal ente senão o 'ser dos entes'", isto é, aquilo mais além do qual não sou mais nada, isso que chama "fenômeno" enterrado ou apenas visível como "parece ser". Fenômeno, em sentido fenomenológico, é "só aquilo que é ser (de) um ente (que) tem que se mostrar". A isso chama "fenômeno fenomenologicamente capital" (Ibid., p. 48). Precisa mais: a fenomenologia do "ser aí" é hermenêutica, é interpretação. E finaliza sua introdução à sua mais importante obra resumindo que o ser está por cima de todo ente, é a "transcendência" pura e simples do "ser do ser aí" enquanto implica "radical individuação" (Ibid., p. 49).

No capítulo IV da mesma obra, Heidegger introduz o conceito do Um em oposição ao ser e relaciona o ser com o sujeito, uma relação que Lacan estabelecerá depois, no Seminário 6, como definição do desejo. Pergunta-se quem é que no cotidiano é o "ser aí"? Pois eu mesmo, o sujeito, aquilo ontologicamente situado diante dos olhos dos outros entes que são "aí", também "para" os outros, "com" os outros. Assim, o mundo do "ser aí" é um "mundo com" e o ser é "com" outros de minha espécie. O "ser aí", como "ser com", tem muitas possibilidades: ser um para o outro, ser um contra outro, ser um sem outro, não te importar o outro etc., que são "modos do procurar com", mas, nesse procurar, há duas possibilidades extremas: 1. Pode substituir o outro, que fica expulso de seu lugar e convertido em dependente e dominado; 2. Não substitui o outro, ajuda o outro por meio de sua cura e deixa-o em liberdade para isso.

Neste ponto, é pertinente esclarecer que Heidegger não está aqui se referindo ao um (com "u" minúsculo) que Lacan vai diferenciar do Um (com "u" maiúsculo). Não se trata em Heidegger nunca desse um que descreve a "unariedade" do gozo que cada sujeito tem na medida em que possui corpo, como precisa Colette Soler (2014, p. 26). Ainda assim, é preciso recordar que Lacan retomará o ponto da relação do ser com o Um em "O Aturdito" e no Seminário 19 (... ou pior), mas que aqui nos restringiremos ao elaborado até o Seminário 6. Voltemos a Heidegger.

Entre as duas possibilidades extremas do "ser aí" como "ser com", mantém-se o cotidiano "ser um com outro", mas em um terreno pouco firme porque há muitas possibilidades de extravio que obstruem o caminho de buscar e o de conhecer seu peculiar "ser aí" arrebatado pelo "senhorio dos outros", isto é, pela ditadura do Um. Por imposição do Um, gozamos como se goza, julgamos como se julga, encontramos sublevados o que o Um considera sublevante. Enfim, o Um prescreve a forma de ser da cotidianidade. O Um também tem seus peculiares modos de ser, mas mantém-se a "meio termo" em relação àquilo que está bem, que vigia toda tentativa de exceção: "tudo aquilo original é aplanado e o que aplana são 'as possibilidades do ser'". Por isso, a publicidade "obscurece tudo", porque o Um que aí se expressa retira ao "ser aí" a responsabilidade. E, contudo, o Um é ninguém e foi sempre, conclui Heidegger. O Um descarrega o ser aí de sua cotidianidade. "Todos são o outro e nenhum ele mesmo" (HEIDEGGER, 1927/2014, p. 144). É clara a ressonância dessa definição do Um como colonizador do "ser aí" em proposições de Lacan no Seminário 6, sobre a perversão, a sublimação e a análise como protestos à normalização a que aspira o Um social e cultural e, muito mais tarde, quando se refere ao gozo previsto nessa versão do discurso do mestre que é o discurso capitalista.

Parece-me que o que foi dito até aqui explica em extenso algumas razões pelas quais Jacques Lacan pôde fazer uso intensivo da teoria heideggeriana para revisitar a psicanálise em seu retorno a Freud, uso sustentado ao menos até 1960 (cf. François Balmes, 1999; Elizabeth Roudinesco, 1993), quando começa a distanciar-se de Heidegger, como se pode constatar no Seminário 7, sem – deixemos claro de uma vez – nunca abandonar algumas elaborações feitas a partir da ontologia e da fenomenologia heideggerianas.

Agora que estão resumidas algumas das proposições de Heidegger, vejamos sua conexão com o que diz Lacan nas lições 23 (03/06/1959) e 26 (24/06/1959, última lição) do Seminário 6 sobre O desejo e sua interpretação (1958-59), quando se refere ao fantasma como aquilo que sustenta o desejo do sujeito e o que o analista deve ter presente ante o sujeito que fala.

 

Pegar o desejo pelo rabo...

Na lição 23, Lacan coloca em primeiro plano o ser e o Um. O ser é propriamente o real, diz, enquanto se manifesta no nível do simbólico. Quando dizemos "ele é isto", isso aponta ao real, porquanto o real está afirmado ou recusado ou denegado no simbólico. Esse ser aparece nos intervalos, nos cortes, onde o ser é o menos significante de todos os significantes, um significante que representa o sujeito ante outros significantes. Tal corte presentifica-se no simbólico enquanto uma cadeia significante subsiste segundo a fórmula: Todo sujeito é Um. Frente a esse Um está o Não Um, o ser que surge no corte.

Se o desejo é um índice para o no "ponto em que ele não pode se designar sem desvanecer-se" (LACAN, 1958-59/inédito, p. 435), diremos que é no nível do desejo que o se conta, é contador. Mas esse contador entrega-se cotidianamente a uma série de "transações fiduciárias", até que chega o momento em que o contador deve pagar à vista. Momento em que esse pode chegar aos nossos consultórios. Deve pagar e algo não funciona: trata-se do desejo sexual ou da ação plena e simples. O se faz aqui uma pergunta sobre o objeto do desejo, o qual não é de acesso simples, "não é fácil encontrá-lo" (Ibid., p. 436). O que significa realizar o desejo e qual é a via de realização desse desejo? Diz Lacan que a boa comédia é um "pega desejo" , já que o desejo aparece onde não se o espera. Chega mascarado e, quando se castiga ao burlista, o desejo sempre fica intacto. Como nós, analistas, pegamos o desejo do , desejo que está enterrado ou mascarado? Não está no ponto em que se deseja, mas em algum lugar do fantasma. Disso depende toda nossa interpretação. Está nesse a, quando ocorre o desvanecimento do , quando está em fading, como ensinou E. Jones ao falar do complexo de castração. Diz Lacan: "Já que o teme que seu desejo desapareça, isso deve mesmo significar algo, é que, em alguma parte, ele se deseja desejante" (Ibid., p. 442). Essa é a estrutura do desejo do neurótico: "Eu me desejo desejante e me desejo desejante desejado" (Ibid.). Para tanto, é muito útil analisar os fantasmas do perverso voyeur e exibicionista, assunto no qual se detém largamente, para nos mostrar como a fenda (a braguilha entreaberta do exibicionista de A Náusea de Jean-Paul Sartre, o postigo, o telescópio do protagonista de A Janela Indiscreta de Hitchcok) é "o que faz o entrar no desejo do Outro. A fenda simbólica de um mistério" e é "o que nos permite situar o perverso em relação com a estrutura do desejo como tal" (Ibid., p. 447). Se o sujeito deseja-se desejante e desejado, por que não pode desejar? Por causa do falo, ponto que Lacan deixa no ar, mas desenvolve na lição 26.

Na lição 26, diz que o falo é o significante do desejo do Outro e, por isso, tem lugar privilegiado no nível do objeto a, como o falo é significante do desejo de desejo, é significante de seu reconhecimento pelo Outro. A fim de esclarecer mais o que já estava claro, refere-se aqui à função do fetiche, isso com o qual a criança tem que se haver em relação ao desejo indecifrável da mãe. No fantasma, cuja fórmula apresenta-se ao frente ao objeto a, o passa para o outro lado, o lado do a = falo. É o do corte, falado, na medida em que o corte é "a escansão essencial em que edifica a fala. (…) nada mais é do que o significante do ser ao qual é confrontado o sujeito, enquanto este ser é ele mesmo marcado pelo significante" (Ibid., p. 510). Isto é, o a, o objeto do desejo, é um resíduo, um resto, que deixa o ser ao qual o falante está confrontado em toda demanda. É por isso que o objeto alcança o real, que não é a realidade dominada pelo Um, que é a opinião pública, os meios de comunicação, a publicidade, como dizia Heidegger em 1926; e também – acrescentará Lacan – as distintas escolas psicológicas e psicanalíticas, especialmente a psicanálise da relação de objeto derivada de Klein e Winnicott. Esse objeto do qual vem falando, que alcança o real, é o que resiste à demanda e Lacan chama-o "o inexorável", essa forma do real que retorna sempre ao mesmo lugar.

 

A posição do analista ante o desejo do sujeito

O lugar que nós, analistas, devemos sustentar em relação ao desejo do sujeito não pode ser de adaptação às normas sociais e culturais dominantes impostas pelo Um. A perversão, insiste, representa uma forma da reclamação do desejo enquanto relação do sujeito com seu ser; outra forma é a sublimação, que é a forma em que se côa o desejo esvaziado da pulsão sexual e metido no jogo significante, até chegar à equivalência de desejo e letra; os produtos que resultam dessa elaboração em vazio podem, então, inserir-se no nível social e encontrar lugar na atividade cultural.

O que sucede em análise? O desejo de desejo do Outro é o que vai afrontar-se como desejo de psicanálise, daí que devamos estar alertas sobre essa dimensão da função do desejo do sujeito em análise a que Lacan define como lugar ou relato do "reencontro do que se trata o relato". O problema é que o desejo que o sujeito deve reencontrar, esse desejo do Outro que no dispositivo analítico somos nós, "esse desejo que é até presente demais no que o sujeito supõe que nós lhe demandamos" (Ibid., p. 517). Uma situação paradoxal que somente pode sustentar-se mantendo-se como "aquele que se oferece como suporte de todas as demandas, e que não responde a nenhuma. (…) Nessa não resposta que se encontra a mola de nossa presença" (Ibid.). Nosso desejo deve limitar-se a esse vazio, a esse lugar que deixamos para que o desejo do sujeito surja no corte, que – ratifica – é o modo mais eficaz da intervenção e da interpretação analítica e no qual mais devemos insistir. Nesse corte há algo sob a forma de objeto fálico latente em toda demanda e é, como fica dito, significante do desejo, significante equiparável ao "grão de fantasia ou de poesia" da mulher do poema de Desiré Viardot, que Lacan leu em 1951 ou 1952, intitulado "Phantômas", isto é, fantasmas (Ibid., p. 518).

 

Referências

DUTRAIT, F. "Eso que dice Lacan del ser, de François Balmes". En: Heteridad 1, 2001. pp. 285-291.         [ Links ]

HEIDEGGER, M. (1927/2014). El ser y el tiempo. México, FCE (Traducción de José Gaos) (Col. Filosofía).         [ Links ]

__________. (1997/2005). ¿Qué significa pensar? Madrid, Ed. Trotta. En: olavarria. com (Consultada el 27-12-2014)        [ Links ]

LACAN, J. (1958-59). El seminário, libro 6: El deseo y su interpretación. Ed. fotostática de versión no autorizada.         [ Links ]

__________. (1958-59). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Porto Alegre, inédito, Publicação não comercial da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.         [ Links ]

ROUDINESCO, E. (1993/1994). Cap. II, parte 6, de Lacan. Esbozo de una vida, historia de un sistema de pensamiento. México, FCE.         [ Links ]

SOLER, C. (2014). Lo que queda de la infancia. Asociación del Foro del Campo Lacaniano de Medellín (Col. Un Decir)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: giespina@gmail.com

Recebido: 28/05/2015
Aprovado: 10/08/2015

 

 

Tradução: Maria Claudia Formigoni
Revisão da tradução: Ida Freitas
* Licenciada em Letras, mestre em Estudios de Asia Occidental e doutora em Estudios del Desarrollo. Docente e pesquisadora da Universidad Central de Venezuela. A.P. desde 2001. A.M.E da EPFCL-Foro de Venezuela.

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